segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO GATO


Houve um gato muito querido na minha vida. Quase um namorado. Olhava-me com tamanho ar de transcendência que parecia querer me dizer alguma coisa, ou me contar algo, talvez um segredo. Era tamanha a insistência com que ele me olhava, de maneira tão candente e tão perscrutadora, que sempre lhe perguntava: - Há alguém aí? Há alguém aí?
Ele, claro, não dava nenhuma pista. Sequer piscava os olhos. Queria crer, mesmo sem ser um espiritualista de quatro costados, que se ocultasse por trás daqueles lindos olhos verdes os olhos lindamente azuis de minha mãe Águida (1914-1976) ou os olhos lindamente castanhos de meu pai Crispim (1914-1988).
Gatos não falam. Não no nosso idioma, ou em qualquer outro ensinado nos yázigis do planeta. Mas pensam – e pensam mais e melhor que a maioria dos seres humanos: pelo menos, quis e quero, e devo, crer que sim. Mas nos amam, e nos amam mais do que qualquer homem ou mulher serão capazes de amar  outro homem ou outra mulher: pelo menos quis e quero, e devo, crer que sim.
Mesmo doente, mesmo quase morto-vivo, esse gato mantinha o mesmo olhar transcendente e inescrutável. Mesmo morto – morreu num cesto de vime, afundado em almofadas, ao lado de minha cama, enquanto eu dormia – não fechou os olhos, e os manteve escancarados, firmes em direção ao meu rosto, como se desejasse que os olhos dele se fundissem com os meus e que, a partir daquele momento, eu olhasse o mundo e a vida a partir dos olhos dele.
É o que venho tentando fazer. Desesperadamente. Desde quando o vira-lata Ravic morreu em 19 de fevereiro de 2006. Homem algum jamais terá a leveza e a aura de um gato. Muito menos eu, 77 quilos, 1,76 centímetros de altura, 59 anos, e usando o planeta Terra, com todas as suas agruras, à guisa de boné.

sábado, 26 de janeiro de 2013

LIÇÕES DO LIVRO NEGRO DO CAMARADA MAU TSÉ-KING-KONG (OU O DIA DO JUÍZO ANAL)


