quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O HOMEM NU E MAGRO CONTRA O GATO ENDEMONIADO (OU A VIDA É UM BARCO À DERIVA)

Tenho paixão abissal por crianças, gatos e, mais recentemente, por cachorros – basicamente labradores e golden retrievers. São os únicos seres vivos que me fazem abrir enorme sorriso quando os vejo, mesmo que, lá pelas profundezas d´alma, eu esteja mais assemelhado com alguma tela do artista holandês Willem De Kooning  (1904-1997) – como esta, ali embaixo e à direita, que ilustra esta crônica – do que comigo mesmo.
Vezes sem conta paro no meio de rua movimentada da zona sul do Rio de Janeiro, em frente a algum carrinho de bebê. Ato seguinte: aceno, com cara de idiota para pequerruchos que ali vicejam, para pequerruchos que têm a vida inteira por vir – meio assim enorme folha de papel em branco na qual tudo ainda será desenhado. (Eles, os recém-chegados bebês, às vezes retribuem o aceno, às vezes sorriem simpaticamente, às vezes fazem cara de paisagem como se eu fosse absolutamente transparente. Mesmo assim, sempre saio desses encontros mais lépido,  e mais fagueiro)
Vezes sem conta paro no meio de rua  movimentada da zona sul do Rio de Janeiro para apreciar belo golden retriever que desfila garbosamente puxado pelo dono, ou dona. Podem me chamar de louco, mas, geralmente, os cumprimento:  Hi, Golden, hi! Mas eles, sempre compenetrados, não dão a menor bola. Ou apenas abanam o rabo, e tenho a (falsa) impressão de que o balançam para mim. Também não resisto a labradores: sempre passo a mão sobre o dorso deles, e eles me olham com aqueles olhares transcendentais que parecem de (justa) compaixão, e seguem em frente.
Vezes sem conta paro no meio de rua movimentada da zona sul do Rio de Janeiro para apreciar um gato, quaisquer gatos. Sentados nos jardins de algum edifício da Glória; lagarteando ao sol na janela de uma casa de vila em Botafogo, dormindo a sono solto numa loja que vende velharias em Laranjeiras; ou simplesmente apreciando a bela paisagem da baía de Guanabara pelos quatro cantos do Aterro do Flamengo.
Dois desses gatos moradores do Aterro do Flamengo me são muito diletos: 1) cinzento e tigrado feito meu falecido Ravic, faz ponto em frente à estação de tratamento do Rio Carioca; cobiçadíssimo, nem sempre tenho o privilégio de afagá-lo. Ás vezes, tamanha a vontade de afagá-lo, e sem pressa, espero que algum outro caminhador o afague e o acaricie antes de mim, e espero a minha vez de fazê-lo. Vale a pena. Ele retribui a cada passada de mão no dorso dele com olhar verde esmeralda de cortar corações, e abana freneticamente o rabo. Às vezes me segue por uns 50 metros, o que me obriga a me despedir de maneira mais enfática, e ele volta para o seu canto, estoico.
Há outro gato encantador, em tons de cinza e branco, que faz ponto no píer que fica no final da praia do Flamengo, a poucos metros do Porcão. Raras vezes o encontro acordado: dorme sossegamente, absolutamente zen, por baixo dos bancos de madeira, sob as pernas dos muitos velhinhos que tomam sol no local. Quando o encontro acordado, aceita cada carícia minha como se fosse a oitava maravilha da terra. Chamo-o de o gato bon vivant: parece estar sempre de bem com a vida (e o invejo por isso) não importa o que diga o noticiário alarmista, ou que presencie pequenos furtos nas cercanias (garotos a bordo de bicicletas, ou de skate,  estão por lá diariamente furtando correntinhas de ouro, relógios e celulares, - enquanto isso, a Guarda Municipal, a bordo de vans, recolhe  diariamente os moradores de rua que infestam o local, e que nunca roubam ninguém. (Ah, esses homens.... pobres homens).
