quarta-feira, 24 de agosto de 2011

JAMBOS E HOMENS (OU ROGAI POR NÓS, FODIDOS E SÓS!)

No alto verão (entre dezembro e março) os frondosos jambeiros do Aterro Flamengo deixam-se derramar, deixam-se eclodir, deixam-se sangrar. Os jambos vermelhos despencam das árvores, como se cometessem suicídio em massa – e se não morrem no impacto com o solo, sucumbem pisoteados por caminhantes apressados e ciclistas idem – que os transformam em maçaroca  pastosa e vermelha e nojenta, em contraste gritante com o negro do asfalto quente.
Necessário informar: nem todos os jambos vermelhos despencam das árvores, como se cometessem suicídio em massa. Nessa época de safra pródiga em frutos suculentos, gentes da região e d´alhures costumam colhê-los diretamente do pé. Minutos depois, voltam para casa com cestos e sacolas entupidos de jambos vermelhos sobre as corcovas.
(É bonito de se ver: no coração da metrópole, urbanoides inveterados agem como se num ambiente rural vivessem e, sem intermediários, sem uso de dinheiros, retiram diretamente da fonte frutos que, mais tarde, se transformarão em doces, compotas, geleias, ou serão comidos in natura.)
Há outro tipo de colheita menos sazonal,  e mais circunstancial, que ocorre no Aterro do Flamengo  (acontece sempre que a região, um dos lugares mais bonitos do planeta Terra, precisa ser maquiada para inglês e estrangeiros em geral verem): a de mendigos e de moradores de rua.
Ao contrário dos jambos vermelhos, os mendigos e moradores de rua não despencam das árvores. Ao contrário dos jambos vermelhos, nunca são tão sazonais. Parecem brotar do chão o tempo inteiro, seja na calada da  noite, seja sob  sol escaldante. Meio como se surgissem inesperadamente do nada – e, ao vê-los à distância, não temos, nós, que temos casa, comida e roupa lavada, a mais remota ideia de onde aquelas criaturas vieram e para onde aquelas criaturas irão.
Também não têm época certa para brotarem: brotam diuturnamente, de domingo a domingo, de verão a verão, de dezembro a dezembro, de sempre a sempre.
A colheita de mendigos e moradores de rua não segue os ditames da mãe-natureza. São de outra ordem. Obedecem a critérios mais, digamos, mundanos. Na maior parte do tempo, não há ninguém que os colha, ou os recolha. (No máximo, nos penalizamos e nos compadecemos quando os vemos, e é só; drogados por endorfinas diversas que nos arrebatam, apertamos o passo, acionamos o sempre útil botão do foda-se  - e   seguimos nossas vidas, lépidos e fagueiros, até que, inesperadamente, morramos de susto, bala ou vício).
Essas criaturas ordinárias que percorrem os quatro cantos do Rio de Janeiro, em vã tentativa de achar um lugar pra chamar de seu, parecem mais ratos que homens (e, pensando bem, qual é mesmo a diferença entre o homem e o rato? Ah, sim: jogue os dois na parede: o que guinchar é o homem).
Vivem ao deus-dará, ao léu, podem morrer neste minuto que o leitor ora me lê; ou daqui a dois dias; ou daqui a dois meses;  who cares? ou, alguns, até mesmo já morreram (e pensamos, o que de alguma maneira nos conforta, que, em vez de mortos, tenham mesmo é um sono de pedra, ou, pior, tenham  ´a vida que pediu a Deus´  - como ouvi de simpático senhor que desfila diariamente pelo Aterro do Flamengo com seu adônico dog alemão chamado Uriel).
Há cerca de um mês (a partir da limpeza generalizada e superficial que se fez em todas as cercanias do Aterro do Flamengo,  por conta da realização do sorteio dos países da Copa do Mundo de 2014, na Marina da Glória), as colheitas de mendigos e de moradores de rua recrudesceu: tornou-se rotina diária. Invariavelmente, lá pelas 10 da manhã, dois furgões da prefeitura se encarregam da faxina.
Ao final da colheita matinal – que vai do Monumento a Estácio de Sá aos quintais do Museu de Arte Moderna – os furgões se abarrotam. Ás vezes consigo ver os seres humanos (re)colhidos através do vidro das janelas dos grandes carros que passam ao meu lado, e percebo, ou quero crer que percebo: ostentam certo ar melancólico, mas, talvez, alvissareiro. Como se cressem:  magicamente, a vida de merda que levam deixará de existir, e, em algum lugar do Rio de Janeiro, poderão ser felizes para todo o sempre.
Há quem, coberto de razão, não acredite nesse final feliz de novela de tevê, e tente impedir que alguns desses mendigos e moradores de rua sejam levados por esses furgões-que-os-levarão-sabe-se-lá-pra-que-lugar-do-inferno. Dia desses, dois desses furgões pararam a pouca distância de mim: dois homens fortes desceram dos carros, e esses dois homens fortes colheram um morador de rua/mendigo que se deitava ao lado da via. Acordado pelos dois homens fortes, espreguiçou-se, abriu os olhos lentamente, olhou em volta com um olhar de peixe (super)morto; por fim levantou, e se deixou enfiar num dos dois furgões.
De repente,  surgiu do meio do nada homem esbaforido que começou a correr atrás dos dois furgões, aos berros: - Pare, pelo amor de Deus. Pare! Correu tanto e gritou tanto, que os dois furgões em retirada e o homem esbaforido enfim se encontraram. Ouviu-se  então o seguinte diálogo:
Homem esbaforido: - Esse home num é vagabundo não, doutô. É trabaiadô, me ajuda ali naquela barraca de praia. Só aproveitou a forguinha que lhe dei para tirar soneca...
