segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

À SOMBRA DA ÁRVORE SAGRADA (OU DELÍRIOS PROUSTIANOS EM MANHÃ DE PRIMAVERA CARIOCA)


Sob o boné preto adidado na lateral com três listras brancas paralelas, o cérebro cozinhava sob o fogo mezzo brando do sol malemolente de fim de primavera carioca. Cozia ao som de jam session intracraniana na qual se misturavam pensamentos deletérios;  desvarios de otimismo; ânsias de vômito; vontade de mandar tudo o mais para o inferno; e otras cositas más.

Quase mandei para o inferno velhusca simpática, mas apalermada, que ziguezaveava a bunda gorda à minha frente, sem saber se levava a bunda gorda para a direita ou  para a esquerda. Quem me salvou de cometer essa indelicadeza imperdoável (não se deve mandar velhuscas simpáticas de bunda gorda para o inferno por motivos tão banais) foi tonitruante voz masculina.  

O dono dessa voz ostentava basta cabeleira grisalha (não, não era Deus), e dizia: - Foi naquele prédio, ao lado daquele espigão, que Carlos Lacerda morou.

Espigão? Carlos Lacerda? Como? Onde? O quê? Meus neurônios cada vez mais amolecidos pelo fogo mezzo brando do sol malemolente de fim de primavera carioca, len-ta-men-te processaram: 1) Espigão-novela-das-dez-da-Globo-nos-anos-1970. 2) Carlos-Lacerda-governador-do-Rio-de-Janeiro-uma-velha-raposa-da-política-brasileira-em-tempos-de-antanho-e-grande-ídolo-político-de-meu-pai-Crispim-Menezes.

Por um átimo, pensei  ter descido na década errada.

Não descera. Olhei para o lado, e vi, e ouvi: o motorista de um daqueles carrinhos que levam turistas para passear pelo Aterro do Flamengo apontava para belo prédio da Avenida Rui Barbosa, e repetia, com entusiasmo, digamos, lacerdista (não, não era Deus): - Foi ali  que o Carlos Lacerda morou. Foi ali!

O meu lado mal-humorado pensou com os meus botões também muitíssimos mal-humorados: - E eu com isso, cara-pálida?

Mas o meu lado cara-pálida, e bem-humorado,  preferiu, nostalgicamente, pescar madeleines. Deu nisso: recuamos no túnel do tempo: anos-2010; anos-zero-zero, anos-1990, anos-1980, anos-1970, anos-1960, avenida-Rio-Branco, 817, quase esquina com a rua Silva Jardim, pacata-cidade-do-sudoeste-da-Bahia, mais exatamente Jequié, também conhecida como Cidade Sol.

No fim desse túnel do tempo havia garoto gordinho que amava concursos de miss e livros de Jorge Amado. Passava naquele exato momento por árvore frondosa da qual se desgarravam insetos minúsculos que provocavam ardor insuportável quando caíam nos nossos olhos, e eles se atiravam nos nossos olhos com volúpia notável.

(Por essa época ele inventou certa lenda macabra para esses ataques: ao mergulharem nos nossos olhos, esses bichinhos, enlouquecidos por viverem aquelas vidas sem sentido, atiravam-se, kamikazes, em direção à morte).

Como se chamavam esses insetos minúsculos que se atiravam, kamikazes, nos olhos humanos, caro leitor? Bingo: la-cer-di-nhas – homenagem torta da população da época a Carlos Lacerda, político carioca de projeção nacional – e aqui, bingo outra vez, essa ciranda madelêinica se fecha.

Sempre ao voltar para casa esse garoto gordinho tinha a farda cáqui do colégio torpedeada por indóceis exércitos de lacerdinhas que, sabe-se lá por quais diabólicos desígnios, adoravam a cor amarela – e a cor cáqui, para lacerdinhas mais otários, parecia o mais exaltado dos amarelos.

Ao chegar em casa, a pouca distância do colégio, a farda desse garoto gordinho estava infestada de pontinhos negros. Mais: lacerdinhas menos felizes, ainda na versão dele, erravam o alvo de propósito, e se afogavam nos olhos desse garoto gordinho.

Esse garoto gordinho não sabia bem o que fazer quando esses lacerdinhas kamikazes mergulhavam-lhe nos olhos vivazes. Constatação hamletiana invadia-lhe: coçar os olhos,  mitigar o ardor ocular, poderia aliviar-lhe, mas certamente, pensava, apressaria a morte dos lacerdinhas kamikazes.

Preferia então caminhar feito robô até em casa, braços e mãos esticados juntos ao corpo, olhos escancarados (fechá-los significava destruir qualquer chance de sobrevida dos lacerdinhas). Protagonizava insana tentativa de impedir que aqueles lacerdinhas kamikazes cumprissem o destino que lhes cabia. Por isso, alguns colegas passaram a chamá-lo de ‘o gordinho maluco’.

Gordinho maluco, o caralho! - no último segundo tentei engolir a frase. Tarde demais. A frase saiu nítida e clara (como se Paulo Autran a dissesse no proscênio do palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro) naquela manhã de sábado sob sob o fogo mezzo brando do sol malemolente de fim de primavera carioca. 

Pude perceber por canto de olho:  mãe zelosa e assustada com o meu berro à Paulo Autran, tirava o bebê do carrinho e o protegia entre os braços (ao fundo o Pão de Açúcar, majestático).

Confundido injustamente com algum bicho-papão materializado às margens da baía de Guanabara, esse garoto gordinho hoje quase-velhote magrinho, correu em busca de seu lado zen, se é que algum lado zen o habita: refugiou-se sob a mais bela e a mais cálida das sombras do Aterro do Flamengo, a que fica sob a, batizada por este cronista que vos escreve, Árvore Sagrada, a rainha-mãe de todas as árvores do Aterro do Flamengo.

Melhor de tudo: dessa frondosa Árvore Sagrada do Aterro do Flamengo não se desgarram aqueles insetos minúsculos, os tais lacerdinhas, que provocam ardor insuportável quando caem nos nossos olhos, e que se atiravam, kamikazes, nos olhos das pessoas na Jequié dos anos 1960.