Incomoda-me menos, embora me incomode muito, a maneira como o ser humano trata a natureza do que a maneira como o ser humano trata o outro ser humano, e os animais em geral. [`O homem não tem vantagem alguma sobre o animal´, Eclesiastes, capítulo 3, versículo 19].
Ok, o homem trata a natureza como se da natureza não precisasse, como se dela prescindisse. Em uma única palavra e uma palavra curta: vil.
Tratamos mal não apenas a natureza, mas também Os animais em geral e os que pertencem à nossa própria espécie - e se duvidarem, estriparemos gatos de lindos olhos azuis sem pestanejar, e mataremos crianças em escolas ao redor do mundo, sem motivos aparentes, que, bem da verdade, são absolutamente aparentes: estamos completamente à deriva.
Jogarmos lixo no mar. Entupirmos bueiros com nossas porcarias urbanas. Lixarmo-nos para as ações poluidoras em torno de subaés mundo afora. Mijarmos nas raízes das árvores frondosas do planeta. Não bombardearmos em massa fontes poluidoras que pesteiam os nossos ares e os nossos sangues. Essas (não)ações evidenciam a nossa vilania atávica e genérica e genética em relação ao outro, ao que não está dentro de mim & logo não faz parte do meu equipamento básico de sobrevivência, – e menos a escolha deliberada de foco específico no qual os seres humanos pudessem despejar todas as nossas maldades e desopilar todos os nossos recalques.
Simples assim: a nossa relação eternamente predadora com a natureza não é a mais nem a menos incorreta, e nem a mai nem a menos indigna, e nem a mais, nem a menos deletéria das práticas humanas. [Respiro, logo sou imperfeito]
Claro, noblesse oblige, essa nossa relação eternamente predadora com a natureza e com o outro é uma das evidências mais significativas de que não merecíamos ter nos expandido como espécie. No  seminal romance Caim, de José Saramago, o autor português constrói fábula genial na qual todos os homens da Arca de Noé que sobreviveram ao dilúvio são deletados da face da terra; restaram apenas mulheres, e mulheres se relacionam sexualmente de maneira plena, mas não procriam. Ato contínuo, a raça humana extinguiu-se: ideia que Deus, ou quem de direito, preferiu não adotar, e Deus, ou quem de direito errou: não evitou a tragédia de existirmos.
Existimos, e fazemos e acontecemos como se fôssemos o rei dos animais. Agimos e procedemos e pensamos como se fôssemos deuses encarnados, sejamos, médicos, jornalistas ou rainhas de bateria de escola de samba. Com as honrosas exceções de praxe, que confirmam a regra, cagamos e andamos para o que não é espelho: o vizinho, o colega de trabalho, o homem ou mulher que nos abordam na escada da igreja pedindo ajuda, o morador de rua, o gato, o cachorro, e last but not least, a natureza.
Ferramo-nos. se há algo no mundo, daqui do Baixo Botafogo até os rincões mais longínquos das galáxias que realmente importa, a ponto de ser a materialização possível de Deus (o do Antigo Testamento, e de todas os testamentos e de todas as fés), esse alguém atende pela alcunha de Natureza. Implacável, sem nenhuma moral hipócrita burguesa a lhe nortear. Age impulsionada por motores (e não motivos) absolutamente intrínsecos. Não tem a menor noção de que possam existir homens bons e homens maus (como, de fato, não existe) e, crianças e adultos (como, de fato, existe). Na hora H, da hecatombe cósmica definitiva, levará o santo e a porca, a virgem e a imaculada, Ceci e Peri, com a mesma e colossal fúria.
Há certo pensamento ecológico impregnado de santa ingenuidade que, de alguma maneira, humaniza a natureza: a de que a toda-poderosa age em resposta, divina vendeta, aos desmandos que praticamos.
Tirem as crianças da sala, mas sabem o que realmente infiro? Dona Natureza está cagando e andando para essas ações deletérias que cometemos ditas antiecológicas, em particular, e para o ser humano em geral – o que demonstra, além de tirana e sanguinária, essa draconiana senhora não está nem aí para o fato de existirmos ou não existirmos.
Quem manda é a natureza. O dono do terreiro é a natureza. O Deus psicopata do Antigo testamento é a Natureza travestida de velho sábio com barbas brancas e túnicas esvoaçantes. Enfim, a natureza, é o cara, meu caro leitor – e não tem pra mais ninguém. Nas mãos dessa senhora implacável somos menos que nada. Finito!
Estatísticas e previsões devastadoras e alarmistas, recheadas de remissões apocalípticas, exploradas ad nauseum por todos os polos midiáticos do Planeta Terra são tentativas de provar o improvável, de demonstrar o indemonstrável. A natureza, para desespero do mundo midiático, não tem lógica alguma, noção de culpa alguma – e não tem, que bom, um cérebro eletrônico ou não eletrônico, que a comande. Em síntese: não procede tal e qual aquele personagem vingativo de um filme de Quentin Tarantino, cheio de primeiras, segundas, e terceiras intenções. A natureza não tem emoção alguma. A Natureza não tem intenção alguma.
Quando a natureza nos esmaga, e ceifa milhões de nós,  ou esfria ao mínimo e esquenta ao máximo o planeta, ou faz tremer a Terra, ou cria tsunamis devastadores, não pretende emanar nenhuma lição de moral para nós, terráqueos pecadores ou não, assassinos ou não, corja de velhacos ou não, a escória da escória ou não etc etc etc. A natureza faz o que quer. Honra ao mérito: é incorruptível. Não é por sermos melhores ou piores no quesito virtude e generosidade que nos salvaremos. Não será por deixar de jogar lixo no mar – hábito que defendo, por motivos mais triviais: deveríamos ser mais rigoroso na limpeza de nossa ´casa´ -  ou salvar baleias encalhadas em uma praia qualquer do planeta que nos tornaremos imunes a ação fulminante da Natureza.
Os seres humanos, pelo menos o das grandes cidades, mais vulneráveis às ações midiáticas, de vez em quando, sabendo o quão a Natureza é inflexível, tentamos tentar negociar o inegociável: promovemos ações para-a-imprensa-ver que limpam praias, que salvam vidas de tartarugas, que desentopem bueiros urbanos, que...
Não acho que devamos parar de agir assim. É o básico. Que continuemos fazendo. Isso faz parte, ou deveria fazer, do pacote do que se convencionou chamar, mentirosamente, há alguns séculos de homem civilizado.
Mas não esperemos nada em troca: quando a natureza bafejar sua fúria sobre nós, não ficará nada sobre nada.
Mas relaxemos. Não nos apavoremos com a natureza selvagem da Natureza. Se algum dia o apocalipse abrir as asas sobre nós, não saberemos nada com antecedência. O que será um bálsamo. Disse e repito: a Natureza não tem amigos jornalistas, ou em quaisquer outras profissões, e essa informação privilegiada não chegará à redação de nenhum polo midiático do planeta Terra.
Se algum apocalipse acontecer e quando algum apocalipse acontecer for, será mais ou menos assim, presumo e desejo, bem minimalista: bum!; ou pum! – e não se fala mais nisso.
O apocalipse não me apavora.
A morte não me apavora.
O que me apavora é o homem – e dentre esses homens se inclui o meu rosto projetado no espelho na hora de me barbear.




  








quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

RATOS E RATOS (OU MODESTA FÁBULA EM MEMÓRIA DE JOHN STEINBECK*)