Fortão-de-um-furgões: - Trabalhador que nada! Com esse bafo de cachaça, ele num é trabalhador nem na casa do caralho!!!!
Homem-esbaforido:  - É sim. Ele trabaia comigo. Ele num é vagabundo não...
Fortão-de-um-dos-furgões: - E por que ele não falou nada quando a gente pegou ele?
Homem-esbaforido:  - Ele é mudim, douto, mudim. Se não foi por causa deu, o doutô podia levá ele pro inferno que ele nunca ia falá nadinha, nadinha...
(E assim se salvou o mudinho das garras dos dois-fortões dos dois-furgões)
A colheita prossegue dia sim, outro também, e dia sim, outro também, presencio essa colheita macabra.  Hoje pela manhã, reencontrei  os mesmos dois-furgões de sempre, comandados pelos dois-fortões de sempre. Os carros estavam superlotados, parecia ser quase o fim da colheita diária.  Ainda assim, os dois-fortões dos furgões, olhos de lince, avistaram homem gordo e negro; vestia roupas imundas; sentava-se num daqueles bancos do quintal do Museu de Arte Moderna; apreciava a paisagem da Baía de Guanabara; alheio, parecia, a tudo e a todos.  
Os dois fortões-dos-furgões, ambos negros retintos, cercaram o homem-também-negro-retinto que apreciava a paisagem e  berraram: - E aí, negão, vai com a gente hoje ou não vai? Vamos lá, negão, deixa de vagabundagem! Vem com a gente, negão! Você não vai se arrepender, negão!
O negão perseguido não pensou muito - se pensasse muito, preferiria qualquer furgão à (não) vida que vivia fora daquela bela paisagem da baía de Guanabara – e escafedeu-se por entre as belas palmeiras imperiais que enfeitam o lugar.
Um dos fortões-dos-furgões vociferou: - Deixa de ser otário, negão! Vão é te matar qualquer hora dessas, negão! Você vai se foder, negão!
O negão-em-fuga, suando em bicas, passou por mim como uma flecha (gorda), e berrou: - Deus é mais, Deus é mais!
Que seja, caro leitor, que seja!
    

 
 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

QUEM NÃO QUER UM REYNALDO GIANECCHINI PARA CHAMAR DE SEU? (OU MELANCOLIA)

Responda rapidinho, caro leitor, antes que o nosso vigilante e truculento superego, sempre alerta, tão rápido no gatilho como John Wayne, nos pegue de jeito e nos faça dizer exatamente o contrário do que poderíamos realmente estar pensando bem lá no fundo d´alma:
 1) Você daria ao Reynaldo Gianecchini, não daria?
2) Você comeria o Ronaldo Gianecchini, não comeria?
3) Você trocaria aquele eventual baranga, ou barango, que tem em casa e que lhe azucrina diuturnamente por esse homem lindo que se chama Reynaldo Gianecchini, não trocaria?
4) Você, cara sogra, caro sogro, adoraria  que Reynaldo Gianecchini se tornasse o marido de vossas filhos e de vossos filhos, não adoraria? E telefonaria para todos os amigos comunicando-lhes essa espetacular notícia, não telefonaria?
Enfim, atire a primeira pedra aquele homem, ou aquela mulher, que viu Reynaldo Gianecchini na tela da tevê ou do cinema, ou no palco de teatro, e que de lá no fundo, de bem no fundo d´alma não tenha dito para si mesmo/a (silenciosamente mas enfaticamente):  ´Ah, meu Deus, como eu gostaria de ter esse cara ao meu lado na cama, e de chamá-lo de meu, todo meu para todo o sempre!´
A essa altura, o caro leitor ou leitora, agora já devidamente invadido e arrebatado pelo superego sempre alerta e vigilante, poderá começar a sentir profunda raiva deste cronista – e alguns até falarão em voz alta para se convencerem do que estarão dizendo: `Quem é esse Rogério Menezes de merda que fica generalizando sentimentos e desejos que na verdade são dele e apenas dele?´
Pode ser. Deve ser. Talvez tenha generalizado demasiadamente o quão belo e quão guapo e tão desejável seja esse vigoroso ator de novelas, filmes e peças de teatro. Ou não. 
Mas não tenho pudores , e atesto e dou fé:
1) Reynaldo Gianecchini (e as eternas apaixonadas mulheres de Chico que me perdoem, é bem mais bonito, mas bem maaaaaaisss bonito que o excepcional compositor e mediano escritor Francisco Buarque, o qual admiro profundamente (mas não comeria).
2) Eu, Rogério Reis de Souza Menezes, R.G. 00 884 771 18 SSP-BA, RP: 1195 – 102 -04 DRT-BA, me casaria, e me casaria ontem, com Reynaldo Gianecchini (se o cara quisesse casar comigo, claro; sou  homem que lida razoavelmente com rejeições, e tentaria partir para outra). Repito: me casaria ontem com Reynaldo Giannecchini na Igreja do Outeiro da Glória, de véu e grinalda, dressed by Vera Wang. Trilha sonora: a madre superiora Elton John tocaria no piano a canção I´m Your Man, e eu sussurraria no ouvido de meu noivo:  `If you want a love/I´ll do anything you ask me to´´. Forever, of course.
Claro, o leitor mais abusado e mais estraga-prazeres poderá querer cortar o meu barato, e bradar: 1) R.G. tem halitose; 2) R.G. ronca;  3) R.G  é totalmente heterossexual. Não cortarão. Sabemos, desde o advento do genial Billy Wilder: ninguém é perfeito.