Bendita Árvore Sagrada!
 




domingo, 27 de novembro de 2011

PARIS PODE SER AQUI NO MEIO DO CAOS DO RIO DE JANEIRO (OU O ELOGIO DA TRAIÇÃO)

O mar não está pra peixe. A amada Paris é logo ali. Há apenas o  Oceano Atlântico entre mim e Paris, e entre Paris e mim. Mas, ai de mim, Paris e eu não nos vemos há oito anos. Morro de saudades. Sei que é amor não correspondido. Mas não faz mal.
Amo Paris mesmo assim.
Mesmo sabendo: Paris não dá bola para mim.
Mesmo sabendo: Paris nunca escreve para mim.
Mesmo sabendo: Será  mais fácil camelo e elefante abraçados passarem pelo buraco de uma agulha do que este anônimo cronista do terceiro mundo conquistar algum dia o coração de Paris.
Fazer o quê? O amor é assim, incondicional. Sem temores. Sem sentido. Sem lógica aparente.
Se o amor é condicional não é amor – é tédio – é o fim do caminho. Pode devolver.
Amo Paris incondicionalmente.
Mesmo sabendo: a) tenho rivais sem conta no mundo inteiro.  b) o coração de Paris é disputado por milhões de terráqueos. c) não tenho a menor chance de algum dia conquistar o amor de Paris.
Paris é o meu homem inacessível.
Paris é a minha mulher inacessível.
Paris é a cidade que eu quero ter nos braços quando morrer.
Mesmo que more no Rio de Janeiro – e o Rio de Janeiro e Paris sejam, cada uma ao seu modo, as cidades mais bonitas do mundo.
Confesso a minha infidelidade, o homem é infiel, sou homem como outro qualquer, logo, a infidelidade é como se nos fosse segunda pele: amo o Rio de Janeiro e amo Paris com a mesma intensidade, e a mesma força dramática, e o mesmo frenesi no baixo ventre.
Já troquei o Rio de Janeiro por Paris várias vezes. Já troquei Paris pelo Rio de janeiro várias vezes. Agora parece que para todo o sempre.
Moro no Rio de Janeiro há quatro anos, depois de inúmeros flertes ao longo de décadas. Penetro e desbravo as ruas do Rio de Janeiro desde sempre. Adoro penetrar e desbravar as ruas do Rio de Janeiro. Mas também adoro desbravar e penetrar as ruas de Paris.
Meu sonho de consumo: ter e possuir e penetrar e desbravar Paris e Rio de Janeiro num ménage-a-trois  do balacobaco, transatlântico.
Aviso aos navegantes: esta é a crônica de uma traição anunciada, e celebrada.
Assim que der, assim que puder, assim que a sorte virar, assim que o mar voltar a estar para peixe, pego o primeiro avião e vou  (re)penetrar e (re)desbravar Paris. Mas, depois, biensûr, batata, pego o primeiro avião de volta e (re)penetrarei e (re)desbravarei o Rio de Janeiro.
Enquanto não dá, enquanto não posso, enquanto a sorte não vira, enquanto o mar não está para peixe, resolvi trair o Rio de Janeiro com Paris, em pleno Rio de Janeiro. Pode ser jogo perigoso. Pode virar peça de vaudeville. (Mais ou menos assim: trair Nair na casa de Joaquim. Ou trair Miguel na casa de Soraia.  
Mas viver não é, e sempre foi e sempre será perigoso?
Então a ideia é: trair Joaquim/Nair na casa de Miguel/Soraia sem culpa alguma. Em público. Em plena via pública.
Em manhã nublada deste novembro às vezes solar, às vezes sombrio – tal e qual eu tu, ele, nós, vós, eles: cometi adultério à luz do dia, cercado de cariocas por todos os lados.
Não, não me entenda mal. Não sou traidor exibicionista. Daqueles que fazem questão de revelar, e de sentir prazer em revelar, a Nair/Joaquim que está lhe traindo com Miguel/Soraia. Mas aconteceu. Acontece.
Em manhã nublada de novembro encaminhei-me para a Praça Paris, no bairro da Glória, nos calcanhares do centro do Rio de Janeiro, nas barbas da Cinelândia. É a mais parisiense das praças cariocas. Mais exatamente: trata-se de simulacro bastante crível de algumas praças parisienses.
(Neste ponto, o Rio de Janeiro parece ser mais generosa com Paris, do que Paris  com o Rio de Janeiro. Desconheço a existência de qualquer Place Riô de Janeirô na capital francesa).
A equação: 1) O nublar do céu. 2) A temperatura não exatamente tórrida, quase fresca. 3) A fonte luminosa na qual golfinhos emitiam potentes jatos d´água. 4) Passarinhos que depositavam dejetos em cabeças de estátuas impassíveis. 5) Garças longilíneas que voam rasante, daqui para ali, e dali para aqui. 6) Bancos nos quais velhos e jovens liam jornais ou simplesmente sentiam o tempo passar sem pressa em dolce far niente inesperado em meio ao caos das cercanias.
O resultado: atmosfera extremamente propícia  para que a (minha) traição se dê, sem sobressaltos, sem flagrantes inoportunos.
Penetrei e desbravei a Praça Paris quase uma dezena de vezes. Senti-me, de fato, em Paris, sem ir a Paris, e sem gastar um tostão sequer em Paris, e sem que a minha sorte tenha virado, e sem que o mar voltasse a estar para peixe.
Dei dez voltas completas pela Praça Paris. No fim da deliciosa caminhada, completamente satisfeito, inclusive sexualmente, (cidades e homens têm para mim o mesmo poder tantalizante),  voltei a pegar o caminho de casa.
Foi quando levantei a cabeça em direção a boreste – e não vi a Torre Eiffel – e não vi Montmartre – e não vi o Beaubourg – e não via a Catédrale Notre Dame de Paris.
O que vi, e me assustei com o que vi, caro leitor, foi o magnânimo e majestático Pão de Açúcar. Espécie de torre de vigia, sempre alerta, como se fizesse questão de presenciar, e revelar que presenciava, esse (meu) ato de traição pública.
Senti-me pouco à vontade. Tal e qual sentir-me-ia se, após noitada romântica com Joaquim/Nair, avistasse, e fosse visto, ao sair de algum hotel vagabundo da Lapa,  por Soraia/Miguel.
Fazer o quê? Fiz cara de paisagem, dei de ombros, e voltei a flanar pela Praça Paris.
Problema: nesse flanar derradeiro, não consegui mais me concentrar em Paris, e motivos havia para não mais me concentrar em Paris.
Ao olhar para fora das grades que cercam a Praça Paris, onde a Glória fervilha;  e vestígios fétidos da Lapa se insinuam; e mendigos ao deus-dará dormem sob marquises ou sob lugar nenhum; e o vigor e o regurgitar frenéticos do centro da cidade do Rio de Janeiro já se fazem tangíveis, reencontrei novamente o Rio de Janeiro que amo (tanto quanto Paris): caótica, confusa, barulhenta, miserável, malcuidada, mas, ainda assim, bela, belíssima.
Paris e Rio de Janeiro são mulheres/homens belos/belas de belezas de naturezas absolutamente diversas. Amo, e amarei, ambas para sempre, de maneira equânime.
O mal-estar ao olhar para o que acontecia fora da Praça Paris adveio do seguinte fato: avistei, a poucos metros uns dos outros, taxistas que desciam dos seus carros amarelos e urinavam em árvores, nas grades da praça, e onde lhes dessem na têmpera.
Sugestão ao alcaide desta combalida, mas esplendorosa urbe: distribuição de fraldas geriátricas para os taxistas do Rio de Janeiro.
Caro leitor: a saudade de Paris bate forte, mas a possibilidade de ir até lá  nos tempos porvir é mais remota que a última batucada? Visite a Praça Paris, na Glória.
Vale a pena, ainda que, entre reminiscência e outra de Paris, o olhar do caro leitor possa flagrar a genitália desnuda de alguma taxista fazendo xixi em via pública.  
Sejamos mais flexíveis: esse choque, digamos, paisagístico será salutar. O mundo nunca foi; não é; nem nunca será coisa só, e sólida. A vida, idem. Nós, também.
Ou seja, precisamos de Paris. Precisamos do Rio de Janeiro.
Confesso: sou dependente químico de uma e de outra. Uma – em veia do braço direito. Outra – em veia do braço esquerdo.  
Ou do jeito que vier eu traço. A vida é curta.










