quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A HORA DE BRINCAR DE NÃO CRER NUM DEUS QUE PODE TUDO

Gosto de brincar de acreditar em elucubrações aparentemente disparatadas tipo: 1) Deveríamos prestar mais atenção nas pistas que nos são apresentadas algo aleatoriamente no decorrer das nossas vidas. 2) A partir dessas pistas poderíamos decifrar alguns indícios e sinais a respeito do que poderá ocorrer nas nossas existências futuras.

Gosto também de brincar de duvidar de certos dogmas que nos querem enfiar goela abaixo desde o começo dos tempos: quem disse, caro leitor, que as ciências ditas exatas e as explicações-mágicas-que-as-religiões-propõem explicam as diatribes diárias que nos bombardeiam?

Gosto ainda de brincar de me perguntar: como explicar, sob a ótica quadrada da razão, ou da des-razão religiosa, o fato de certa criança sobreviver à enchente bíblica que dizimou a casa na qual morava e que lhe dizimou todos os parentes, inclusive a irmã que lhe era gêmea?

Diante dessas tragédias sempre surgem cientistas e sociólogos querendo dar alguma lógica a algo que não tem, nem nunca terá, lógica alguma (procurar sentido onde não há sentido algum é meio assim como ir pescar sem levar redes e anzóis, e, pior, num mar, ou rio, onde não haverá peixe algum e num lugar onde não haverá mar, ou rio, algum). Essas opiniões são talvez necessárias (no sentido de tentar evitar o pânico absoluto e de tentar nos apascentar), mas demonstram-se falsamente terapêuticas, algo assim como tomarmos comprimidos para aquela enxaqueca, que, sabemos, alguns dias depois certamente voltará. 

Há também (geralmente famílias encantadas com o fato de o filho ter sobrevivido, e a filha do vizinho, sucumbido àquela tragédia) quem, em entrevistas exibidas ad nauseam pelas nossas estações de tevê, vocifere que o mentor desse, digamos, vaudeville-trágico-dramático no qual estamos completamente imersos, atenda pelo nome de Deus, Alá, e derivações, e brade: - Foi Ele que salvou nosso menino. Foi Ele! Ele queria que nosso menino continuasse vivendo!

A pergunta que me surge, inexorável, diante desses depoimentos absurdamente patéticos que marcam todas as grandes coberturas de tragédia, é a seguinte: Por que Deus poupou a gêmea que sobreviveu (a amaria mais que a outra?), e matou a gêmea que foi sugada pelas águas (a amaria menos que a outra?

(Quem quiser pensar mais sobre esse tema, temos ótima opção em cartaz nos cinemas, ou nas boas lojas de vídeo: Além da Vida/Hereafter, dirigido por Clint Eastwood. Eu recomendo.).

Talvez não precise nem dizer, mas digo, e digo peremptoriamente: acredito mais na existência de Papai Noel do que nesse Deus eternamente bêbado (e que seus adoradores teimam em definir-lhe as ações erráticas com que nos bombardeia com pueril e inócua boutade: esse vetusto Senhor escreveria certo por linhas tortas). William Shakespeare, mais sensato e mais cínico, foi mais direto ao ponto, e cravou, na voz de Macbeth, em peça teatral homônima: ``A vida é uma história contada por um Deus bêbado, cheia de som e fúria, e não significando nada.´´  

Diante dessa insanidade que prega, em campanha midiática que tem a idade do mundo, a existência de um Deus que sempre sabe o que faz, resta-me sonoramente gargalhar. Diante dessa óbvia falta de sentido do mundo (apud Eclesiastes & Dostoiévski & Faulkner & Tolstoi e toda a grande literatura que, felizmente, nos cerca) talvez nos reste brincarmos daquele bem-humorado passatempo citado no primeiro parágrafo: tentar descobrir em algumas pistas que a vida nos apresenta aleatoriamente algum indício de nossas vidas futuras. 

Em 2008, assim que troquei Brasília pelo Rio de Janeiro, recebi e-mail bem-humorado de amigo querido que conquistei durante os cinco meses que trabalhei em Campinas (SP) no ano anterior. Ele dizia: - Você está se repetindo. Morou aqui no bairro do Botafogo, e agora, aí no Rio de Janeiro, também está morando no bairro de Botafogo.