Agora, mudemos o rumo da prosa, e falemos sério, caro leitor: esse belo homem, esse ator em processo, esse objeto do desejo de milhões de brasileiros e brasileiros, soube-se na semana passada, está sendo devorado por câncer voraz. Que poderá matá-lo. Ou não. Não há garantia alguma. Ainda que todos nós torçamos para Reynaldo Gianecchini sair dessa – e estamos todos torcendo para Reynaldo Gianecchini sair dessa –  Reynaldo Gianecchini poderá não sair dessa.
Clamores populares nem sempre são ouvidos pelo Todo-Poderoso, sabemos.   Às vezes, Ele se faz de surdo. Às vezes Ele adora pirotecnias e efeitos especiais - vide a queda das Torres Gêmeas em 2001, e o o tsunami avassalador que matou trezentos mil na Indonésia, no final de 2004. Às vezes, Ele adora tramas folhetinescas diante das quais até os mais fortes choram - vide a morte de Ayrton Senna em 1994 e a morte de Lady Di, em 1997. Às vezes, Ele se torna uruguaio desde criancinha e faz 150 mil brasileiros chorarem em pleno Maracanã, como aconteceu em 1950, quando o Uruguai venceu o Brasil por 2 a 1, e se tornou Campeão Mundial de Futebol.
Quem avisa amigo é: essa Cara é caprichoso. Donde podemos deduzir: pelo modus operandis do, digamos, comandante em chefe, estamos diante do absolutamente insondável, do inexoravelmente irremediável. Basicamente: paira sobre todos nós o grande espanto de não sabermos onde estaremos no próximo segundo, no próximo minuto, na próxima hora. Em quatro palavras: caos  cowboy, sem gelo.
Perguntas, entre milhões, que não conseguimos responder: a) Por que Reynaldo Gianecchini e  não aquele homem que matou quase cem pessoas na Noruega há algumas semanas foi premiado com câncer linfático? b) Por que crianças inocentes de três, quatro, anos de idade são vitimadas por câncer e crápulas que se pavoneiam e se locupletam no Congresso Nacional vivem até os 80?; c) etc etc etc etc etc?  Ou seja, temos porquês para caralho.                                           
Há muitíssimas evidências de que estejamos, tal e qual as avestruzes, enfiando gulosamente a cabeça no chão, para não flagrar o que acontece ao redor. Preferimos brincar de ser felizes.  Até entendo essa nossa procura de pontos de fuga. Chego até a achar essa nossa atitude de legítima. Enfrentar a vida sem qualquer tipo drogas (legais ou ilegais), de qualquer tipo de muleta, não é moleza não, meu irmão. 

A consciência dessa falta de sentido da vida tem a idade do homem – (e essa reflexão é exposta por Jose Saramago no que talvez lhe seja o livro mais seminal: Caim. A necessidade de o homem fingir que a vida tem algum sentido, também. Normal. Esse é o grande enigma, e um fascinante enigma, que a vida nos reserva: Para que porra existimos? Por que porra existimos?
Novidade alguma nessa discussão, mas é sempre importante que essa discussão seja retomada. O livro Eclesiastes, de A Bíblia Sagrada, é tão absolutamente revelador da falta de sentido da vida, que é quase impossível não se pensar em suicídio após lê-lo. De lá para cá, todos os grandes escritores, e todos esses grandes escritores bebem dessa fonte literária bíblica (dos gregos a Shakespeare; de Faulkner a Dostoiévski; passando por Tolstoi e Celine; e pelos contemporâneos Amós Oz e Orham Pamuk; entre tantos outros) - todos navegamos por essas águas profundas, e, portanto, difíceis de serem navegadas. 
Neste século 21, o mergulho nesse assunto será cada vez mais inexorável. Que o digam os magistrais filmes Melancolia (de Lars Von Trier) e A Árvore da Vida (de Terence Malick), recém-estreados nas telas brasileiras. Ambos batem nessa mesma e fundamental tecla: quem é esse Deus que dispara aleatoriamente catástrofes e cataclismas, alegrias e tristezas, mortes e vidas, contra os que, teoricamente, teriam sido criados à imagem e semelhança Dele? 
Escrevo a respeito de como somos vulneráveis e sinto imediata vontade de citar verso magistral de Castro Alves (escrito no século 19, mas absolutamente malickiano, absolutamente larsvontriano: ´Deus, ó, Deus, onde estás que não respondes, em que mundo, em que estrela t´escondes, embuçado nos céus?´
Atesto para os devidos fins: preciso crer na existência de um Deus – e creio na existência de um Deus – e é a esse Deus no qual acredito mas que talvez não exista que quero rogar pela cura do belo Reynaldo Giannechini, e da redenção de milhões de pessoas que sofrem, e sofrem muito, mundo afora – e que Deus enfim nos escute. Amém.

PS: Quer saber? A vida não é para ser explicada, é para ser vivida.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O HOMEM NU E MAGRO CONTRA O GATO ENDEMONIADO (OU A VIDA É UM BARCO À DERIVA)

Tenho paixão abissal por crianças, gatos e, mais recentemente, por cachorros – basicamente labradores e golden retrievers. São os únicos seres vivos que me fazem abrir enorme sorriso quando os vejo, mesmo que, lá pelas profundezas d´alma, eu esteja mais assemelhado com alguma tela do artista holandês Willem De Kooning  (1904-1997) – como esta, ali embaixo e à direita, que ilustra esta crônica – do que comigo mesmo.