domingo, 20 de novembro de 2011

ANJOS DO INFERNO IRROMPEM A MADRUGADA (OU SONHO DE UMA NOITE DE SOLIDÃO)


Houve um tempo no qual – romanticamente, assim de uma hora para outra no meio da noite – a luz ia embora – e, também romanticamente, assim de uma hora para outra no meio da noite, a luz voltava.  Hoje se diz, sem romantismo algum – quando de uma hora para outra no meio da noite a luz dá lugar às trevas: faltou energia elétrica.

Verdade que, já nessa época, certo locutor de rádio – tirado do ar de uma hora para outra no meio da noite pelo fato de a luz ter dado lugar às trevas – dizia, quando voltava a respirar e a falar, com a solenidade de porteiro de mausoléu:  ‘Estivemos fora do ar por alguns instantes devido à falta de energia elétrica nos nossos estúdios’.

Falta de energia elétrica, o cacete. Na cabeça de pudim desse meninote fascinado com esse jogo de luz e de trevas, esse locutor de rádio – que tirava todo o romantismo do fato de a luz ir e voltar quando bem entendesse e quisesse – era pusilânime idiota.

O que intrigava a cabeça de pudim desse meninote, com o que de fato a cabeça de pudim desse meninote queria se intrigar, era o fato aparentemente inexplicável de que a luz fosse embora e que logo depois a luz voltasse, assim como se tivesse ido ao cabeleireiro, à padaria comprar pão, ao cinema para assistir Mary Poppins, com a chatíssima  Julie Andrews.

Afundava-me em caraminholas: o que a luz estaria fazendo naqueles minutos nos quais ia embora, enquanto nós, para não soçobrarmos nas trevas, acendíamos velas e candeeiros – e rezávamos para que aquela escuridão não durasse para todo o sempre?

Havia até mesmo certo tio-bastardo-muitíssimo-querido (filho de avô paterno com certa mulher-da-vida) que aproveitava esses momentos em que a luz ia embora e, saído das sombras onde morava nas cercanias, nos contava mil & uma histórias. Todas assustadoras. Todas escabrosas. Almas penadas saíam das brenhas e se materializavam embaixo de nossas camas. Mulas-sem-cabeça aproveitavam a escuridão para entrar por baixo de nossas portas e esfregar seus rabos imundos nos nossos narizes.

Era como se quando a luz fosse embora, o mundo parasse por algum tempo – ou morrêssemos por algum tempo – e, mortos por algum tempo e com tudo ao redor parado por algum tempo, deparássemos com esse tio-bastardo-muitíssimo-querido de olhos incrivelmente verdes e de cabelos incrivelmente negros que nos escancarava a porta do inferno – e na cabeça de pudim desse meninote assustado, mas fascinado, a luz ia embora em todos os cantos da Terra e em todos os cantos da Terra tios-bastardos-muitíssimo-queridos também saíam das sombras para nos escancarar todas as portas do inferno.

Ah, mas quando a luz voltava, ah, mas quando a luz voltava, como era verde o nosso vale, era a nossa redenção: eu, pais, irmãos, vizinhos, e – presumia – todos os habitantes  da Terra urrávamos e gritávamos e berrávamos e quase explodíamos de alegria – celebrávamos o fim das trevas.  

Essas algazarras humanas absolutamente carnavalescas e dionisíacas que celebravam o fim das trevas e atestavam para os devidos fins que a luz voltara (embora todos soubéssemos que a luz ia embora outra vez quando menos esperássemos) seriam alguns dos momentos  mais sublimes de toda a minha infância.

Oops!  Tudo escurece de repente neste meio-de-noite-quase-fria-de-novembro no Rio de Janeiro, que, mergulhada em abissal escuridão, some do mapa. A única coisa que reluz na sala escura é o teclado do computador onde escrevo estas palavras – e, pela janela, avisto grupo foliões-fora-de-hora (ainda não é carnaval; ou é?) fantasiados de anjos, com asas, mas com chifres. Esses, digamos, anjos do inferno, cantarolam os seguintes versos: ´Rio de Janeiro/Cidade que me seduz/De dia falta água/De noite falta luz.´ (*)  

Vou à janela e cantarolo animadamente a marchinha carnavalesca com o grupo de foliões-fora-de-hora – mas não consigo controlar o meu pensamento – e pergunta que não queria calar me arrebatou: faltou energia elétrica nos nossos estúdios, caro leitor, ou a luz foi embora – mas logo voltará?