Era uma vez um rato chamado Aristeu. Perdera o olho esquerdo numa peleja sangrenta com um rival, o Aristides. Motivo: disputa por miligramas de crack nos intestinos da Lapa, em algum esgoto fétido entre a Rua Taylor e a Mem de Sá com a Frei Caneca. Siderado pela droga, o agredido vacilou, bambeou – e o agressor trespassou-lhe a íris esquerda com alfinete enferrujado que jazia na sarjeta. 
Aristeu, o rato de um olho só, intuitivamente estoico, passou a disparar a seguinte boutade quando jogava dominó com alguns ratos das redondezas: - Meno male. Agora vejo apenas metade da miséria do mundo.
Quando não se drogava, quando não fodia, ou quando não dormia drogado pelas entranhas do centro do Rio de Janeiro, Aristeu costumava flanar pelo Campo de Santana. Ideia fixa: catar sobras de alimentos e copos com restos de cerveja quente e choca nas beiradas das latas de lixo. 
Manhã cinzenta de 15 de janeiro de 2013: impulsionado pela larica que os restinhos de crack e bitucas diversas de marijuana  consumidos na madrugada anterior provocara, engolia tudo o que via pela frente: pontas de cigarros, pipocas pisadas, fezes de cotia, pedaços de casca de banana, o diabo a quatro.
De repente fez-se luz. Avistou copo de cerveja pela metade, ali abandonado por algum bêbado já pra-lá-de-Bagdá. O ´será-uma-miragem´ pensado por Aristeu não era miragem. Aproximou-se da lata de lixo cor de abóbora, e sentiu o cheiro acre da bebida, real, vívido. Ainda assim, calejado por falsas visões que as drogas eventualmente lhe proporcionam, esfregou o único olho que lhe restava: queria ter certeza de que não era algum episódio delirótico.  
Olhou de novo. Viu de novo: copo de cerveja pela metade, morna, azeda, fétida – exatamente do jeito que esse rato de rua adora.  
Sibilou tonitruante  puta-que-pariu que assustou um gato esquálido que ronronava por perto, e partiu célere em busca do tesouro. Empurrou-o com força, mas com cuidado, muuuuito cuidado, não queria gota sequer daquele precioso líquido se perdendo no chão enlameado.
Finamente, exausto,  mas feliz, abancou-se à margem de lagoa sempre imunda, no centro do Campo de Santana. Cruzou as pernas, assoviou sambinha safado do Dicró, e sorveu de canudinho, com a pressa dos lerdos, o líquido que o deixava em ascese alcoólica. Sentiu-se no nirvana, e bufou:- Melhor que isso só a bunda de Aristeia.  
Sorveu mais um pouco, e achou melhor ponderar: - Será que a bunda de Aristeia é mesmo melhor que isso?
O Nirvana se partiu quando Aristeu ouviu voz rouca de alguém – e, de imediato, sentiu raiva e nojo por essa voz rouca de alguém. Pior: essa voz rouca de alguém suplicava por ajuda: - Socorro, socorro! Estou me afogando. Não sei nadar.
Merda! – arfou Aristeu. Não parou de sorver o precioso líquido. Não queria nem ver a cara do sujeito que gritava por socorro. ´Que se fodesse´  - pensou. Mas os gritos aumentavam cada vez mais, estridentes, cortantes. Ele olhou, e viu (e fingiu que não viu): um rato se afogava, e gritava aflito, e implorava e suplicava e rogava que alguém o salvasse.  
Aristeu se fez de surdo, e de cego dos dois olhos. Concentrou-se no merdume doce-amargo-azedo que lhe descia as entranhas, e o deixava em transe. Pensou na bunda de Aristeia, na buceta de Aristeia, e não pensou mais em nada. Quando finalmente viu (pela metade) a paisagem ao redor, já não tinha mais rato algum pedindo socorro.
Havia apenas rato morto no fundo da lagoa imunda.
Aristeu nem sequer piscou o olho que lhe restou. Lambeu todo o copo, de fio a pavio, para aproveitar cada gotícula da cerveja fétida que restava. Quase engasgou. Recuperou o fôlego. Arrotou em alto e bom som. Em seguida, em trôpegos passos, voltou às entranhas da Lapa. Pelo caminho, deu de ombros, e resmungou:   Ah, vá se foder! Quem mandou não aprender a nadar!
(No esgoto imundo da esquina da Mem de Sá com a Rua do Senado, onde Aristeu mais se escondia que morava, rude golpe aguardava Aristeu: a amada Aristeia o traía, a bordo do furor uterino de uma Medeia, com Aristides, o cara que lhe furara o olho com alfinete enferrujado encontrado na sarjeta).
* O escritor americano Jonh Steibeck (1902-1968) é autor do romance Ratos e Homens, um dos retratos mais seminais da condição humana. 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A VIDA NÃO É MAIS QUE NADA, SABÁ, SABÁ (OU DIVAGAÇÕES SOBRE VIVER E MORRER)