Vezes sem conta paro no meio de rua movimentada da zona sul do Rio de Janeiro, em frente a algum carrinho de bebê. Ato seguinte: aceno, com cara de idiota para pequerruchos que ali vicejam, para pequerruchos que têm a vida inteira por vir – meio assim enorme folha de papel em branco na qual tudo ainda será desenhado. (Eles, os recém-chegados bebês, às vezes retribuem o aceno, às vezes sorriem simpaticamente, às vezes fazem cara de paisagem como se eu fosse absolutamente transparente. Mesmo assim, sempre saio desses encontros mais lépido,  e mais fagueiro)
Vezes sem conta paro no meio de rua  movimentada da zona sul do Rio de Janeiro para apreciar belo golden retriever que desfila garbosamente puxado pelo dono, ou dona. Podem me chamar de louco, mas, geralmente, os cumprimento:  Hi, Golden, hi! Mas eles, sempre compenetrados, não dão a menor bola. Ou apenas abanam o rabo, e tenho a (falsa) impressão de que o balançam para mim. Também não resisto a labradores: sempre passo a mão sobre o dorso deles, e eles me olham com aqueles olhares transcendentais que parecem de (justa) compaixão, e seguem em frente.
Vezes sem conta paro no meio de rua movimentada da zona sul do Rio de Janeiro para apreciar um gato, quaisquer gatos. Sentados nos jardins de algum edifício da Glória; lagarteando ao sol na janela de uma casa de vila em Botafogo, dormindo a sono solto numa loja que vende velharias em Laranjeiras; ou simplesmente apreciando a bela paisagem da baía de Guanabara pelos quatro cantos do Aterro do Flamengo.
Dois desses gatos moradores do Aterro do Flamengo me são muito diletos: 1) cinzento e tigrado feito meu falecido Ravic, faz ponto em frente à estação de tratamento do Rio Carioca; cobiçadíssimo, nem sempre tenho o privilégio de afagá-lo. Ás vezes, tamanha a vontade de afagá-lo, e sem pressa, espero que algum outro caminhador o afague e o acaricie antes de mim, e espero a minha vez de fazê-lo. Vale a pena. Ele retribui a cada passada de mão no dorso dele com olhar verde esmeralda de cortar corações, e abana freneticamente o rabo. Às vezes me segue por uns 50 metros, o que me obriga a me despedir de maneira mais enfática, e ele volta para o seu canto, estoico.
Há outro gato encantador, em tons de cinza e branco, que faz ponto no píer que fica no final da praia do Flamengo, a poucos metros do Porcão. Raras vezes o encontro acordado: dorme sossegamente, absolutamente zen, por baixo dos bancos de madeira, sob as pernas dos muitos velhinhos que tomam sol no local. Quando o encontro acordado, aceita cada carícia minha como se fosse a oitava maravilha da terra. Chamo-o de o gato bon vivant: parece estar sempre de bem com a vida (e o invejo por isso) não importa o que diga o noticiário alarmista, ou que presencie pequenos furtos nas cercanias (garotos a bordo de bicicletas, ou de skate,  estão por lá diariamente furtando correntinhas de ouro, relógios e celulares, - enquanto isso, a Guarda Municipal, a bordo de vans, recolhe  diariamente os moradores de rua que infestam o local, e que nunca roubam ninguém. (Ah, esses homens.... pobres homens).
Por esse amor imorredouro por crianças, cachorros e gatos, fato inesperado, ocorrido em Porto Alegre no final de setembro de 2010, me deixou, digamos, ligeiramente perplexo. Depois de seis meses de maratona de trabalho duro entre Recife, Brasília e Rio de Janeiro, resolvi visitar alguns amigos gaúchos queridos, muito queridos. Hospedei-me na casa de Daniele e Luciano Seade, ambos jornalistas, ambos deliciosas e encantadoras criaturas. Aceitei a hospedagem sem titubear: afinal de contas, além de conviver por alguns dias com pessoas muito especiais, criavam  gato de três anos de idade, chamado Liam – e, a essa altura do campeonato todos os meus poucos leitores sabem que, para mim, ter gato (criança e cachorro) por perto significa meio caminho andado rumo à felicidade e à plenitude.
Cheguei ao aconchegante apartamento dos meus amigos no igualmente aconchegante bairro Cristal, e, depois dos abraços e carinhos sem ter fim que marcam o reencontro de velhos amigos, fui apresentado a Liam. De minha parte, e não poderia ser de outra forma, foi amor à primeira vista. Ele, embora me olhasse com a beatitude dos felinos (que nem sempre é tão beatitude assim; já os conheço de longa data), foi econômico nas retribuições aos meus gestos de carinho.  Mas, insaciável na minha sanha de amar gatos, fiquei meio cego diante de algumas claras evidências: ele, às vezes, me olhava de jeito meio ameaçador, tipo ´vou comer o seu fígado, humano ordinário!´. Dei de ombros: no decorrer dos dias, tinha absoluta certeza, eu e Liam nos tornaríamos os melhores amigos do mundo.
Não foi bem assim, o mundo não é, nem nunca será, aquilo que gostaríamos que o mundo fosse. No terceiro dia (Daniele e Luciano nos seus respectivos locais de trabalho; eu sozinho em casa), ao voltar da banca da esquina onde fora comprar jornais, percebi estupefato: Liam mijara inteirinha a minha mala preta recém-comprada no Recife. Não havia milímetro sequer que tivesse poupado.