E, de fato, a luz foi embora – mas logo voltou. A sala escura se ilumina novamente. São duas da manhã, mas é mais forte do que eu: vou até a janela novamente, mas os anjos do inferno não cantam mais marchinha carnavalesca alguma. Sumiram. Escafederam-se. Mas avisto o Cristo Redentor novamente iluminado, e, a bordo de alegria que não consigo controlar, que preciso extravasar, grito e urro e berro para todo o Baixo Botafogo acordar.

O interfone toca. Ouço a voz familiar de Francisco, o porteiro da noite: ‘Está tudo bem, senhor Geraldo?’

Esbravejo, indignado: ‘Geraldo, o cacete, mas que Geraldo porra? O  meu nome é...’

Merda! (olho ao redor e vejo a cama vazia): acordei – e todas as luzes da casa estão acesas.

(*) Versos da marchinha carnavalesca Vagalume, de Vitor Simon e Fernando Martins, grande sucesso do Carnaval de 1954, nas vozes do grupo Anjos do Inferno.







domingo, 13 de novembro de 2011

NEM SEMPRE DEUS ESTÁ SOLTO (OU AS TRÊS MARGENS DO RIO)



Rio 1: O jovem ator enfrenta  face a face, ombro a ombro, palmo a palmo, cabeça a cabeça, o sempre soberbo Harildo Deda. É diálogo visceral do espetáculo A Casa de Eros, dirigido por José Possi Neto.  O embate acontece no Teatro Santo Antonio, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. A plateia mal consegue respirar diante de momento teatral tão absurdamente arrebatador: aplausos em cena aberta pipocam aqui, ali & acolá. (Era 1996).
Ao final do espetáculo, em evento comemorativo em torno dessa auspiciosa estreia, dirijo-me a esse jovem ator. Parabenizo-o pelo fato de não ter se intimidado com o fato de contracenar com Harildo Deda, um dos mais importantes atores brasileiros. Ele parece demonstrar certo  constrangimento diante de meu rasgado elogio, e sussurra meio timidamente: - Obrigado!
Rio 2: Outro jovem ator, entre os muitos outros atores do Bando de Teatro Olodum, se destaca em entrevista que este repórter fazia com o grupo, por conta de série de reportagens que então realizava em Salvador para o jornal Correio Braziliense.  Pude constatar rapidamente: ok, todos muito belos, todos muito faceiros, mas afundavam-se em invariáveis timidezes. (Era 1999).
A exceção era exatamente esse outro jovem ator. Diante de minhas perguntas, esbugalhava os grandes olhos, e, risonho e franco, tinha sempre resposta engatilhada na ponta da língua. Não pude deixar de pensar com os meus botões: - Danado de inteligente esse carinha! Vai dar muito o que falar! O tempo passou na janela (É 2011).

O Rio 1 e o Rio 2 desaguaram no mar. Melhor: viraram mar. Tornaram-se dois dos mais consagrados atores brasileiros da primeira década deste século 21. Chamam-se, respectivamente, Wagner (Moura) & Lázaro (Ramos).

(E este Rio 3 que ora vos escreve? Bem, este terceiro rio que ora vos escreve continua rio. Gosto de ser rio – e rio caudaloso, espero – e rio que  continua, basicamente, caminhando e escrevendo, e, como diria aquela popular canção de Geraldo Vandré, seguindo a canção.
Mar à vista? Talvez sim. Talvez não. Nunca se sabe. Nem sempre Deus está solto).




segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A VIDA É CAMINHÃO SEM FREIO DESCENDO LADEIRA ABAIXO (OU A GARÇA E O RATO E O HOMEM)


Primeiro ato: O Rato e a Garça

Às margens da baía de Guanabara, naquela curva de terra e de mar e de ar que marca a fronteira entre os bairros do Flamengo e do Botafogo, ouve-se guinchado abafado e frágil, mas aterrorizante (ab-so-lu-ta-men-te aterrorizante). Imagino: talvez seja alguém que reaja ao ataque de assaltante carnívoro, ou de vampiro ávido por sangue e adrenalina – enfim, alguma ocorrência dessa natureza e desse pathos.

Viro então a cabeça na direção de onde vem o guinchado abafado e frágil, mas aterrorizante: então flagro bela e esbelta e altaneira garça que acaba de bicar com fúria titânica pequenino rato (tão pequeno que posso presumir: trata-se de rato-ainda-quase-bebê) – e tenta engolir esse rato-ainda-quase-bebê gulosamente, vorazmente – como se não houvesse amanhã, nem depois de amanhã, nem ano que vem, nem século que vem, nada, nada além.

Mesmo à distância, percebo: o rato-ainda-quase-bebê luta com todas as pequenas forças que lhe restam para não mergulhar no túnel que o levará à caverna escura dessa garça gulosa da qual nunca sairá. Tenta bravamente se livrar  desse pesadelo, e, tal e qual os desenhos animados à la Walt Disney de antanho, correr de volta para os braços cálidos da mamãe-rato.

Desacelero o passo, mas não o cérebro. Imagino: cenas assim (de pura e inoxidável natureza selvagem, de puro e inexorável terror, disponíveis em vários canais de tevê cabo) seriam completamente banais, extraordinariamente comuns desde que o mundo é mundo; desde que o homem é homem; desde que as garças são garças; desde que os ratos-ainda-quase-bebês são ratos-ainda-quase-bebês – mas isso, merda, não me alivia.

Não estou só nesse pasmo e nesse não alívio diante dessa rotineira tragédia do mundo animal. Duas ou três senhorinhas também diminuem o ritmo da caminhada, viram os pescoços em direção a essa  inesperada ocorrência, e murmuram dois ou três ‘ohs’ sinceros. (Surge em cena até mesmo rapaz com cara de parvo que registra todo o episódio com a câmera do celular).

Em desvairado delírio romântico, tudo em mim passa a torcer desesperadamente para que o rato-ainda-quase-bebê escape do bico afiado dessa garça tirana, se enfie novamente nas pedras que margeiam o mar da baía da Guanabara e, à la Walt Disney, corra para os braços cálidos da mamãe-rato.