À primeira vista, não dei maior atenção à observação feita por esse amigo querido. Tinha mais o que fazer. Mas, de repente, do nada, no meio de longa caminhada pela Praia de Boa Viagem, no Recife, em meados do ano passado, onde passava temporada de trabalho, o tema insinuado por esse amigo querido me veio à tona inesperadamente: - Essa Boa Viagem que agora percorro diariamente antes de seguir para o trabalho me remete a outro lugar também chamado Boa Viagem, e que eu frequentava muito em tempos idos. Afinal de contas, não perdia uma festa da Boa Viagem sequer que ocorria em todos os primeiros dias do ano em Salvador.

Fiat lux: a observação blasé feita pelo meu amigo campineiro me arrebatou com força incontrolável. Entre o Pina – na ponta norte da praia recifense, ao lado do bairro Brasília Teimosa – e Jaboatão dos Guararapes - já na área metropolitana da capital pernambucana - minhas sinapses cerebrais convergiram num único ponto: lembrar nomes de pessoas, de cidades, de bairros, de situações, de tudo enfim, que  pareciam se repetir ao longo da minha vida.

Lembrei-me, por exemplo: Pernambuco (em cuja capital viera morar temporariamente atendendo a um inesperado convite, e que amara, e amo, de maneira inesperada e surpreendente) era o código secreto que o meu pai Crispim Menezes usava na loja comercial que tinha em Jequié-Bahia, nos idos dos anos 1960, e na qual, embora de má vontade, odiava aquela rotina, trabalhei alguns anos durante a minha infância. (Necessária explicação: os comerciantes de antanho criavam palavras-código com as quais marcavam os preços de custo dos produtos à venda. Por exemplo: se determinada mercadoria estivesse marcada com as letras P-E-R significava que custou 123 moedas da época, o que nos permitia calcular a margem de desconto que poderíamos dar ao cliente).

Enfim, a seguinte, e talvez insana, idéia me arrebatou: aquela palavra Pernambuco surgindo no meu caminho na mais tenra infância não quereria significar que o lugar Pernambuco cruzaria o meu caminho em algum lugar do meu futuro, e nele viveria aprazíveis e inesquecíveis dias, como, de fato, vivi?

Nos 16 quilômetros do percurso de ida e volta da Praia da Boa Viagem, anabolizado pela endorfina que essa longa caminhada me fazia produzir sem parar, outras dezenas de insights dessa natureza me cruzaram o cérebro.

Por exemplo: o Botafogo, bairro no qual moro hoje no Rio de Janeiro, foi bem mais que a repetição do bairro homônimo e menos famoso de Campinas, como o meu amigo campineiro notou. Fora o nome do time pelo qual torcera fervorosamente na minha infância nos anos 1960, e do qual lembro até hoje de figuras lendárias como Manga, Garrincha, Gerson, Nilton Santos, Amarildo, Didi e Zagalo. (E qual foi o bairro no qual me hospedei na primeira vez que vim ao Rio de Janeiro, em 1972: Botafogo.)

Para encerrar: nos anos 1960, criança ainda, morava na Avenida Rio Branco, 817, em Jequié, na esquina  de certa rua chamada Silva Jardim. Nessa época, ônibus e caminhões que cruzavam a Rio-Bahia ainda não passavam por fora da cidade: cruzavam ruas centrais jequieenses, inclusive essa esquina ao lado da casa onde morava.

Bem nessa esquina da minha casa, havia placa indicativa da distância de minha cidade até esta capital carioca. Todo santo dia, na verdade, toda santa hora, lia o que estava escrito nessa placa – e o que estava escrito nessa placa era: Rio de Janeiro, 1360 quilômetros.

Mais de quarenta anos depois, muitas outras cidades depois, 1360 quilômetros depois, eis-me aqui morando no Rio de Janeiro.

Responda rapidinho, caro leitor: é ou não é mais salutar e, no mínimo, lúdico, brincar de enxergar recorrências que nos ofereçam eventuais pistas dos nossos destinos futuros do que brincar de crer num Deus aterrador a que tudo pode, e que poderá dispor de nossas vidas como bem quiser e entender?

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A ESCRITORA URUGUAIA, O SURFISTA PAULISTA E UM LUGAR QUE NÃO EXISTE

Do nada as pessoas surgem. Do nada as pessoas desaparecem.  Já tentei resolver equações assim, que fazem alguém entrar em (nossa) cena, mas que também fazem alguém desaparecer de (nossa) cena. Já atravessei madrugadas insones elucubrando sobre coisas do tipo: a) o que explica o fato de X aparecer inesperadamente na vida de Y?; b) o que faz com que, em algumas horas, ou em poucos dias, X se torne vital para Y?; c) o que significa quando, de repente, X some completamente, para todo o sempre, da vida de Y?