Já ao subir a escada em caracol que dava para o segundo piso (Dani e Lu moram num tríplex confortável, mas sem luxos),  senti o cheiro indefectível da farra urinária que Liam havia feito. Ainda chocado com a óbvia rejeição (literalmente, ele me dera baita mijada, expressando peremptoriamente que a minha presença não lhe era assim tão grata) - olhei para o resto da sala. No alto da estante, os gatos adoram se posicionar em lugares mais altos, o que lhes dá real sensação de poder, vi: Liam me olhava com olhar de ira e raiva profundas.
Ato seguinte: peguei pano de chão e garrafa de álcool na cozinha e voltei para limpar a mala malcheirosa. Comecei a executar a minha tarefa meticulosamente (e nessa minha tarefa meticulosa, percebi que, além de mijar, Liam havia cravado uma de suas unhas na parte posterior da mala, provocando, digamos, cicatriz profunda na parte externa, com mais ou menos vinte centímetros de comprimento).  Aos poucos, percebi um rugido e um esgar assustadores. Ao olhar para trás, vi gato de não mais de três quilos de peso, absolutamente possesso, ou como diria certo personagem de minha infância, `que parecia possuído pelo demônio´. Ele uivava, ele estrebuchava, ele miava, ele chiava em altos decibéis. Pior: num átimo, pulou sobre os meus pés e agarrou uma das minhas combalidas pernocas como se agarrasse as pernocas de Hércules e Superman juntas.
Empurrei-o com o tênis preto (que ele também aparecia odiar; porque era ao tênis preto que Liam se grudava e se agarrava com mais fúria e sofreguidão). Com o empurrão, caiu a alguns metros de mim, e aproveitei a oportunidade para puxar a mala para o banheiro, juntamente com o álcool e o pano de chão, para completar a faxina e tomar banho. Aliviado, embora sentisse que ele rondava a porta do banheiro, limpei a mala completamente. Ou quase completamente: por mais álcool e, agora, gotas generosas do Pinho Sol que havia embaixo da pia, que passasse sobre a mala, o bodum de mijo de gato permanecia – menos, mas permanecia.
Limpeza feita, abri cuidadosamente a porta, e o vi. Ele estava à espreita, exatamente onde a mala estivera antes. Empurrei-a às pressas, e a mala parou no meio da sala. Fui então tomar o meu banho quente e revigorador – mas naquele momento o que sentia mesmo era vontade de tomar generosa dose de conhaque. Mas, claro, não havia conhaque no banheiro de Dani e Lu – e cheguei a pensar em beber restinho de perfume Issey Miyake ou de lamber a chapeleta do desodorante roll-on da Nívea, que carregava na necessaire. Devia ter bebido. Devia ter lambido.
Ao sair do banheiro, apenas com a toalha a me cobrir o corpo magro, a cena que vi me horrorizou: aboletado sobre a mala estacionada no meio da sala estava Liam. Olhava-me com ar imperial,  com raiva descomunal, e emitia sons que não pareciam vir de dentro de  animalzinho de não mais de três ou quatro quilos. Arrepiei-me dos pés à cabeça (é assim que o medo e o terror se revelam em mim). Cheguei a pensar em me trancar no banheiro até Lu e Dani chegarem – mas, porra!, eram dez da manhã, e eles só voltariam no início da noite. O que fazer, caro leitor?
Foi o que o caro leitor pensou exatamente o que eu fiz: puxei a toalha que me envolvia o corpo magro e, completamente nu, enfrentei o, àquela altura, pequeno monstro a toalhadas. Mas, a cada golpe de toalha no chão e a cada grito que berrava (sim eu berrava, eu gritava coisas assim: ´Sai, sai, sai, vai se foder, vá tomar no cu!), mais Liam crescia em performance. Cheguei a pensar em matá-lo (eu com meus parcos 75 quilos; ele com parquíssimos 3 ou 4;  era pule de dez; mas matar um gato? E matar um gato de dois amigos tão queridos? Fora de questão).
Rápido no gatilho (precisava ser; era matar ou morer): atirei, com força desmesurada, a toalha molhada sobre Liam, e, aproveitando o momento de rápido pânico que o tomou, puxei novamente a mala para o banheiro; me vesti às pressas;  peguei a bolsa tiracolo onde estavam dinheiro e documentos; e resolvi cair no mundo (claro, deixando a mala escondida no banheiro).
(Mas entre mim e o mundo, naquela manhã fria de setembro em Porto Alegre, havia gato chamado Liam e, sabe-se lá por que diabos, me tinha escolhido como inimigo mortal para todo o sempre).
Reparei para ver se não tinha esquecido nada, se esquecesse não poderia voltar, e, fui ao combate: saí correndo; peguei a toalha no chão e fui abrindo caminho; enquanto isso, Liam tentava voar em cima de mim custasse o que custasse. Detalhe: para chegar ao primeiro piso e à porta de saída havia escada em caracol, e descer escada em caracol a galope e com gato endiabrando lhe roendo os fundilhos é meio caminho andado para cair e quebrar o pescoço. Mas consegui. Ao bater a porta de saída, ainda ouvi os lancinantes uivos de Liam e o esfregar de unhas dele na porta lacrada.
No BarraShopping Sul, localizado nas proximidades, tentei relaxar, e avisei a Nei, irmão de Dani, e a Dani o que ocorrera. Ambos  ficaram superespantados. Liam era, até então, gato supertranquilo, sempre na dele, meiguíssimo, disseram. Mas fui firme: só voltaria para casa à noite quando Dani e Luciano estivessem novamente em casa.