Fala-se muito em desapego como o suprassumo da busca da santidade e da ascese religiosa. Papo furado. Merda de touro. Não é virtude nem defeito. É apenas atitude que alguém eventualmente adota por motivos e desmotivos pessoais e intransferíveis. Desapegar-se ou apegar-se a bens de consumo, derniercris da moda, joias, tesouros, mil e hum pares de sapatos, e closets de 200 metros quadrados recheados de traquitanas diversas é tão trivial quanto políticos safados .
Não posso nem devo me jactar de ter me desapegado dos bens que um dia possuí. Bem da verdade, o único ser vivo a que fui obrigado a me desapegar, e me desapeguei com a mais profunda das dores, foi um santo gato chamado Ravic.
A essa altura da minha vida, posso afirmar sem medo de errar: esse felino abençoado que viveu apenas cinco anos foi o homem da minha vida, o homem que queria fosse o pai e a mãe dos meus filhos. Mas não deu: por enquanto, gatos e homens ainda não procriam. Minha profecia: um dia chegaremos lá.
Também não posso nem devo me jactar de ter me desapegado dos bens na verdade nada valiosos que um dia possuí, mas que dizia serem ´meus´ e ´de mais ninguém´. Numa reversão nada comum na ordem das coisas, foram esses bens nada valiosos, mas mezzo queridos, que, irreversivelmente, se desapegaram de mim, aos poucos, mas incisivamente – inclusive livros e discos que tanto amei, e amo – sinto especial ausência dos amados CDs de Chet Baker, o homem que cantava com o fígado, e de quem o nosso esperto João Gilberto bebeu-lhe (quase) todo o xarope.
Hoje sou um desapegado assumido: se o amanhã me levar a morar no Acre, ou no Sudão, ou embaixo de um banco da Praça Paris, na Glória, aqui no Rio de Janeiro, tudo que levarei caberá numa mala de couro forrada por Dona Canô. Eletrodomésticos avariados, mas ainda em funcionamento, e romances da grande literatura, cerca de quarenta, a quem ainda tenho, mea culpa, enorme apego serão doados a Associação dos Amigos da Infância com Câncer do Rio de Janeiro que fica bem aqui do lado de minha não-casa.
(A propósito: a existência de crianças com câncer – uma das maiores causas de morte infantil no planeta Terra – é uma prova cabal de que Deus, ou quem de direito, é tão sábio quanto o bigode se Stálin.)
Tresloucado com a borrasca financeira que se abateu sobre mim e sobre outros milhões de terráqueos a partir do começo do século XXI (e isso é mais motivo de lamento que de consolo), virei guerrilheiro em tempo integral para me manter não-morto, mas, também, não-vivo. Sobrevivi, e aprendi: também precisava me desapegar de cidades, de pessoas, de namorados, de amigos, de tudo que aprisionasse a algum lugar ou a alguém.
Só não me desapeguei, nem me desapegarei das minhas caminhadas diárias de vinte quilômetros, estivesse/esteja em Praga, na República Tcheca, ou em Irecê, na Bahia, ou pelas vias laterais da ponte Rio-Niterói. Não sem motivo:  é esse caminhar que me mantém vivo-morto, com a cabeça rigorosamente em cima do pescoço, e apenas razoavelmente insano – nem mais nem menos que os ditos humanoides que me cercam nos lugares pelos quais circulo no Rio de Janeiro e alhures.
Entre 31 de dezembro e 8 de janeiro resolvi mergulhar num período sabático. Era desejo antigo que finalmente se materializou. Nesse período senti enorme prazer em cagar e andar para coisas nefastas tipo réveillon, aniversário, jornais, internet, televisão, aparelhos celulares et caterva. E  basicamente, andar e rezar muito, rezar por tudo, por estar vivo, por estar morto, ou por estar vivo e morto ao mesmo tempo, como, de fato, me sinto.
(Ah, sim, nesse período li obra magistral: Marighella, escrita por Mário Magalhães. Mais  que  biografia, é retrato sem retoques da condição humana, o ser humano no osso, no cu do cu).   
Tal distanciamento da realidade abjeta na qual vivemos me provou momentos extáticos que certamente me garantirão alguns dias a mais de vida. Concluí: menos velho fosse me tornaria ermitão que viveria o resto da vida nos mais escondidos rincões da Terra em companhia de ursos polares bissexuais.
Nesse sabá improvisado, fiz algumas anotações que registram memórias, conclusões a respeito do mundo e certas impressões e insights advindas do meu inconsciente – e, como diziam os surrealistas,   a arte (e a vida, acrescente-se) é o inconsciente e nada mais quê.
I.                  O Deus do Velho Testamento é um psicopata.

II.               A gente começa a se foder e a acaber de se foder inexoravelmente quando põe no outro a razão e o motivo de nossa (in)felicidade.

III.           O inferno somos nós – Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, inclusive.

IV.           Eu escrevo com as pernas, e com os pés.
          
V.               Ser ou não ser, o caralho! A pergunta básica de nossa existência é matar ou morrer? – e viva Marighella!

VI.           Pedrinho, 17, não era alegre. Nem triste. Nem poeta. Simplesmente não gostava do filme a que o obrigavam a assistir. Inspirava-lhe náusea, e vivia vomitando dia sim dia não. Ponto. De repente, o telefone tocou. Era para ele. Tinha certeza. Atendeu. Ouviu: - É a morte quem fala! Pedrinho explodiu de júbilo: - Putaquepariu. Por que você demorou tanto, caralho? A morte-anjo esbravejou: - A gente sempre surge na hora certa, pirralho! Chegou a sua hora. Pule pela janela, já! Pedrinho, louco de alegria, pulou e gritou o mesmo grito primal que Janet Leigh gritava em Psicose, de Alfred Hitchcock. A mãe de Pedrinho, dona Hilda, se não me falha a memória, continuou a assistir, enfeitiçada, a mais um capítulo de O Sheik de Agadir. Sequer  tirou os olhos da tela. Simplesmente urrou: - Porra! Cala a boca, Pedrinho!

VII.        Eu tinha sete ou oito anos. A professora de português, ruiva e sardenta e descabelada, talvez nervosa por algo que lhe acontecera, ou que lhe aconteceria  -  (e aconteceu, de fato: morreria atropelada por caminhão FNM na porta de casa ao voltar das aulas desse dia), tentava explicar, com certa dificuldade, a trinta e poucos garotos razoavelmente obtusos de uma escola primária de Jequié-Bahia o que era substantivo concreto e o que era substantivo abstrato. Em certo ponto, as mãos tremelicando, os olhos esbugalhando, decretou: - Substantivo concreto é tudo que tem existência corpórea. O abstrato é aquele que não tem existência corpórea! Olhamo-nos, burraldinos todos, e pensamos em silencioso coral: - Que merda de existência corpórea é essa? Mas o segundo melhor aluno da classe, o primeiro era eu, adiantou-se, omitiu educadamente a palavra merda, e arguiu: - O que é existência corpórea, querida mestra? Ela se assustou com a pergunta. Demonstrou nervosismo. Os cabelos ruivos encaracolaram-se ainda mais. As sardas pulavam-lhe da face redonda como pulgas rubras. As mãos tremiam. Mas, de repente, a luz se fez na face da professora Magali Noel (como se alguém lhe soprasse no ouvido a resposta que deveria dar aos alunos), e ela disse,  peremptória, entusiástica, flamejante:  - Substantivo concreto é tudo aquilo que se pode pegar, que se consegue apalpar. E, em entusiasmo incontido, provocou: - Agora quem de vocês não será capaz de dar um exemplo de um substantivo concreto? A resposta foi uma série de bocarras escancaradas que gritavam cadeira, carro, avião, bule, prato, panela e até mesmo bunda. Ela vibrou, e prosseguiu: - Agora então vamos falar dos substantivos abstratos. Substantivo abstrato é tudo que existe mas não podemos vê-los ou pegá-los. Quem se arrisca a dar um exemplo? Um pulha que me chamava de cu de ferro que eu odiava, um idiota de dar dó, se manifestou: - Um ferro de passar roupa bem quente, professora! É substantivo abstrato. Ninguém pega, se pegar se queima. A professora riu sem malícia – mas todo o meu pequeno ser vibrou com a besteira que aquela anta de tênis falara, e acrescentou: - Não só não podemos pegar, também não podemos ver, como se pode ver, por exemplo, na mesa da cozinha de casa uma caixa de Maizena. Vou dar um exemplo de substantivo abstrato para vocês entenderem melhor: felicidade. Todo mundo sabe que a felicidade existe – [pensei então com meus precoces botões existencialistas: em termos, querida mestra, em termos!], mas ninguém consegue pegá-la ou vê-la. Quis exemplificar outro substantivo abstrato, e falei tempo. Mas a campainha tocou, as crianças saíram em desabrida corrida para o recreio. Meno male: a professora Magali Noel veio até a mim, e exortou-me: - Meu querido, o tempo talvez o seja mais abstrato dos substantivos. Nunca ninguém conseguirá vê-lo passar e, muito menos, pegá-lo como se fosse um algodão-doce. Fui para o recreio feliz. Comi uma banana-real com fanta uva, e pensei em como eu seria quando o tempo passasse mesmo que eu nunca o visse e mesmo que nunca conseguisse agarrá-lo. Lembrei essa história, no final do ano passado olhei para o espelho do banheiro na hora de fazer a barba, e avistei um quase-velho.