Torço em vão: meu próximo olhar, dois passos adiante, já flagra pequeno volume, do tamanho exato de rato-ainda-quase-bebê, a descer devagar, e aos sacolejos, pelo pescoço fino da garça tirana – donde posso, tristemente, concluir, com um travo amargo se espalhando pelo céu da boca: aquele rato-ainda-quase-bebê acaba de entrar no túnel que o levará diretamente ao inferno. Sem escalas.

Segundo ato: O homem e a garça

O cearense Cícero, a bordo de detonado furgão azul-anil, vende água de coco na fronteira sul do Flamengo, quase Botafogo, desde sempre. É homem de bom coração. Vende-me, às vezes, fiado o precioso líquido que comercializa quando esqueço os três reais necessários para a compra em casa, ou em lugar nenhum. Mas, sujeito probo que tento ser, sempre lhe pago o que devo.

Fiado ou à vista, sou freguês desse cearense baixote, que, estranhamente, gerou o galalau Wellington, o filho de quase 1,90 cms de altura, e que o ajuda na faina diária.

Cícero e eu conversamos sobre assuntos triviais, tipo:
1) os ladrões de bicicleta, ou a pé, que assaltam turistas e nativos diariamente;
2) os agentes da prefeitura que, em todo começo de ano, o ameaçam de tirá-lo do local onde trabalha, e no qual tem a melhor vista do Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar e a boca banguela da baía de Guanabara emoldurando tudo; mas, estamos no Brasil, tudo acaba em pizza: em troca de alguns dinheiros, os deixam em paz – pelo menos até o ano seguinte;
3) dúvidas pueris; dia desses ganhou uma fruta, que afirmava desconhecer, de certo freguês abastado, que o encantou, mas que não sabia como diabos se chamava aquela bendita fruta; ao abordá-lo para lhe pedir a santa água de coco de cada dia, Cícero sacou saquinho pardo e amassado do fundo do furgão azul, abriu-o, e me arguiu: - Que fruta é essa? O senhor conhece? Era trivial ameixa, mas ele nunca vira antes ameixa in natura, e lhe disse peremptoriamente: - É uma ameixa! Ele estranhou: - Ameixa? Mas ameixa não é aquela fruta preta, seca e enrugada, enfiada naquelas latas que vendem em supermercados de gente fina? Quase sorri da observação arguta, mas ingênua, do meu amigo circunstancial, e lhe revelei: - Antes de virarem aquelas frutas secas e enrugadas que são trancadas em latas e vendidas em supermercados de gente fina, como você diz, elas, as ameixas, são assim, vermelhas ou pretas, tenras e suculentas, sem nenhuma ruga, e, melhor de tudo, deliciosas.

O pai de Wellinton sorriu desconfiado, agradeceu a informação, e parti de volta para casa feliz: adoro socializar informação.

Além de vender água de coco, Cícero é homem que ama os animais e, principalmente, as garças que fazem ponto diuturnamente nas pedras que margeiam a baía de Guanabara, entre a enseada de Botafogo e o Aterro do Flamengo. Para passar o tempo nos dias de menor movimento, ou até mesmo nos de grande movimento, enfia  vara de pescar entre as pedras onde o Oceano Atlântico arrebenta e espera que algum peixe lhe bique o anzol.

Os peixes que pega são invariavelmente pequenos – e, noblesse oblige, não os leva para casa (para fazer boa fritada e comer com farofa de banana). Os peixes pequenos que Cícero pega têm outro destino: alimentar as garças, que, acostumadas e encantadas com esses mimos, fazem fila sobre as pedras das cercanias, com único intuito: abrir o enorme bico para acolher sofregamente o petisco que ele acabou de pescar. Ordeiramente, assim que cada garça abocanha o pequeno peixe pescado pelo, digamos, bom-samaritano-delas, voa rapidamente, ainda digerindo a iguaria recém-presenteada, e cede a vez à próxima garça faminta.

Sempre que vejo esse ritual incomum, e benfazejo, imagino: uma dessas garças teria sido aquela garça-vilã do primeiro ato; aquela que, sem dó nem piedade, abocanhou aquele ratinho-quase-bebê, e o devorou. Pode ser que sim. Pode ser que não. As garças parecem todas iguais; não há como saber se, entre aquelas belas garças que agora esperam ordeiramente a iguaria que o bom Cícero lhes destinará, esteja aqueloutra, a vilã, a tirana, a pérfida do primeiro ato.

E se estiver, caro leitor? Garças se alimentam basicamente de pequenos peixes que – antes de Cícero existir, ou quando Cícero não aparece para vender água de coco e pescar peixe para as suas garças queridas – são simplesmente bicadas em voos rasantes sobre a superfície do mar da Baía de Guanabara. Simples assim.

A questão é: trapaças da sorte, esses voos rasantes podem resultar em nada, e, sem Cíceros por perto, as garças têm de ser criativas para mitigar a fome que as devora. E, certamente, a garça do primeiro ato, era garça que vivia situação assim: limite. Não devorara  o rato-quase-bebê por maldade, mas por não encontrar o peixe que a alimentaria, ou seja, por falta absoluta de opção.

Moral desses dois atos, aparentemente antípodas, mas exemplarmente complementares: ao contrário de nós, seres humanos ditos civilizados, os animais, ditos não humanos e não civilizados, não matam pelo prazer de matar – como nós humanos o fazemos desde que o mundo e o mundo; e, pelo andar da carruagem, o faremos até o fim dos dias – e sim pela imperiosa necessidade de continuarem vivos.

Epílogo – O rato, a garça, o vendedor de
cocos e um homem que sonha

No céu cor de fogo-que-se-apaga-lentamente da baía de Guanabara (a noite começa a escapulir), ratazana gigante, tão grande quanto o Pão de Açúcar bem ali ao lado, emerge do fundo do mar. Tem a bocarra escancarada e faminta e ávida.