À noite, depois de muito bater perna por Porto Alegre, e de assistir a filme de segunda para matar o tempo, voltei para casa. (Detalhe: um dos meus planos na viagem para Porto Alegre seria, aproveitando a tranqüilidade da casa de meus amigos, num bairro tranqüilo, rascunhar idéias para romance que, na época, pensava escrever). Dani, Lu e, pasme, o sonso Liam me receberam em festa. Mas, vez em quando olhava para o meu tênis Mizuno preto como se o meu tênis Mizuno preto fosse Cérbero, o cão que guarda as portas do inferno.
Conversamos, fofocamos, brincamos – e fomos dormir. Por precaução, pedi que Liam dormisse na suíte do casal, na qual havia porta que poderia, e deveria, ficar fechada durante toda a noite. Fui atendido. Dormi sono reparador, sem pesadelos nos quais tivesse que enfrentar gatos estripadores. Acordei tarde no dia seguinte relaxado, dei de ombros, e pensei: ´Qual é Rogério, você é um panaca, foi ocorrência banal. Você e Liam vão se dar às mil maravilhas!´ (Dani e Lu já tinham ido para o trabalho).
Então deus ex-machina entrou em cena para, como sempre, detonar a tragédia: vontade intensíssima de ir ao banheiro para fazer o número dois me invadiu inteiro. Minha barriga parecia montanha russa que descarrilaria a qualquer momento. Ou seja: teria que correr o mais velozmente possível para o banheiro mais próximo. Mas, caralho!, me lembrei da advertência que Daniele ao chegar, enquanto me mostrava a casa: ´Aqui no banheiro do segundo andar, estamos com um problema que vamos consertar logo e tu não podes fazer o número 2 aqui, só o número 1, Ok?´
Gelei. Isso significava que, para expelir o monstro que me devorava as estranhas, teria que usar o banheiro da suíte no primeiro andar. Disse merda três vezes, e concluí: não havia nada a fazer a não ser descer a escada em caracol, abrir a porta da suíte, enfrentar a fera, e usar o banheiro da suíte do primeiro andar. Simples assim. Nada é tão simples assim – e não foi.
Ao abrir a porta de correr da suíte do primeiro andar, Liam-Cérbero estava de prontidão: tinha dentes à mostra e uivava e chiava e miava e gania em profusão, como se fosse vários animais ao mesmo tempo, pronto para atacar este pobre mortal. E atacou. Agarrou a minha canela direita com força e som e fúria – e tive que puxá-lo pelo pescoço com ainda mais força e som e fúria, e jogá-lo longe: Cérbero, digo Liam, caiu sobre a cama de casal de Lu e Dani. Imediatamente fechei a porta, e pensei: teria que imaginar plano b para ontem: o monstro que me devorava as estranhas dava sinais evidentes de que nasceria a qualquer momento.
E o plano b, caro leitor, foi o seguinte – tirem as crianças da sala: subi para o segundo andar; encontrei alguns sacos vazios de supermercados; usei-os, perdão leitores,  à guisa de penico. Acocorei-me no banheiro, e, desajeitamente, obriguei aquele monstro que me devorava as entranhas a aterrissar exatamente naqueles saco branco que segurava firmemente com as duas mãos. 
Depois de alguns segundos que pareceram séculos, pequena mensagem de texto circulou pelos meus neurônios: ´Congratulações! Operação realizada com sucesso´. Literalmente: aliviei-me.
Empacotei o monstro que me devorava as entranhas bem direitinho; lavei cuidadosamente as mãos; olhei cuidadosamente o chão do banheiro para ver se nenhum naco do monstro que me devorava as entranhas escapara, e parti para nova caminhada pelas ruas de Porto Alegre, até o anoitecer. Claro, na lixeira da esquina joguei o pacotinho branco de supermercado, forrado por muitos outros sacos, hermeticamente lacrado e forrado – e fui.
Dia seguinte, mudei de planos. Aliás, alguém-fora-de-mim mudou os meus planos – e resolvi passar o resto da semana em Nova Petrópolis, sugestão de Dani e Lu, cidade encantadora pela qual me afeiçoei e pela qual me apaixonei, e para onde voltarei assim que puder.
Nos dias em Nova Petrópolis, dei asas à imaginação: o evento com o gato Liam ocorrera com algum propósito, e que eu não fora parar em vão naquela cidade encantadora. Inebriado pelo vinho e pelo frio e pela belíssima paisagem de montanha ao redor, delirei, e concluí: naquela cidade encantadora na qual fora parar algo aleatoriamente, conheceria o homem do resto da minha vida. Ou começaria a escrever o grande romance do resto de minha vida.
Nada disso aconteceu.
Em compensação, descobri lugarzinho bucólico e encantador que servia as melhores sopas que tomei em toda a minha vida.
 Pode ser desolador, mas não é. É apenas a mais inexorável  verdade: a vida, caro leitor, é um barco à deriva.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MOCREIA, MOCREU & ORFEU (OU SOBRE A IMPORTÂNCIA DE APERTAR O BOTÃO DO FODA-SE)

Vez em quando no meio da madrugada, o baixo Botafogo mergulhado no mais sepulcral dos silêncios, acordo apavorado, com a seguinte constatação me atravessando o coração e a mente e o baixo ventre: nos últimos nove anos teriam me acontecido mais coisas estranhas (aparentemente inexplicáveis) do que coisas ruins.  Talvez o único fato inegavelmente ruim  que me aconteceu  nos últimos nove anos tenha sido a morte do meu melhor-amigo-irmão-camarada, o arquiteto e livre pensador Manoel José Ferreira de Carvalho, em 3 de dezembro de 2005, no Hospital Jorge Valente, na Avenida Garibaldi, em Salvador, Bahia.  
Em seguida a essa constatação, já imerso em insônia insana, a seguinte questão surge, escritas com letras de fogo no teto-céu do quarto: O que será pior?