Por esse amor imorredouro por crianças, cachorros e gatos, fato inesperado, ocorrido em Porto Alegre no final de setembro de 2010, me deixou, digamos, ligeiramente perplexo. Depois de seis meses de maratona de trabalho duro entre Recife, Brasília e Rio de Janeiro, resolvi visitar alguns amigos gaúchos queridos, muito queridos. Hospedei-me na casa de Daniele e Luciano Seade, ambos jornalistas, ambos deliciosas e encantadoras criaturas. Aceitei a hospedagem sem titubear: afinal de contas, além de conviver por alguns dias com pessoas muito especiais, criavam  gato de três anos de idade, chamado Liam – e, a essa altura do campeonato todos os meus poucos leitores sabem que, para mim, ter gato (criança e cachorro) por perto significa meio caminho andado rumo à felicidade e à plenitude.
Cheguei ao aconchegante apartamento dos meus amigos no igualmente aconchegante bairro Cristal, e, depois dos abraços e carinhos sem ter fim que marcam o reencontro de velhos amigos, fui apresentado a Liam. De minha parte, e não poderia ser de outra forma, foi amor à primeira vista. Ele, embora me olhasse com a beatitude dos felinos (que nem sempre é tão beatitude assim; já os conheço de longa data), foi econômico nas retribuições aos meus gestos de carinho.  Mas, insaciável na minha sanha de amar gatos, fiquei meio cego diante de algumas claras evidências: ele, às vezes, me olhava de jeito meio ameaçador, tipo ´vou comer o seu fígado, humano ordinário!´. Dei de ombros: no decorrer dos dias, tinha absoluta certeza, eu e Liam nos tornaríamos os melhores amigos do mundo.
Não foi bem assim, o mundo não é, nem nunca será, aquilo que gostaríamos que o mundo fosse. No terceiro dia (Daniele e Luciano nos seus respectivos locais de trabalho; eu sozinho em casa), ao voltar da banca da esquina onde fora comprar jornais, percebi estupefato: Liam mijara inteirinha a minha mala preta recém-comprada no Recife. Não havia milímetro sequer que tivesse poupado.
Já ao subir a escada em caracol que dava para o segundo piso (Dani e Lu moram num tríplex confortável, mas sem luxos),  senti o cheiro indefectível da farra urinária que Liam havia feito. Ainda chocado com a óbvia rejeição (literalmente, ele me dera baita mijada, expressando peremptoriamente que a minha presença não lhe era assim tão grata) - olhei para o resto da sala. No alto da estante, os gatos adoram se posicionar em lugares mais altos, o que lhes dá real sensação de poder, vi: Liam me olhava com olhar de ira e raiva profundas.
Ato seguinte: peguei pano de chão e garrafa de álcool na cozinha e voltei para limpar a mala malcheirosa. Comecei a executar a minha tarefa meticulosamente (e nessa minha tarefa meticulosa, percebi que, além de mijar, Liam havia cravado uma de suas unhas na parte posterior da mala, provocando, digamos, cicatriz profunda na parte externa, com mais ou menos vinte centímetros de comprimento).  Aos poucos, percebi um rugido e um esgar assustadores. Ao olhar para trás, vi gato de não mais de três quilos de peso, absolutamente possesso, ou como diria certo personagem de minha infância, `que parecia possuído pelo demônio´. Ele uivava, ele estrebuchava, ele miava, ele chiava em altos decibéis. Pior: num átimo, pulou sobre os meus pés e agarrou uma das minhas combalidas pernocas como se agarrasse as pernocas de Hércules e Superman juntas.
Empurrei-o com o tênis preto (que ele também aparecia odiar; porque era ao tênis preto que Liam se grudava e se agarrava com mais fúria e sofreguidão). Com o empurrão, caiu a alguns metros de mim, e aproveitei a oportunidade para puxar a mala para o banheiro, juntamente com o álcool e o pano de chão, para completar a faxina e tomar banho. Aliviado, embora sentisse que ele rondava a porta do banheiro, limpei a mala completamente. Ou quase completamente: por mais álcool e, agora, gotas generosas do Pinho Sol que havia embaixo da pia, que passasse sobre a mala, o bodum de mijo de gato permanecia – menos, mas permanecia.