VIII.    No dia 6 de janeiro, domingo, colhi mais uma rosa no jardim da minha existência: agora já são 59 a florir no meu rosário. Quero declarar: `A velhice é uma merda que deve ser surfada com sabedoria, dignidade  e vigor.´

PSPS 1 (post-scriptum-pós-sabático): Na primeira hora da manhã após o meu período sabático, corri para comprar jornal. Tenho esse vício. O do porteiro-chefe do meu prédio é fumar. Sei que ambos fazem mal à saúde, provocam câncer, mas persisto no culto ao demônio. Nada, como sempre, digno de nota. Mas lá pelas tantas, algo me chama a atenção. Fala-se de certa menina carioca que morrera aos nove anos e que estaria sendo canonizada pela Santa Madre Igreja Católica pelos milagres que teria operado. O único milagre citado pelo articulista; teria atendido às preces da atriz Giovanna Antonelli e a colocou no papel de protagonista da novela O Clone, de Glória Perez. Por causa dessa graça, a atriz visitava com frequência o Cemitério de São João Batista, onde  a garota rica e bondosa que dava dinheiro aos pobres está enterrada, e, ajoelhada diante do túmulo da infanta, mergulhava em preces contritas e profundas de agradecimento, Quase me urinei de tanto rir. No meu tempo de guri, dizia-se que os santos curavam leprosos, reviviam mortos, faziam aleijados andarem, e coisas e ações mais transcendentais.  Mas fazer devota ganhar papel de protagonista em novela vagabunda de Glória Perez, eu nunca tinha ouvido falar.

(A propósito, Viva Santa Bárbara, e, por favor, não me consiga nenhum papel de protagonista em novela vagabunda de Glória Perez! Precisar, estou precisado, mas me coloque por outros caminhos. Eparrei Iansã!).

PSPS2: Boas surpresas acontecem. Ontem recebi simplório, mas singelo e delicado, cartão de feliz aniversário da Ótica Conceição, localizado na frenética Saara, no centro do Rio, onde sempre compro meus óculos de graus. Trecho do texto: ´Continue firme pelos caminhos da virilidade e das verdades. Continue trilhando pelos vales da vida, pois um dia encontrarás o mais belo jardim, o jardim que representará a realidade dos seus maiores dias.´  Amém, Ótica Conceição, amém.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O NATAL É UMA INVENÇÃO DE DEUS QUE O DIABO ABENÇOOU (OU HORRÔ! HORRÔ! HORRÔ!!!)