Já fui X. Já fui Y. O caro leitor também já foi X. O caro leitor também já foi Y. Todos nós já fomos bafejados por essas tramoias do destino  que nos desconcertam e que  nos desorientam. Na verdade, nada faz muito sentido. O jeito é fingir que entendemos a piada, e irmos em frente. Ponto.

Mas gostamos de brincar de olhar para trás, e de ruminarmos sobre o nenhum significado dessas situações inusitadas que nos ocorrem diuturnamente. Ou de especular, sem esperança alguma de encontrar respostas, o porquê de certas pessoas entrarem (inesperadamente)  e saírem  (também inesperadamente) das nossas vidas.

(Duas dessas minhas recorrentes ruminações me inspiram a escrever esta crônica.)

Caso X-1: 1988. Fiz primeira viagem ao exterior. Levava 2 mil dólares no bolso. Passei dois meses viajando por vários países da Europa. Depois de três semanas em Madri, Espanha, aproveitei o tentador preço de final-de-semana-em-Paris, que custava uma bagatela. Detalhes reveladores: 1) a viagem seria feito de ônibus; 2) o hotel no qual me hospedaria não seria, biensûr, o Ritz; 3) como viajava sozinho, dividiria o quarto de hotel com alguém que conheceria posteriormente, ao embarcar. 4) percebi, desolado, que se tratava de atroz roleta russa, na qual poderia deparar com matrona gorducha e rabugenta ou com velho babaquara a bordo de halitose devastadora. (Ou não. Mas tinha de pagar pra ver - e paguei.)

Na noite do embarque, em fria noite madrilenha de início de dezembro, entro em abafado escritório que serve de plataforma de embarque. Sento-me, e avisto a paisagem humana ao redor. Penso em desistir de Paris e voltar para o apartamento aconhegante do amigo que me hospedava na Calle de Vallehermoso, tal a, digamos, escassa beleza física dos companheiros de viagem. Respiro fundo, tento acreditar fervorosamente no conceito então muito em voga de beleza interior, e, ok, concluo: let it be, o que tiver de ser será

Entro no ônibus cheio de ansiedade, coração aos pulos. Disseram-me que o meu companheiro (ou minha companheira) de viagem e de quarto de hotel eu só conheceria no ônibus: seria a pessoa que sentasse ao meu lado. O tempo passa,  e ninguém senta ao meu lado. O que poderia ser bom augúrio (ter quarto ocupado apenas por mim) ou mau augúrio (essa pessoa chegaria tão em cima da hora que não daria tempo de, ao perceber quão monstruosa era essa criatura, pular pela janela e sair correndo pelas ruas madrilenhas).

Alivio-me: enfim alguém senta ao meu lado - e não é alguém qualquer. Trata-se de um dos homens mais lindos que já vi. Cumprimentamo-nos simpaticamente. Mas o diabinho-pessimista-que-me-habita me pentelha, sem dó nem piedade:
- Ele deve ser um espanhol mala, com chulé, e machão, e que vai lhe encher o saco o tempo inteiro... Kakakakakaka!!!!

O diabinho-que-me-habita-e-que-me-pentelha está redondamente enganado. O rapaz sentado ao meu lado é encantador,  é surfista, e se chama Márcio B. Não é  espanhol; é paulista, de Santos. A melhor notícia daquela estação: revelou-se,  nos três dias que passamos juntos em Paris, companheiro de viagem fantástico, tipo assim aquele que toda sogra gostaria de ter. Essa alvíssara me fez crer, pelo menos durante o tempo que dura esse espetacular final de semana parisiense: Deus existe, e, melhor, Deus me ama muitíssimo.

Bebemos champanhe vagabunda no topo da Torre Eiffel. Flanamos bêbados pelas ruas de Paris. Dormimos feito irmãos amorosos na estreita, e tosca, cama do quarto de hotel da Rue Magenta. Nunca fiquei tão íntimo de alguém em tão pouco tempo. Ao final da viagem, talvez pudéssemos concluir: a) eu conhecera o homem (no sentido mais amplo da palavra) da minha vida; b) Márcio B. conhecera o homem (no sentido mais amplo da palavra) da vida dele.