1.       As ocorrências estranhas, e aparentemente inexplicáveis, e aparentemente inauditas (que nos ferem e nos derrubam como se fossem flechas envenenadas disparadas aleatoriamente por um deus bêbado), e sobre as quais, mesmo que ocupemos o resto da insônia, e, talvez, da vida, nunca encontraremos respostas irretorquíveis?  
2.       As ocorrências ruins, contra as quais nada poderemos fazer  a não ser, desalentados, chorarmos, chorarmos, e chorarmos, e, constatarmos desolados que contra a morte nada poderemos fazer, com nada poderemos detê-la, nada, absolutamente nada?
Aos 35 minutos do segundo tempo, caro leitor, atesto e dou fé: ainda não tenho resposta definitiva sobre as questões listadas acima – e talvez nunca a terei. Fazer o quê?  
Aos  35 minutos do segundo tempo, no entanto, com algum domínio de corpo e de espírito, e de certo jogo de cintura que a idade nos proporciona,  aprendi: o caminho da loucura e do naufrágio é, no geral, levar a vida a sério demais; e, no particular, se levar a sério demais. Foi então que resolvi praticar, e hoje não faria feio em alguma competição olímpica do gênero (que não existe, claro; mas deveria existir):  surfar nessa  onda de ocorrências estranhas e aparentemente inexplicáveis que ocorrem comigo, e também contigo, caro leitor. Em bom português: surfar sobre a (nossa) própria merda, sobre o (nosso) próprio caos.
O pontapé inicial no sentido de me manter imune ao bombardeio ao redor, com o olhar e a cabeça e o tronco firmes ainda que tudo ao redor desabe, e desabe com efeitos especiais que nem Hollywood seria capaz de engendrar, foi dado por certo psicanalista paulistano que frequentei por algum tempo nos anos 1990. Certo dia, cansado dos meus queixumes e dos meus embates com os desatinos da existência, Dr. M.B. disparou, rápido e certeiro:  -  Meu querido, a vida é,  e sempre será, totalmente inexplicável. Não pense tanto, não lute tanto, não se lamente tanto; simplesmente aperte o botão do foda-se, e se deixe levar!
Acatei a sugestão de Dr. M.B com, claro, certa relutância (nessa época ainda me levava muito a sério e ainda acreditava, digamos, nos meus superpoderes). Mas,  enfim acatei – e,  algum tempo depois, já nos anos zero-zero  e de muuuuitas mudanças de rumo efetuadas, resolvi: 1)   mais do que apertar o botão do foda-se,  daria algum nexo literário a essas ocorrências estranhas (ou que eu achava que fossem estranhas); 2) mais do que apertar o botão do foda-se, creria que essas estranhas ocorrências surgiam-me no caminho  exatamente para que eu escrevesse sobre essas estranhas ocorrências. Bingo. Simples assim.
Ok, não menosprezo a imaginação e a criação e a invenção – mas acredito, prefiro,  e pratico, e pratico, prefiro, e acredito contritamente, na (re)imaginação , na (re)invenção), na (re)criação). Ou seja:  nada sobre o qual escrevo, ou escreverei , surge, ou surgirá, a partir do mais inexorável nada, ou, que tal dizer?, do buraco abissal da minha alma profunda.   
De algum tempo para cá, depois de alguns embates com o jornalismo que se faz e se comete aqui, ali & acolá & e alhures, venho  fazendo certa questão de me definir mais como escritor do que como jornalista. O que é deslavada e inexorável mentira.  Ajo literariamente, e interajo com a minha vida e com a vida dos outros (e nestes outros, inclui seres ditos não humanos, tipo gatos, como Ravic, e cachorros, como Martim, os quais reverenciarei até o fim dos meus dias), de forma desabridamente jornalística. Não ando feito maluco 18 quilômetros por dia no Aterro do Flamengo, ou na porra de cidade na qual estiver,  para ensimesmar-me. Ando feito um maluco 18 quilômetros por dia no Aterro do Flamengo, ou na porra de cidade na qual estiver, para registrar o funcionamento e o movimento do mundo, o funcionamento e o movimento dos barcos, o funcionamento e o movimento de mim mesmo e dos demais seres humanos que habitam o planeta Terra.
Há escritores que se isolam em cavernas (metafóricas e não) em busca de musas inspiradoras diáfanas que lhes revelem o que vale ou não a pena escrever about, o que vale ou não a pena desvendar about. Ou que até caminham de quando em vez,  mas sempre ensimesmados e afundados  em caraminholas barrocas, olhando eternamente para o chão e, pior, para o próprio umbigo – mesmo  que, bem ao lado, lhe cruze o caminho algum personagem arrebatador que lhe poderia render  livro arrebatador e que poderia lhe transformar num escritor arrebatador (tipo os contemporâneos Roberto Bolaño & Amós Oz & Philip Roth & Ohran Pamuk & J.M.Coetzee).  
Nada contra esse jeito de o escritor contracenar com o mundo ao redor, e com o próprio umbigo. Mas sou feito de outro barro, de outra lama, de outra merda.
A cada dia que ando no Aterro do Flamengo, ou nas praias imundas da Ilha do Governador, ou no regurgitar frenético do burburinho da Avenida Rio Branco e da Central do Brasil, ou em que porra de lugar do planeta estiver,  cruzo com no mínimo três ou quatro personagens arrebatadores que renderiam romances arrebatadores, e sobre os quais um dia espero escrever romances arrebatadores. Ou não (a vida é caixinha de surpresas, para o bem & para o mal, pois não?).