Tem  quem adore Natal. Eu o-de-io.  
Cada louco tem sua mania. Traumas meus. Pessoais. Intransferíveis, e que irão comigo até o bulezinho de prata que guardará minhas cinzas.
Quando petiz me fizeram crer na existência de Papai Noel. Mas logo aos cinco, seis, anos, comecei a achar essa história de Papai Noel que voava num trenó puxado por renas voadoras e entrava no meu lar-doce-lar pela chaminé da casa não tinha a mais remota chance de ser verdade. Mas caguei: a porra da verdade que fosse à prostituta que a gerou.
Queria ser enganado. Gostava de ser enganado. Todos nós gostamos de ser enganados. Todos nós gostamos de ser enganados até o fim de nossos dias. A isso chamamos ilusão. De faz de conta. De fantasia. A verdade dói mais que sete adagas enfiadas, ao mesmo tempo, no baixo ventre – uma,  de ponta mais afiada, no fulcro das nossas genitálias.
(Por essas e outras, vivemos fugindo da verdade como Lady Gaga foge de encarar espelhos sem make up a lhe esconder  a face, melhor não face, da mulher mais feia do universo, quiçá, de todas as galáxias).
Tal e qual Lady Gaga, fugi da verdade durante dois ou três anos. Até que, ao despertar de certo 25 de dezembro, meus bracinhos tenros e roliços se enfiaram por baixo da cama à procura do que Papai Noel, o qual já sabia ser conto da carochinha, havia deixado pra mim.
Nas vezes anteriores, bastava baixar o braço, e minha mão esbarrava em alguma caixa cada vez menor – mas caixa – e o meu coração batia mais que o batuque do Olodum. Mas dessa vez: não houve final feliz. Descobri, desolado (depois de escarafunchar todos os milímetros do chão de assoalho onde o meu leito se assentava), apenas duas ou três baratas mortas. Nada mais quê.
O meu mundinho caiu: Papai Noel já soubera que eu percebera que ele era uma fraude temerária, e me mandava às favas. Fim de jogo. Merda: como o filho da puta do Papai Noel descobrira que eu descobrira que ele era uma fraude temerária?
Na verdade, havia crucial elemento macroeconômico nessa revelação, o xis do problema:  minha família, classe média baixa do interior da Bahia nos anos 1960, decidira, convenientemente e sabiamente, pôr fim a essa farsa. Afinal papai-&-mamãe tinham despesas mais básicas e mais prioritárias para investir: fazer, por exemplo, com que não faltasse comida na mesa, tanto no café da manhã, quanto no almoço, quanto no jantar - e isso, devo ressaltar, nunca faltou.
(Parágrafos que atestam para os devidos fins o quão parcos eram os recursos financeiros da família Souza Menezes, no decorrer dos anos 1960: 1. a primeira geladeira que vi na vida, e pela qual me apaixonei à primeira vista, foi uma Gelomatic de quinta-ou-sexta-mão, a qual meu pai comprou em prestações, e que se transformou na Esfinge-de-Gizé-do-Antigo-Egito da casa velha e cheia de goteiras localizada à avenida Rio Branco, 817, Jequié-Bahia – meio assim uma réplica avant la lettre do lar da Família Adams.
2. Mas voltemos ao refrigerador recém-chegado: detonado, o tempo já acrescentara ao branco original (cor-base do eletrodoméstico) petit pois desconstruídos a estampá-la quase inteiramente;  e durante à noite ela roncava em altos decibéis, como se fosse um rinoceronte ou um hipopótamo protagonizando terríveis pesadelos ou deliciosos orgasmos.
3. Informação que não posso deixar de dar ao caro leitor: a maçaneta da porta, outrora toda prateada, era então menos trechos prateados e mais trechos cinza-escuros, nos quais a cada vez que, desavisados e distraídos, os tocávamos, levávamos tremendo choque elétrico. Ainda assim, eu, especialmente eu, a adorava, a idolatrava. Não sem motivos: ela resfriava os nossos calores sertanejos, tornava a água que bebíamos mais fresca, e, rotina diária, eu enchia cubas de gelo com sucos das frutas mais variadas, e, ao voltar da escola, mergulhava nessa orgia mezzo gastronômica até a língua se tornar picolé de língua, completamente anestesiada – e eu gostava de mordê-la com força e não sentir a menor dor, e acho que eu pensava que gostaria que a vida fosse sempre assim, sem a menor dor, para todo o sempre. [Bobinho!])
O motivo pelo qual o Papai Noel fora defenestrado de minha casa: meus pais tinham despesas mais prioritárias do que manter essa fantasia otária do filho caçula. Mas eu registrei o golpe: (puro teatro, noblesse oblige). Passei o resto da manhã completamente macambúzio. Fiz queixas ao resto do clã sobre o fato de PN não ter me visitado na noite anterior. Recusei-me a tomar café da manhã, mas roubei uma rabanada escondido, na verdade, duas.
O meu tour-de-force deu certo: lá pelas onze da manhã, percebi certo rebuliço num dos quartos da casa. Minha mãe Águida, e minhas irmãs Luiza e Cecé, catavam moedas em diversas gavetas, e, presumi: tinham a intenção expressa de ir  até a algum armarinho milagrosamente aberto da Rua Sete de Setembro (a nossa tosca e naïf versão da Avenida Paulista de antanho), e tentarem tornar o meu o Natal menos aziago.
Presumido, e materializado: meia-hora depois, minha irmã Luiza me abordou no varandão da casa velha [e protagonizamos o seguinte e ridículo sketch]:
Luiza: - Roge [era, e é, esse o apelido com que minha família me chama até hoje], Roge, acho que você não olhou direito o que havia embaixo da sua cama!
[Como não havia olhado direito o que havia embaixo de minha cama, cara-pálida?  Chegara mesmo a guardar as duas baratas mortas em caixas de fósforos – (vá ver não descobriria um jeito de brincar com elas?), e não encontrara nada, absolutamente nada!]
 Luiza insistiu: - Vá lá agora ver. Estava meio escuro à hora em que você olhou. Agora é quase meio-dia, o sol está pegando fogo em todas as janelas do seu quarto! [o qual eu dividia com o meu irmão sete anos mais velho, José Crispim, que já não acreditava em Papai Noel e em Telecatch Montilla havia anos].
Fiz-me de tonto, voltei ao quarto, e, mais exatamente, a olhar o espaço vazio abaixo de minha cama. Então realmente havia um pacote quadrangular enrolado em papel de presente. Puxei-o, enquanto Luiza  escapava rapidamente do quarto. [Provavelmente temendo ver o meu olhar de frustração diante do singelo presente que os tostões encontrados nas gavetas permitiram comprar.]
O pacote era leve. A embalagem, ordinária. Mas o abri com rapidez: imaginei que ali se abrigassem todos os soldadinhos de chumbo do mundo – ou um jogo de pingue-pongue. Não abrigavam. O que os meus olhos viram foi um pequeno carrossel amarelo, no qual cavalos toscos de plásticos coloridos se dependuravam precariamente. A graça do brinquedo: rodava-se o cume do carrossel e os cavalinhos toscos rodavam. Ou seja: graça nenhuma.