Na viagem de volta, trocamos afetos, endereços e telefones (ele iria para Londres; eu, para Roma). Abraçamo-nos efusivamente ao descermos do ônibus em Madri. Nunca mais nos vimos.

Caso X-2: 2001. Viajei de Brasília para São Francico, com conexões em São Paulo e em Los Angeles. Deu tudo errado. Pra começo de conversa, ao desembarcar nos Estados Unidos, funcionário com cara de fuinha da imigração não gosta de minha cara, cisma comigo, me faz interrogatório intimidador que me faz gaguejar, e quase chorar. Enfim me libera, mas, antes, como se fosse maneira peculiar de me enxotar, passa a mão gorda na minha bunda. Penso em reagir, em bradar em alto e bom som um contundente kiss-my-ass, mas desisto.

Afinal, adentrei o paraíso, pensei. Ledo, nagle, e ivo engano. O inferno apenas começara. Não consigo achar a esteira com a minha mala. Ao conseguir achar a esteira onde a minha mala deveria estar, descubro, desolado: naquela esteira não há mais mala alguma.

Quero chorar, quero gritar, quero voltar correndo para o colo de minha mãe. Contenho-me: já tenho mais de 40 anos, e podem pensar que sou terrorista. Circulo feito trôpego zumbi por todas as esteiras que possam ocultar a minha mala querida. Depois de alguns minutos de busca frenética encontro-a, solitária, e estoica, em lugar que não fica próximo a esteira alguma. Abraço-a, como se fosse a mulher ou o marido que volta da guerra são e salvo - e recomeço a minha saga.

Então percebo pouco mais da paisagem ao redor. Noto mulher morena e de curtos cabelos pretos. Ela me segue. Também empurra nervosamente uma mala, e também ostenta certo ar de pavor. No início tenho-lhe medo. Aos poucos, no entanto, constato: meio que nos espelhamos. Temos o mesmo ar de pavor, o mesmo pânico de estarmos em lugar no qual não conhecemos ninguém e no qual tudo dá absolutamente errado.

Enfim, essa mulher se aproxima, e fala portunhol algo familiar. Diz mais ou menos assim:: - Per supuesto, estamos no mismo barco. Tibo problemas na imigracion, casi perdi mi bagage e tambien estoy perdida....

Paramos para respirar. Dialogamos em idioma, digamos, próximo ao esperanto. Descobrimos: ambos deveríamos pegar a mesma conexão para São Francisco. A questão crucial agora é saber onde fica o terminal que nos embarcará. Com o nosso inglês esperântico, conseguimos captar opiniões absolutamente díspares a respeito de onde se localiza o terminal no qual deveremos embarcar. Uns dizem (ou assim entendemos): fica à esquerda. Outros dizem (ou assim entendemos): fica à direita.

Olhamo-nos estupefatos, e ela, decidida, esbraveja: - Vamos pra esquerda, mierda!. Fomos. A todo minuto temo que estejamos indo na direção errada, mas já estou cansado demais para contra-argumentar-lhe. E quem sabe não estará certa? E, de fato, está. Meia hora depois conseguimos chegar ao nosso terminal, e, milagre dos milagres, educadíssima funcionária da companhia aérea nos atende solicitamente e nos encaixa no voo seguinte para São Francisco.

Enfim, relaxamos: sentamos para um café. Descobrimos, encantados: somos ambos escritores e jornalistas (eu, brasileiro; ela, uruguaia; eu Rogério; ela, talvez-Isabel; mas não tenho mais certeza a esse respeito). Constatamos, mais encantados ainda: adoramos romance epistolar escrito por Honoré de Balzac intitulado Diário de Duas Jovens Esposas.

Continuamos a conversa literária no avião. Na chegada em São Francisco, eu e o amigo americano que me esperava de carro no aeroporto, a convidamos (e também ao marido dela que a fora receber) para pegar carona conosco até o hotel onde ambos se hospedariam. 

Na porta do hotel, trocamos cartões, telefones, e-mails, e efusivos abraços. Ficamos de nos telefonar para jantarmos nos dias seguintes. Mas ela não telefonou Mas eu não telefonei.

Ao voltar para o Brasil, sempre lembrava dessa escritora-uruguaia-talvez-chamada-Isabel. Mas o tempo foi passando,  e eu a fui esquecendo. Antes que esse esquecimento me arrebatasse, certo dia não contive o impulso, e lhe enviei eloquente e-mail. Foi devolvido: e-mail desconhecido ou inexistente, dizia automática mensagem de retorno.