Limpeza feita, abri cuidadosamente a porta, e o vi. Ele estava à espreita, exatamente onde a mala estivera antes. Empurrei-a às pressas, e a mala parou no meio da sala. Fui então tomar o meu banho quente e revigorador – mas naquele momento o que sentia mesmo era vontade de tomar generosa dose de conhaque. Mas, claro, não havia conhaque no banheiro de Dani e Lu – e cheguei a pensar em beber restinho de perfume Issey Miyake ou de lamber a chapeleta do desodorante roll-on da Nívea, que carregava na necessaire. Devia ter bebido. Devia ter lambido.
Ao sair do banheiro, apenas com a toalha a me cobrir o corpo magro, a cena que vi me horrorizou: aboletado sobre a mala estacionada no meio da sala estava Liam. Olhava-me com ar imperial,  com raiva descomunal, e emitia sons que não pareciam vir de dentro de  animalzinho de não mais de três ou quatro quilos. Arrepiei-me dos pés à cabeça (é assim que o medo e o terror se revelam em mim). Cheguei a pensar em me trancar no banheiro até Lu e Dani chegarem – mas, porra!, eram dez da manhã, e eles só voltariam no início da noite. O que fazer, caro leitor?
Foi o que o caro leitor pensou exatamente o que eu fiz: puxei a toalha que me envolvia o corpo magro e, completamente nu, enfrentei o, àquela altura, pequeno monstro a toalhadas. Mas, a cada golpe de toalha no chão e a cada grito que berrava (sim eu berrava, eu gritava coisas assim: ´Sai, sai, sai, vai se foder, vá tomar no cu!), mais Liam crescia em performance. Cheguei a pensar em matá-lo (eu com meus parcos 75 quilos; ele com parquíssimos 3 ou 4;  era pule de dez; mas matar um gato? E matar um gato de dois amigos tão queridos? Fora de questão).
Rápido no gatilho (precisava ser; era matar ou morer): atirei, com força desmesurada, a toalha molhada sobre Liam, e, aproveitando o momento de rápido pânico que o tomou, puxei novamente a mala para o banheiro; me vesti às pressas;  peguei a bolsa tiracolo onde estavam dinheiro e documentos; e resolvi cair no mundo (claro, deixando a mala escondida no banheiro).
(Mas entre mim e o mundo, naquela manhã fria de setembro em Porto Alegre, havia gato chamado Liam e, sabe-se lá por que diabos, me tinha escolhido como inimigo mortal para todo o sempre).
Reparei para ver se não tinha esquecido nada, se esquecesse não poderia voltar, e, fui ao combate: saí correndo; peguei a toalha no chão e fui abrindo caminho; enquanto isso, Liam tentava voar em cima de mim custasse o que custasse. Detalhe: para chegar ao primeiro piso e à porta de saída havia escada em caracol, e descer escada em caracol a galope e com gato endiabrando lhe roendo os fundilhos é meio caminho andado para cair e quebrar o pescoço. Mas consegui. Ao bater a porta de saída, ainda ouvi os lancinantes uivos de Liam e o esfregar de unhas dele na porta lacrada.
No BarraShopping Sul, localizado nas proximidades, tentei relaxar, e avisei a Nei, irmão de Dani, e a Dani o que ocorrera. Ambos  ficaram superespantados. Liam era, até então, gato supertranquilo, sempre na dele, meiguíssimo, disseram. Mas fui firme: só voltaria para casa à noite quando Dani e Luciano estivessem novamente em casa.
À noite, depois de muito bater perna por Porto Alegre, e de assistir a filme de segunda para matar o tempo, voltei para casa. (Detalhe: um dos meus planos na viagem para Porto Alegre seria, aproveitando a tranqüilidade da casa de meus amigos, num bairro tranqüilo, rascunhar idéias para romance que, na época, pensava escrever). Dani, Lu e, pasme, o sonso Liam me receberam em festa. Mas, vez em quando olhava para o meu tênis Mizuno preto como se o meu tênis Mizuno preto fosse Cérbero, o cão que guarda as portas do inferno.