[Fim do sketch.]
Fiquei por uns minutos me culpando por ter deixado de acreditar em Papai em Noel – e também o culpando por não mais imaginar que um garoto de oito anos ainda mereceria – mesmo que não acreditasse mais  na existência dele – algum mimo que me fizesse crer – e eu queria muito acreditar nisso: a vida seria ad infinitum uma chuva de presentes.
A decepção foi acachapante. Meu mundinho caiu novamente. Cria e queria crer: a vida seria uma eterna chuva de presentes. E se não fosse? O que seria de mim, gordo e tímido e cheio de medos?
Senti raiva do carrossel com seus cavalinhos de plásticos, e pensei em jogá-los fora.
(O que não demorou a acontecer; duas semanas depois, alguém, que não consigo ou não quero lembrar quem tenha sido, pisou, sem querer, ou com querer, no meu último  ´presente´ de Papai Noel – e eu naveguei por algumas horas entre a alegria e a tristeza. Depois dei de ombros: não tinha gostado mesmo daquele meu ´último´ presente de Papai Noel, ´aquele velho gagá´, pensei).
Enquanto pensava, e pensava corretamente (descobri depois a ferro e fogo), que a vida não seria eterna chuva de presentes, ouvi a voz bem-vinda e reconfortante de minha mãe. Chamava-me para almoçar. Entrei na cena da ceia do dia seguinte com cara de paisagem. Alguém perguntou, sei lá mais quem: - Gostou do presente de Papai Noel? Pensei: - Não, mil vezes não. Mas menti, e menti descaradamente: - A-do-rei!
(Não era a primeira vez que mentia. Nem seria a última. A mentira – descobri com o passar do tempo – é, usada com zelo, moderação, e sabedoria, bálsamo sempre necessário.)
O mundo girou, e gira muito mais que nós: décadas depois, Natal de 2012, Ilha do Governador, Rio de Janeiro: os Souza Menezes não têm mais os chefes do clã: Águida e Crispim morreram há décadas. Em compensação, entraram em cena netas, genros, e, o melhor que há: bisnetos.
Mesmo que ame os meus sobrinhos-netos (Beatriz, Augusto, Davi, Luana e Marina; os daqui do Rio de Janeiro; e Pietro, Dimitri e Marvin, os que moram em Jequié na Bahia; além de todas as pessoas que integram minha família), continuo achando o Natal festa tão cristã quanto um gato seja um rato e um rato seja um leão-marinho.
O Natal é orgia gastronômica e megacapitalista perdulária, selvagem, hipócrita, nelsonrodriguiana em essência – gentes que se amam-odeiam em eternos ires e vires que, de uma para outra, trocam de personagens – gentes que guardam ódios e mágoas no fígado e que, de uma hora para outra, fingem ser todos amigos e irmãos, pelo menos até o raiar do dia 26 de dezembro.
Bem, depois (por favor, tirem as crianças da sala) voltamos a ser o que realmente somos: a escória da raça, com as honrosas exceções de praxe.
natalistas ferrenhos que defendem o evento como um rito de passagem fundamental para as crianças. Bull shit. O Natal é festa que serve para bimbalhar, e bimbalhar estrepitosamente, o capital, o dinheiro, a exploração do homem pelo homem (apud o vintage ideário socialista). Sempre foi assim. Sempre será assim.
O cristianismo, religião que, em essência, prega o igualitarismo social entre os seres humanos [Karl Marx e Jesus Cristo teriam muito que conversar caso de encontrassem, ocasionalmente, num pub de Londres, ou num boteco de Madureira], está hoje tão distante do chamado espírito natalino quanto o ponto zero de todas as nossas galáxias está do ponto infinito de todas as nossas galáxias. 
Admito: sinto-me feliz nas festas de Natal de minha família. Mesmo com os azedumes costumeiros. As tensões contidas. As raivas guardadas temporariamente no fígado. Os sorrisos eventualmente forçados. Tudo isso emoldurado, por uma vontade sincera (a de nossa família) de que mais uma noite de Natal possa melhorar este mundo caótico no qual habitamos. Mas também fingimos (e é compreensível que finjamos) que uma noite de Natal a mais ou a menos possa nos mudar e, por tabela, mudar o mundo, mas também sabemos desde sempre, embora nunca queiramos acreditar: Natais não mudam merda nenhuma, e a miséria que perpassa o mundo não diminuirá milímetro sequer se os Natais deixarem de existir.
Mas voltemos às crianças, por causa de quem o mundo ainda tem algum sentido em se perpetuar: é por causa delas que o Natal é ainda festa que me interessa e me mobiliza, em termos.
Interessa-me por ser um ritual de passagem no qual em algum momento a criança deixará de crer que papais noeis existem – e, por tabela, em médio prazo, começarão a perceber: a vida, o rumo que imprimimos às nossas vidas é de responsabilidade apenas minha, sua e nossa – exclusivamente minha, sua e nossa, sem que papais noeis, papais, mamães, painhos, mainhas, tios-dindos queridos, avós e avôs abnegados e amorosíssimos possamos, embora queiramos, embora façamos e devamos fazer a nossa parte – e nunca deixaremos de fazê-lo.  
Nesse último Natal, o meu sobrinho-neto Augusto, 6 anos, presenciou o seguinte fato, da varanda do apartamento onde mora, e onde nos reunimos para a ceia: o papai-de-noel-de-aluguel - tão consumidos em períodos natalinos quando as calóricas rabanadas: aparentemente um homem comum que, de fato, era desceu do carro trajando roupa vermelha, e, em plena rua, terminou de fantasiar-se: pôs gorro, barbas brancas, caprichou no blush vermelho-carmim, enfiou travesseiro sobre a barriga, empunhou o cajado cravejado de strass e purpurinas, e subiu até o apartamento no qual ceávamos.
Feito eu, há 50 anos, Augusto talvez continue querendo crer que papais noeis existam e, que, deixando de crer na existência deles, os presentes natalinos desapareçam nos próximos natais.
A ótima notícia: na cabeça do menino de seis anos algumas sinapses começarão a se conectar a partir dessa visão inesperada. O que poderá significar que, a partir de agora, aos poucos, Augusto começará a perceber: não serão papais noeis, papai-&-mamãe, tios dindos, tias-dindas, avós abnegados e  amorosíssimos quem resolverão, de fato, a vida dele.
Tenho de informá-lo, é dever de seu velho tio-avô lhe dizer: a bola, meu querido e amado sobrinho-neto Augusto, está com você. Nós, familiares que lhe amamos com paixão imorredoura, continuaremos a fazer tudo que estiver ao nosso alcance para ajudar você atingir  os seus objetivos – e assim o faremos. Amém.
Mas a vida, no frigir dos ovos e do pipocar das vicissitudes,  é sua, meu querido Augusto. A vitória, também. Amém again.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