Dou-lhe, caro leitor, e lhe dou de graça, pelo menos três exemplos desse meu vício nada solitário, do qual não quero me livrar nunca, de observar as pessoas, de olhar-lhes intensamente, de sentir-lhes odores,  de perceber-lhes a respiração, os gestos, os maneirismos  (talvez por isso caminhe sempre de óculos escuros, para que as pessoas não percebam que eu as observe, e, ao se perceberem observadas, enrijeçam, se intimidem, e não ajam como realmente são).
Exemplo 1:  Chamo-a, para meu consumo pessoal: Mocreia I, a louca (às vezes, acordo no meio da noite pensando nela; deus é mais!). Trata-se de sessentona opulenta de carnes mezzo rijas e mezzo flácidas,  não exatamente guapa  (pelo menos para os padrões de beleza em vigor). Infiro, a partir do comportamento e da atitude  que adota em cena: acha-se  linda, maravilhosa, e enxerga nela alguma semelhança física com alguma estrela de cinema de tempos idos (e é o que importa, pois não?).  Sempre a bordo do pathos bonita & gostosa,  desfila corpanzil com todas as polegadas a mais a que teve direito nesses muuuuitos anos de estrada, sem pejo algum. Enfia-se em minúsculo biquíni que usa invariavelmente, dia sim, outro também, chova ou faça sol, esteja quente ou esteja frio, seja na alegria ou seja na tristeza. Usa sandálias de couro, tipo franciscanas, e meias soquete. Na mão esquerda aperta, à guisa, digamos, de adereço de mão, a camiseta enrolada que nunca usou, nem, pelo visto, nunca usará. A mão direita posiciona-se levemente encurvada, e a certa distância da cintura roliça, o que lhe empresta certo ar de quem desfila em passarela invisível para público invisível (pelo menos para mim; para ela talvez não, caro leitor).
Exemplo 2: Chamo-o, para meu consumo pessoal, de Mocreu I, o louco (às vezes, vejo-o em pesadelos, dos quais acordo aliviado, principalmente por perceber que, no escuro da noite, ele não está  ao meu lado roncando como geladeira velha e fungando no meu cangote). Tal constatação não é eivada de desprezo (tenho-lhe, ressalte-se, enorme compaixão), e preciso fazê-la:  na minha modesta opinião, é um dos homens mais feios que já pus os olhos em toda a minha existência: cabeça redonda feito melancia-redonda; cabelos avermelhados, cortados rente na parte traseira da cabeça, e viçosamente cultivados no topo da cabeçorra, como se fosse a crista de um galo gordo, o que talvez o faça se sentir um pouco mais alto, já que não deve ter  mais de um metro e meio de altura. Jovem, talvez tenha entre 30 e 35 anos, anda com a velocidade de uma flecha gorda, de uma corça gorda, apesar do corpanzil barroco que ostenta. Percebe-se, pela força dramática de passadas pesadas e vigorosas, e por certo esgar de dor que lhe atravessa eventualmente o rosto, que trava desesperada luta para perder peso e, quem sabe, caber no corselet que o namorado dinamarquês lhe deu no carnaval passado. O esforço parece ter sido em vão: desde que o vi pela primeira vez, há uns seis ou sete meses, até hoje pela manhã, 4 de agosto, ele, a olho nu, não parece ter emagrecido miligrama sequer. Tal e qual Mocreia I, a louca, parece não ter problemas de autoestima, e marcha sempre com muito garbo e esplendor. Desfila sempre a bordo de calções coloridos e curtos e justos (em assumida postura de expor as coxas roliças que parecem arrancadas de alguma índia tapuia; quem sabe de uma irmã falecida?), e camiseta regata, arrancada assim que o primeiro raio de sol lhe bate na pele morena. Ah,  sim: usa óculos escuros com lentes do tamanho de maçãs, o que lhe empresta um certo ar mezzo Pedro Almodovar, mezzo Cacique Juruna.
Exemplo 3:  Chamo-o, para o meu consumo pessoal de Orfeu  I, o anjo (às vezes me flagro, no meio de alguma insônia, desejando que, ao voltar a dormir, sonhe com ele acariciando o pouco que restou dos caracóis dos meus cabelos). É negro como as asas da graúna, bonito, corpo malhado, corre com elegância, e veste sempre camiseta branca com a inscrição Deus te Ama, e calças pretas com listras brancas nas laterais.  A primeira vez que o vi (há mais de um ano) nada nele me chamou a atenção de imediato, a não ser o seguinte, e inesquecível, detalhe: ao passar por mim,  olhou-me com admiração, e disparou-me à queima-roupa: - Deus lhe protege e lhe ampara, meu campeão. Deus lhe ampara e lhe protege, meu campeão! Foi inevitável: ganhei o dia. Sempre torço para reencontrá-lo diariamente, e receber minha ração diária de, digamos, inspiração divina (e, ainda bem, sempre o reencontro).  

Com o tempo percebi: dizia (e diz) essa frase estimulante e revigorante a todas as pessoas que lhe cruzavam (e cruzam) o caminho.  Não fiquei enciumado. Ao contrário,  a existência de criatura assim, levantando o moral do resto da nossa (sempre) combalida tropa, me emociona e me edifica.
Claro, o cara pode ser louco, poderá alegar o leitor mais cético. OK. Pode ser. Mas, para dizer o mínimo: não seria de todo ruim se todos os loucos (e os que se dizem não loucos) agissem assim.
(Viva Mocreia I! Viva Mocreu I! Viva Orfeu I! Viva eu! Viva tu. Viva o buraco do tatu!)
Moral desta história: olhe ao redor, caro leitor.