Moral desta fábula transcontinental: o futuro é lugar que não existe.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O VELHOTE JOSÉ, O BEBÊ MIGUEL & O CADÁVER ÀS MARGENS DA BAÍA DE GUANABARA

O oásis no fim da caminhada diária de quinze quilômetros pelo Aterro é o quiosque de toldo verde do senhor José, na ponta sul da praia do Flamengo. O comandante-em-chefe desse balsâmico lugar é velhote mal-humorado que aprendi a gostar. Do alto de 80 anos bem vividos, pode se dar ao luxo de responder com murmúrios quase imperceptíveis aos nossos bons-dias - e de fumar cigarrinho escondido sempre que pode, longe dos olhos da freguesia eclética que o frequenta diariamente para consumir águas de coco, cervejas em lata, refrigerantes, e guloseimas calóricas diversas.

Todo dia estou lá. Todo dia lhe cumprimento cordialmente (´Tudo bem, seu José?).  Todo dia me esforço muitíssimo para desvendar o que dizem aqueles murmúrios quase imperceptíveis, e ainda não consegui desvendar esse enigma. Tais murmúrios podem, claro, retribuir, calma e solenemente, os nossos bons-dias com outros bons dias. Mas podem também retribuir, calma e solenemente, os nossos bons-dias com imprecações tipo ´vá plantar coquinhos´ (em versão mais light), ou ´vá se foder´ (em versão mais hard).

Na verdade pouco me importa o que o senhor José murmura entre dentes. O que me importa é que o senhor José, acredite se quiser, com todo o azedume que o marca indelevelmente, é pessoa a quem  me afeiçoei. Não me afeiçoei apenas ao senhor José, mas à clientela eclética que o frequenta: a) gays estrangeiros & nativos sessentões; b) cinquentonas carentes a bordo de cachorros que tratam como se fossem filhas, as quais batizam com nomes humanos tipo Beatriz e Sabrina; c) aposentados que discutem política fervorosamente; d) casais dispostos a discutir a relação tendo como cenário o Pão de Açúcar ao fundo; e) turistas-deslumbrados-com-a-paisagem que a tudo fotografam; f) alegres famílias com renca de filhos e de parentes falastrões.

Na quarta-feira, 9, revia com carinho alguns desses personagens, quando percebi dois estranhos no ninho:  em cadeira à minha direita sentava-se jovem mãe, não mais de 20 anos, que carregava no colo bebê recém-chegadíssimo ao mundo. A jovem mãe exibia nonchalance que me impressionou. Com uma mão sorvia água de coco. Com a outra dava de mamar ao rebento.

Sedes saciadas (a da mãe e a do bebê), a jovem mãe colocou o filho no carrinho estacionado ao lado. O pequerrucho ajeitou-se no ninho sem um balbucio sequer, superprofissional, descoladíssimo. Em seguida, passou a contemplar a paisagem ao redor.

A jovem mãe abriu o jornal do dia na página de tevê, e mergulhou em contrita leitura.

Encantei-me. Abandonei a minha água de coco, e lhe perguntei: - O bebê já tem dois meses?

A jovem mãe, tirando com algum esforço o olhar da coluna de tevê do jornal:- Dois meses? Que nada! Ele nasceu há quinze dias!

Espantei-me com a, digamos, enorme juventude do meu novo-companheiro-de-quiosque-do-senhor-José, e quis lhe saber o nome:. A mãe, agora mais atenta à minha presença (já acabara de ler a coluna de tevê), afirmou, risonha e franca: - Miguel.

Despedi-me de Miguel, da mãe de Miguel, da cadela labrador Sabrina, do senhor José, e peguei o caminho de casa.

Dia seguinte, 10, de novo a caminho do Aterro do Flamengo e, depois, do quiosque do senhor José, ainda trazia o recém-chegadíssimo Miguel na cabeça. Decidira escrever crônica sobre Miguel, e sobre o quiosque do senhor José (o homem velho em contraponto ao homem novo; meu cérebro se afundava em lorotas assim). Mas o imponderável despontaria na próxima curva - e me revelaria o terceiro, e inesperado,  personagem desta crõnica: semicoberto com dois enormes sacos para carregar lixo da Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana), às margens plácidas da Baía de Guanabara, jazia corpo de homem. (A alguma distância do cadáver, dois ou três carros dos bombeiros e da polícia, e alguns caminhadores trocávamos impressões sobre o ocorrido; ´morreu a tiros no começo da manhã´, alguém comentou).