Abocanha tudo que encontra pelo caminho:
a) barco com dois pescadores, e um garoto loiro que carrega pequeno cachorro vira-lata no colo;
b) senhora visivelmente septuagenária que, com largas braçadas, nada da praia do Flamengo até a enseada do Botafogo;
c) uma garça maior, beeeeeem maior do que as que Cícero alimenta – e essa garça beeeeeem maior que as que Cícero alimenta desce a goela imensa da ratazana como se descesse tobogã do Parque Nicolândia, em Brasília;
d) Cícero e Welllington; o pai puxa do cinto o facão com que corta cocos, e, em vão, ameaça a ratazana gigante, e cada vez mais gulosa, mas é devorado implacavelmente, com filho, facão e tudo;
e) pai e filho devidamente deglutidos, a ratazana grande, e cada vez mais gulosa, vem, célere, o cão chupando manga, indócil, olhos esbugalhados que parecem arrancados da Maga Patalogika,  lambendo os beiços de prazer e de lascívia e de tesão em minha direção.

A ratazana gigante e gulosa e ávida está cada vez mais perto. Destemida, sem medo de abalroar os carros que  começam a circular a toda velocidade pelo local, atravessa as duas pistas de automóveis do Aterro do Flamengo.

A ratazana gigante e gulosa e ávida não se intimida: cruza velozmente as duas pistas de automóveis do Aterro do Flamengo, e devora, num piscar d´olhos, caminhão de mudanças da Lusitana, e Ford Ka púrpura, dirigido por mulher, que, apavorada, clama por todos os seus santos de devoção (e consigo ouvir os clamores por São Judas Tadeu, Santa Bárbara, São Miguel Arcanjo, Santo Expe...)

Em vão. Nenhum santo ajuda. O carro que dirige desce a goela abaixo da ratazana agora cada vez mais gigantesca.

Fim de jogo: agora não há mais nada a nos separar. Entre mim e a ratazana superlativa apenas o vazio. Ela tenta me puxar com a língua: sinto o cheiro fétido que vem de dentro dela, e sinto que começo a atravessar o umbral do inferno...

De repente, tudo some. A primeira coisa que enxergo é a grande cortina estampada da grande janela, que lembra os teatrinhos dos circos mambembes da minha infância; depois diviso a estante de livros, e decifro, feliz, a lombada de um deles, onde flameja o número 2666; em seguida, ouço o cantos dos pássaros. Eles pulam, serelepes e radiantes, pelos galhos frondosas da mangueira que viceja sem parar a dois metros do meu quarto, às margens plácidas da Praça Mauro Duarte, no Baixo Botafogo.

Amanhece no Rio de Janeiro, caro leitor. (Bom dia!).    








segunda-feira, 31 de outubro de 2011

AMOR MEU GRANDE AMOR (OU NO METRÔ COM ANGELA RORÔ)

Na ex-capital federal são 17 horas. Pago no guichê seis reais e vinte centavos pela passagem de ida e volta do metrô. Estação Botafogo. Olho em volta. Meu olhar se fixa em senhorinha de cabelos brancos, meio corcunda, que, atabalhoadamente, tenta desvendar os números dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. Detalhe curioso: utiliza-se de lupa para tentar desvendar os números dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. É algo masculina, e se veste com elegância discreta: usa tênis de marca, calça cargo cinza e camisa preta quadriculada. No rosto, zero de maquiagem.
O cabelo grisalho tem corte antiquado, o que a envelhece ainda mais. Finalmente desvenda os números que tentava desvendar, e fala com alguém aos berros. Dirijo-me à plataforma de embarque, e passo rente à velhinha corcunda no exato momento em que se vira em minha direção.
Percebo 1: tem olhos espetacularmente azuis (ou seriam verdes?).
Percebo 2: já ouvira, e ouvira muuuuuuito aquela voz que tonitrua ao celular e que reverbera por um raio de muuuuitos metros.
Percebo 3: aquela senhorinha corcunda é a cantora Angela RoRô – para   quem bato cabeça até hoje – e que cantou grande parte da minha trilha sonora amorosa nos anos 1970/1980.
Penso em abordá-la. Penso em abraçá-la. Penso em lhe dizer o quanto fora importante na minha juventude, o quanto cantara com amigos canções suas em mesas de bar, altas madrugadas, bêbado de lamber sarjeta, apaixonado até o último fio dos cabelos outrora bastos. Mas não sou disso. Sigo em frente. Mas torço para que me siga. E ela me segue. Ao olhar para trás, no fim da escada da plataforma de embarque, vejo: Angela RoRô também desce, sem deixar de falar ao celular.  Desacelero o passo - e torço para que pegue o mesmo vagão de metrô que eu.
Minha torcida funciona: ela estaciona exatamente ao meu lado na plataforma de embarque, e novamente se utiliza da lupa para desvendar os número dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. Então me pergunto: por que diabos Angela RoRô não usa óculos em vez de se utilizar daquela lupa quase obscena que atrai olhares curiosos e sorrisos de escárnio? Elementar, meu caro cronista: vaidade. Talvez tenha concluído, num raciocínio torto e desastrado, que usar óculos a envelheça. Mas o que poderá envelhecer ainda mais esse velhinha precoce que tem apenas 62 anos, a serem completados a 5 de dezembro, e que aparenta ter quase 80?
Lembro então de certo programa ordinário que o canal a cabo Home & Health exibe dezenas de vezes por semana: 10 Anos Mais Jovem. Imagino aquela senhorinha, agora ao meu lado, enjaulada na Cinelândia, com os circunstantes tentando lhe adivinharem a idade (exatamente como acontece no programa ordinário da H & H). Certamente os circunstantes dirão 70; ou 68; ou 75, sabe-se lá. Este cronista, se circunstante fosse  nessa imaginária cena passada na Cinelândia, diria: aquela senhora com dois celulares e uma lupa nas mãos, e agora ao meu lado, teria, sei lá, 75 anos, talvez 70.
Finalmente o trem em direção à Praça General Osório, em Ipanema, chega. Eu e aquela senhora que imagino ter 75 anos, talvez 70, entramos no mesmo vagão. Ficamos a menos de um metro um do outro. Não há lugar para viajarmos sentados. Ficamos de pé. Garota simpática e gentil apieda-se da velhinha que não larga os celulares e a lupa, e lhe oferece o lugar. Ou melhor, tenta. Apesar de a garota simpática e gentil cutucar-lhe o ombro com alguma insistência, ela se finge de surda e de morta, e nem sequer olha para trás.