CARTA A AMIGO QUERIDO COM MEDO DO FIM DO MUNDO (OU DESESPERANDO GODÔ)

Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2012.

Meu querido amigo Godô,

Viver é muito perigoso, já avisava, e alguém já havia ter dito isso a ele, alguém já tinha buzinado isso no ouvido dele, de João Guimarães Rosa, havia muito tempo, e ele apenas ratificou: `Viver é muito perigoso.´
Você já deve conhecer de cor e salteado essas frases abaixo, mas as repetirei, valerá sempre a pena ouvi-las de novo: 
1.       ´Ninguém é capaz de entender o que se faz debaixo do sol. Por mais que se esforce para descobrir o sentido das coisas, o homem não o encontrará. O sábio pode até afirmar que entende, mas, na verdade, não o consegue encontrar´. (§ 8, versícuclo 16, do Eclesiastes, um dos livros da Bíblia Sagrada).
2.    ´A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, não significando nada.´ Fala de Macbeth na peça homônima de William Shakespeare.
Pois é, meu prezado Godô,  ´querer´encontrar o sentido da da vida é correr atrás do vento´ (palavras ditas o mesmo Eclesiastes).
Portanto, quando a esse quesito - o que estamos fazendo neste vasto mundo que não tem rima nem solução - nunca estivemos, estamos e estaremos sozinhos. Somos todos baratas tontas trilhando caminhos e descaminhos desconexos, às vezes; conexos, outros.
Para nosso consolo, ou desconsolo, o mesmo Eclesiastes  arremata, sem dó, nem piedade:´Desfrute a vida com a mulher que você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade, nem planejamento. não há conhecimento, nem sabedoria.´
Ou voltando a Shakespeare, na cena final de Hamlet, quando, após ser esfaqueado, e antes de morer, o personagem que dá título à peça resume a vida (e a morte) na seguinte aparente obviedade:`O resto é silêncio!´.
Portanto, meu querido, enfie o pé na jaca antes que a jaca enfie o pé em você!
Ou como cantava a eternamente-virgem Doris Day em canção antológica composta pelos americanos Jan Livingston e Ray Evans, e incluída na trilha sonora de O Homem Que Sabia Demais, de Alfred Hitchcock:`Whatever will be, Will be!´ 
Que seja! Quem sabe o que nos reserva o minuto seguinte? Assim é a vida. Mas é a única que temos, maravilhosa e tenebrosa ao mesmo tempo, e só nos resta navegá-la (apud Fernando Pessoa) - pois viver é navegar (sem carta de navegação alguma a nos orientar) e tudo será bom enquanto durar, e nada será como antes, porra!
Abraços do amigo Rogê,
P.S.  E quanto a esse seu temor nada viril de que o mundo acabe amanhã – homessa! – tenho apenas o seguinte a lhe dizer: Seja  o que Deus(dêmona) quiser, e estamos conversados!
2. Das duas uma: ou nos reencontraremos no inferno; ou no Amarelinho, ali na Cinelândia, na próxima quinta-feira, na boca da noite, sem falta.





domingo, 18 de novembro de 2012

`O FUTURO É UM MISTÉRIO QUE A GENTE NUNCA SABE DE CIÊNCIA CERTA EM QUE MOMENTO O CAMINHO DÁ UMA VIRADA E PARA QUE ESTRANHOS LUGARES NOSSOS PASSOS CAMINHAM´ (ROBERTO BOLAÑO - 1953-2003). OU 2666


POR MOTIVOS  RELIGIOSOS 

O BLOG O LOBO NO AR ESTÁ

FORA DO AR POR TEMPO

 INDETERMINADO. QUANDO

A LUZ VOLTAR, SE ALGUM DIA

VOLTAR, HÁ CONTROVÉRSIAS,

RETORNAREMOS  NOSSAS POSTAGENS.

NESTE ÍNTERIM LEIAM ECLESIASTES.

ESTÁ TUDO LÁ, MEU NEGO, MINHA

NEGA. DEPOIS É SÓ APERTAR O

GATILHO E PARTIR PRO ABRAÇO.

O LOBO (sem ar, antes de mergulhar)