Sofri certo choque, mas fui em frente. Dei duas voltas no Aterro do Flamengo. Passei pelo quiosque do senhor José (e percebi, desolado, que Miguel e a mãe não voltaram ao lugar). O que significava, constatei, pesaroso: aquele homem morto que avistara algumas horas antes poderia desviar-me do caminho de escrever crônica, digamos, enstusiasta, e edificante, sobre a continuidade e a perpetuidade da vida que a entrada em cena do bebê Miguel sacralizava (o meu cérebro se afundava em lorotas assim).

Ainda tive a esperança de que, na trilha de volta para casa, aquele cadáver anônimo já tivesse sido retirado de cena. Mas não. Continuava lá, e agora a paisagem se revelava ainda mais desoladora: o que via era cadáver ainda mais solitário, naufragado no gramado verdejante que margeia a Baía de Guanabara.

A poucos metros do corpo, catadores de mexilhões, que acampam no local em todos os verões, agiam como se o corpo daquele homem já fizesse parte da paisagem: conversavam, gargalhavam, comiam, trabalhavam.  Agora via-se apenas pequeno carro da polícia, com solitário policial a bordo - e esse policial a bordo fazia cara de paisagem, olhava na direção contrária à do corpo, como se tentasse arrancar da cabeça (para todo o sempre) aquela visão macabra daquele cadáver anônimo.

Também tentei fazer cara de paisagem. Mas caí em tentação: olhei agudamente para o cadáver agora apenas parcialmente coberto (o vento forte destruira parte dos sacos plásticos de lixo da Comlurb). Avistei duas pernas magras, provavelmente jovens. Uma das pernas esticava-se inteiramente. a outra, arqueava-se, como se a morte o tivesse arebatado antes de o homem ter conseguido esticá-la totalmente.

Segui em frente, sem sequer olhar para trás. Dali a algumas dezenas de metros, pensamento arrebatou-me. Era como se aquele cadáver anônimo implorasse: - Escreva sobre mim, escreva sobre mim!

O mal-humorado, mas querido, senhor José  e o jubiloso recém-nascido Miguel hão de me entender: esse imponderável cadáver anônimo acabou se tornando o terceiro personagem dessa crônica - e este cronista que vos escreve roga aos céus: que  José e o Miguel vivam até os cento e poucos anos - e que morram durante o sono, em paz, a léguas da morte inglória desse homem que morreu cravado de balas às margens plácidas da Baía de Guanabara.. 

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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A TENTATIVA VÃ DE ARRANCAR MACISTE DAS GARRAS DA MORTE

Prólogo: Avenida Joana Angélica, 23, terceiro andar, Salvador, Bahia. 1969. Noite. Três mulheres choram desabridamente. A bordo de bobs nos cabelos, camisolões folgados que escondem excessos calipígios, e certo pathos rodriguiano, assistem,  contritamente, a emocionante capítulo da novela Rosa Rebelde,  exibida pela TV Globo. Parecem, de tão imersas nessa trama rocambolesca imaginada pela dupla Glória Magadan/Janete Clair, prantear a morte do pai querido, do filho querido, do amante querido, da cachorrinha querida.

De repente, vinda da cozinha onde diuturnamente preparava almoços e jantares em que pontificavam sopas feitas a partir de gordos nacos de carne, entra em cena velha e inesquecível senhora. Apesar dos mais de 70 anos que a contemplam, ostenta cabelos pretos como as asas da graúna (sempre presos em coque), e anda a passos firmes e decididos. Chama-se Ana, ou, como preferíamos, Tia Birri : era madrasta de meu pai, e eu a admirava muitíssimo pela garra com que enfrentou, muito jovem ainda, a viuvez do meu avô paterno, com nada mais nada menos do que nove filhas para criar - três das quais, ainda solteiras, continuam a chorar desabridamente diante do aparelho de tevê em preto e branco.

Tia Birri, voz tonitruante, passa, teatralmente, e propositalmente, entre o apararelho de tevê em preto e branco e as filhas telecarpideiras. De repente, estanca. Diante do pranto coletivo daquelas três mocetonas, vocifera, brada: - Cambada de desocupadas! Vão procurar o que fazer! Estão chorando por quê? Tudo isso é mentira! Deslavada mentira, estão entendendo? Men-ti-ra! 