Percebo 4: ela não quer ser tratada como idosa, e aceitar a oferta daquela jovem simpática e gentil talvez lhe custasse o preço de descobrir que não é mais aquela moçoila atirada que, nos anos 1970/1980, pioneira, assumia-se homossexual publicamente. E mais: corajosamente, transformava o tórrido romance que pugnava com a cantora Zizi Possi em conversas de comadres de todas as idades, de norte a sul, de leste a oeste, do país.
A jovem simpática e gentil dá de ombros, desiste de ser simpática e gentil, e volta a sentar e, a provavelmente ouvir, no aparelhinho-de-som-enfiado-no-ouvido, algum Luan Santana da vida. A velhinha continua a falar ao celular, agora em voz cada vez mais tonitruante. Os passageiros a olham com estranheza. Alguns a encaram fixamente, como se já  tivessem visto aquela senhora antes, em algum lugar da galáxia. Ela percebe que é encarada fixamente e fala ao celular de maneira cada vez mais, digamos, cenográfica – ou finge que fala; para que ninguém a aborde, ou a incomode.
Na estação Siqueira Campos , o vagão se esvazia parcialmente e a senhorinha de resplandecentes olhos verdes (ou seriam azuis?) consegue sentar-se. Mas não para de falar ao celular. Tento escutar-lhe a conversa. Apesar de falar alto, fala rapidamente, aos tropeções, e pouca coisa consigo decifrar. Ouço coisas assim: a) - Não quero mais aquele técnico de som de merda. Ele fodeu com um show meu...  b) - Você está me ouvindo? Você está me ouvindo, porra?´ c) - Afeganistão...  (????) d) - Afeganistão... (????)
Passo o resto da viagem tentando decifrar o que aquela velhinha estaria querendo dizer ao proferir a palavra Afeganistão (ou teria sido Paquistão?) no meio de uma trivial conversa telefônica, e não decifro as outras palavras que diz – ou finge dizer, para não ser incomodada pelos circunstantes. Talvez dissesse palavras sem sentido aparente exatamente para intrigar as pessoas que a rodeavam. Talvez.
Finalmente chegamos à Estação General Osório. Desço antes da velhinha precoce, e, acompanhado de pequena multidão que os vagões acabam de despejar, subo a escada rolante. Olho para trás, tento achar aquela velhinha precoce que atende pelo nome de Angela RoRô. Mas não há nenhuma velhinha precoce que atende pelo nome de Angela Rorô naquelas dezenas de rostos anônimos que contemplo, e que me contemplam.
Angela RoRô sumiu. Evaporou. (Dou de ombros, e sigo o meu caminho).
PS. Dia seguinte assisto ao ótimo Um Conto Chinês. Produção argentina (quando o cinema brasileiro conseguirá produzir filmes assim, simples mas viscerais?) dirigida por Sebastian Borensztein, conta história na qual o imponderável dá o tom. Vaca caída do céu sobre pequeno barco, no qual chinês pede chinesa em casamento, num efeito dominó, muda o curso da história em outro ponto do planeta.
O filme sugere, de maneira delicada e deliciosa: nada acontece por acaso. Na vida (ao contrário do que diz o Eclesiastes) tudo seria zelosamente orquestrado por alguma mão invisível que alguns preferem chamar Deus.
Embora não acredite que alguma lógica norteie essa equação errática que é a vida, adorei o filme – e saio do cinema feliz, querendo crer: as coisas não acontecem conosco de maneira aleatória e disparatada como eu e o Eclesiastes cremos. Não resisto à tentação, e, inspirado pelo leitmotiv do filme de Borensztein, me pergunto: ter encontrado – (por acaso?) – aquela velhinha precoce que atende pelo nome de Angela RoRô, num final da tarde de segunda-feira de outubro, poderá repercutir positivamente, ou negativamente, na minha vida?
Ao escrever este texto, manhã de segunda-feira , 31 de outubro, resolvo testar o acaso: ligo o canal de som MPB da tevê cabo, e desejo, ardentemente, escutar a inesquecível Amor Meu Grande Amor, cantada espetacularmente, com, digamos, o útero, por Angela RoRô. Negativo. Quem ouço é o solar Jorge BenJor cantando O Dia em que o Sol Declarou o Seu Amor Pela Terra.
Nesta des-coincidência, surge, no entanto, outra coincidência: há amor no título dessas duas canções – e desejo, ardentemente, que haja muuuuito amor na minha vida também (e na do caro leitor também) – estamos precisando - amém.

domingo, 23 de outubro de 2011

A VOZ DE UMA SARJETA IMUNDA DA LAPA (OU FRAGMENTOS DE UM DISCURSO DESAMOROSO)

Em manhãs muito chuvosas, não caminho pela Enseada de Botafogo e pelo Aterro do Flamengo. Prefiro enveredar, com o olho aberto, o ouvido atento, e a cabeça no lugar,  por vias mais, digamos, intestinas do Rio de Janeiro. Abro o guarda-chuva comprado a 18 reais nas Lojas Americanas, digo até-logo ao senhor Antonio Menezes, o simpático-porteiro-do-prédio-onde-moro, que tem o mesmo nome de um dos meus tios paternos, e caio na estrada. Destino final: Praça da Cruz Vermelha, no centro da cidade.  

A trilha que percorro é fascinante panaceia de sons, e de paisagens, e de ritmos, e de cheiros, e de texturas: a) pessoas sempre apressadas parecem sair do nada e ao nada voltarem; b) trêmulos anúncios multicores saltam das paredes das casas, dos edifícios, e dos muros imundos; c) automóveis e pedestres travam luta cruenta, geralmente com vítimas; d) aqui, ali e acolá, o desvio ágil de velozes bicicletas na contramão me livra da morte certa, e gulosa; e) trabalhadores empurram carrinhos de mão com traquitanas diversas; f) mulheres gorduchas, algumas grávidas, vendem frutas da estação; g) odores nauseabundos explodem como miasmas fétidos; h) moradores de rua bêbados dormem  ao lado de cachorros esquálidos; i ) garotos famélicos e de olhos vítreos se encostam em quaisquer lugares e se enfiam em camisetas espichadas até os tornozelos; j) lixos são jogados ao léu, ao deus-dará, e parecem, de tão integrados à paisagem, que nasceram ali, feito plantas inesperadas; k) caos; l) caos; m) caos.