Conversamos, fofocamos, brincamos – e fomos dormir. Por precaução, pedi que Liam dormisse na suíte do casal, na qual havia porta que poderia, e deveria, ficar fechada durante toda a noite. Fui atendido. Dormi sono reparador, sem pesadelos nos quais tivesse que enfrentar gatos estripadores. Acordei tarde no dia seguinte relaxado, dei de ombros, e pensei: ´Qual é Rogério, você é um panaca, foi ocorrência banal. Você e Liam vão se dar às mil maravilhas!´ (Dani e Lu já tinham ido para o trabalho).
Então deus ex-machina entrou em cena para, como sempre, detonar a tragédia: vontade intensíssima de ir ao banheiro para fazer o número dois me invadiu inteiro. Minha barriga parecia montanha russa que descarrilaria a qualquer momento. Ou seja: teria que correr o mais velozmente possível para o banheiro mais próximo. Mas, caralho!, me lembrei da advertência que Daniele ao chegar, enquanto me mostrava a casa: ´Aqui no banheiro do segundo andar, estamos com um problema que vamos consertar logo e tu não podes fazer o número 2 aqui, só o número 1, Ok?´
Gelei. Isso significava que, para expelir o monstro que me devorava as estranhas, teria que usar o banheiro da suíte no primeiro andar. Disse merda três vezes, e concluí: não havia nada a fazer a não ser descer a escada em caracol, abrir a porta da suíte, enfrentar a fera, e usar o banheiro da suíte do primeiro andar. Simples assim. Nada é tão simples assim – e não foi.
Ao abrir a porta de correr da suíte do primeiro andar, Liam-Cérbero estava de prontidão: tinha dentes à mostra e uivava e chiava e miava e gania em profusão, como se fosse vários animais ao mesmo tempo, pronto para atacar este pobre mortal. E atacou. Agarrou a minha canela direita com força e som e fúria – e tive que puxá-lo pelo pescoço com ainda mais força e som e fúria, e jogá-lo longe: Cérbero, digo Liam, caiu sobre a cama de casal de Lu e Dani. Imediatamente fechei a porta, e pensei: teria que imaginar plano b para ontem: o monstro que me devorava as estranhas dava sinais evidentes de que nasceria a qualquer momento.
E o plano b, caro leitor, foi o seguinte – tirem as crianças da sala: subi para o segundo andar; encontrei alguns sacos vazios de supermercados; usei-os, perdão leitores,  à guisa de penico. Acocorei-me no banheiro, e, desajeitamente, obriguei aquele monstro que me devorava as entranhas a aterrissar exatamente naqueles saco branco que segurava firmemente com as duas mãos. 
Depois de alguns segundos que pareceram séculos, pequena mensagem de texto circulou pelos meus neurônios: ´Congratulações! Operação realizada com sucesso´. Literalmente: aliviei-me.
Empacotei o monstro que me devorava as entranhas bem direitinho; lavei cuidadosamente as mãos; olhei cuidadosamente o chão do banheiro para ver se nenhum naco do monstro que me devorava as entranhas escapara, e parti para nova caminhada pelas ruas de Porto Alegre, até o anoitecer. Claro, na lixeira da esquina joguei o pacotinho branco de supermercado, forrado por muitos outros sacos, hermeticamente lacrado e forrado – e fui.
Dia seguinte, mudei de planos. Aliás, alguém-fora-de-mim mudou os meus planos – e resolvi passar o resto da semana em Nova Petrópolis, sugestão de Dani e Lu, cidade encantadora pela qual me afeiçoei e pela qual me apaixonei, e para onde voltarei assim que puder.
Nos dias em Nova Petrópolis, dei asas à imaginação: o evento com o gato Liam ocorrera com algum propósito, e que eu não fora parar em vão naquela cidade encantadora. Inebriado pelo vinho e pelo frio e pela belíssima paisagem de montanha ao redor, delirei, e concluí: naquela cidade encantadora na qual fora parar algo aleatoriamente, conheceria o homem do resto da minha vida. Ou começaria a escrever o grande romance do resto de minha vida.
Nada disso aconteceu.
Em compensação, descobri lugarzinho bucólico e encantador que servia as melhores sopas que tomei em toda a minha vida.
 Pode ser desolador, mas não é. É apenas a mais inexorável  verdade: a vida, caro leitor, é um barco à deriva.

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