Apesar da ira de Tia Birri., nada mudava. Todas as noites, Tia Birri vociferava contra a choradeira  generalizada das filhas ainda solteiras. Todas as noites, as filhas ainda solteiras (que acabariam desencalhando anos depois) de Tia Birri telecarpiam  mágoas diante diante de mais um capítulo de Rosa Rebelde.

Vi essa cena muitas vezes. Via tudo com os olhos de adolescente que recém-saíra da uterina casa materna-paterna e fora morar durante um ano com todas essas mulheres de forte inspiração rodriguiana. Via tudo como se fosse peça de teatro hipperrealista (além do cheiro da comida vinda da cozinha, sentia-se no ar o cheiro forte de perfume e talco baratos - hoje,  presumo:  as filhas telecarpideiras de Tia Birri se perfumavam e punham pó de arroz para assitir aos capítulos da telenovela).

Sempre que via essa cena, relembrava outra cena que também demonstrara o quanto o ser humano e o drama - de boa ou má qualidade, pouco importa; drama é drama - formam intrincado ecossistema.  Essa outra cena acontecera alguns anos antes, quando, infante ainda, assistia à matinê dominical no Cine Auditorium, em Jequié-Bahia.

Epicentro dramático Escurinho do cinema. Tarde de domingo. 1965. Talvez 1966. Cheiro forte de suor e chulé,  misturado a sabonete Palmolive, desodorante Van Ess em bastão e brilhantina Glostora. O filme em exibição: Maciste, Gladiador de Esparta, com Mark Forest (mas poderia ser Maciste contra o Sheik, com Ed Fury). Lotação esgotada, e calor insuportável que os  velhos e lentos ventiladores não davam nenhuma conta - e nós suávamos que nem cuscuzes.

Meninos, principalmente meninos, nos esgoelamos a cada aventura vencida pelo herói, e urramos, urramos, e urramos. É como se de cada luta vencida pelo mocinho então de plantão dependesse o futuro de nossas vidas. As meninas, bem, as meninas eram em menor quantidade. Na verdade, as meninas não gostavam muito de filmes de Maciste. Na verdade, as meninas morriam de raiva pelo fato de nós, meninos, pelo menos naquelas gloriosas tardes de domingo, preferirmos os bíceps de aço do herói mítico a elas.

De repente, não mais que de repente, um desses meninos,  que, sob o escurinho do cinema em nada se diferia do resto da manada, dá um tilt, sofre um curto-circuito inesperado, e tudo parece fugir do script de todas as tardes de domingo.  Diante da possibilidade inesperada de o herói Maciste beber o vinho envenenado que o vilão (ou vilã?), traiçoeiramente, tenta enfiar-lhe goela abaixo, certo garoto levanta de cadeira a poucos metros de mim, e explode num piti espetacular que entraria para a posteridade jequieense.

E nós, os meninos e meninas presentes ao Cine Auditorium naquela tarde de domingo, entre pasmos e fascinados, então ouvimos:  - Pelo amor de Deus, Maciste, não beba este vinho! Este vinho está envenendado! En-ve-ne-na-do! Eu não quero que você morra. Eu não quero!

O cinema veio abaixo. Ed Fury (ou Mark Forest?) que se fodesse. Agora o centro das atenções deixava de ser o filme (honra ao mérito, noblesse oblige) e passava a ser esse garoto exaltado que não continha a enoooorme paixão que nutria por Maciste, e que não queria deixá-lo morrer envenenado e que acabou virando o herói dessa hoje longínqua  tarde de domingo..

Epílogo: nos meses e anos seguintes, na pacata Jequié-Bahia, aquele garoto exaltado e destemido daquela matinê dominical, a bordo de jeito, digamos, delicado de ser, e de jeito, digamos, algo fora dos padrões masculinos então em vigor,  se tranformou em centro de olhares e de atenções. Resultado: por conta daquela cena inesquecível que protagonizou, passou a ser chamado carinhosamente de Maciste. Ele talvez preferisse ser chamado de Mirela Márcia ou Renata Cleópatra, ou, como alguns chegaram a insinuar, de Macista.

Mas o tempo pasou,  e Maciste aceitou, sem pejo, a alcunha com que a cidade o consagrou.

Esteja onde estiver, vivo ou morto, que Deus, ou quem de direito, o tenha e o proteja, caro Maciste-de-Jequié-Bahia!