O roteiro,  com eventuais variações: Praia de Botafogo. Rua Marquês de Abrantes. Largo do Machado. Rua Senador Vergueiro. Avenida Rui Barbosa. Rua do Catete. Praia do Flamengo. Rua do Russel. Rua da Glória. Rua da Lapa. Largo da Lapa. Arcos da Lapa. Avenida Mem de Sá – onde me deslumbro sempre com lanchonete intitulada Crispim Com Certeza (Crispim é o nome de meu pai, e essa coincidência me acalenta e me faz querer passar ali ontem, hoje & sempre). E, enfim, a Praça da Cruz Vermelha, meio parisiense na intenção, mas absolutamente carioca no gesto. 

Na Avenida Mem de Sá se localiza Instituto Médico Legal desativado (e imagino quantos eventuais ectoplasmas não sobrevoam aquela região, atordoados & perplexos, ou estão presos lá dentro para todo o sempre. Mais coisas me fascinam nessa via: 1) certo Hotel Para Cavalheiros; e imediatamente  imagino que tipos de cavalheiros devam ser os senhores que o frequentam, e que se envolvam em seus lençóis quiçá macios, e sinto vontade de me misturar com aqueles cavalheiros que se envolvem em lençóis quiçá macios;  2) bodegas sórdidas, mas charmosas,  se enchem de homens e de mulheres que se entopem de café, ou de álcool, ou de coxinhas de frango gordurosas; 3) operários esburacam solos com britadeiras frenéticas e derramam litros de suores e aspergem no ar boduns variados;  4) bares e restaurantes tradicionais que viraram moda e são frequentados por gentes vindas da zona sul, tipo o Nova Capela; 5) mulheres circulam, serelepes, com caras amassadas e olhos de ressaca, aparentemente mal-amadas, aparentemente a bordo de vidas sem rumo – e com essas mulheres e identifico, e por essas mulheres sinto intensa compaixão; 6) moradores de rua, sempre em grupos, sempre risonhos e francos, sempre bêbados, flanam para lá e para cá; como se não houvesse amanhã; como se não houvesse tragédia nenhuma na vida que levam; como se fossem cordões carnavalescos hiperrealistas  que não param de dizer impropérios e palavrões de grosso calibre em altos brados.

Nesse frenético pedaço do Rio de Janeiro é impossível andar em linha reta (e, cá pra nós, caro leitor, para que diabos andar em linha reta?): haverá sempre algum excremento humano, ou não, no meio do caminho, do qual você precisará se desviar (ou não); haverá sempre mendigos estirados nas calçadas; haverá, enfim, sempre algo no meio do caminho, seja uma pedra – ou seja lá que diabo seja, talvez o próprio, em pessoa, sabe-se lá.  

Moral desses cinco primeiros parágrafos: caminhar, em manhã chuvosa, do Baixo Botafogo – mais exatamente a partir da Rua General Polidoro, na altura da Rua da Passagem – até à Praça da Cruz Vermelha, e, na sequência, fazer o caminho inverso é prazer inenarrável, quase sexual, para este cronista ávido pelas entranhas de cidades (grandes e pequenas) e de pessoas (grandes e pequenas).

Quarta-feira, 19 de outubro: outra manhã chuvosa abre os braços sobre a Baía da Guanabara, e não vacilo: abro o guarda-chuva comprado a 18 reais nas Lojas Americanas, digo até-logo ao senhor Antonio Menezes, o simpático-porteiro-do-prédio-onde-moro, que tem o mesmo nome de um dos meus tios paternos, e caio na estrada.

(Vou até a Praça da Cruz Vermelho, e volto da Praça da Cruz Vermelha, meio transido, mas sempre tentando captar o mais que puder, tentando enxergar o máximo que puder, tentando digerir o maior número de informações que puder.)

No caminho de volta para casa, no começo da Rua da Lapa, mendigos-camelôs  vendem, em calçada coalhada de poças de lama, mil e uma bugigangas inúteis de segundíssima mão, inclusive livros usadíssimos, e me forçam a fazer pequena parada. Sempre tento descobrir se haverá algum rebotalho de livro meu no meio daquela tralha de obras não identificadas. Em vão. Nunca acho, por exemplo, exemplar de Meu Nome é Gal, romance, digamos, lisérgico, de minha lavra, publicado pela Editora Codecri, no longínquo 1984. Em compensação, está lá no chão enlameado da calçada exemplar encardido de Cuba de Fidel. Autor: Roberto Dávila. Preço: 50 centavos.

Deixo os livros encardidos, e sigo. No poste localizado na esquina da Rua Taylor com a Rua da Lapa, cachorro vira-lata faz xixi, e percebo: faz xixi  sobre caderno espiralado de capa vermelha que se abre e que se esparrama e que se liquefaz em dupla face no chão, ensopado pela chuva, e, agora, pelo xixi do cachorro vira-lata.

O cachorro vira-lata parte. Eu fico. Sinto atração irresistível por aquele caderno espiralado de capa vermelha que jaz, quase liquefeito, em poça de água de chuva + urina canina. Não dá outra: abaixo-me (mendiga imunda me olha com cara de raiva; estou invadindo o ´terreno´ dela), tento folheá-lo, e percebo, comovido: tudo fora escrito à mão, espécie de diário íntimo que alguém escrevera, e fora parar em sarjeta imunda da Lapa. Tudo está manchado, tudo parece ilegível. Quase tudo. Em algumas pouquíssimas páginas, posso ler alguma coisa, e eu quero ler essa alguma coisa.

Salvo, com carinho e delicadeza, o caderno espiralado vermelho do afogamento total - e fatal, e da liquefação total - e fatal. Puxo-o cuidadosamente com as pontas dos dedos e o enfio em saco plástico de supermercado que cato nas cercanias.

Volto apressadamente para casa, coração aos pulos. Algo me diz, ou quero acreditar que diga: aquele caderno poderá ser alguma variação urbana de garrafa-jogada-ao-mar, na qual alguém estaria enviando alguma mensagem a alguém. 

A galope, chego em casa o mais rapidamente possível, embora a chuva se intensifique cada vez mais entre a Lapa e o Largo do Machado, e o meu guarda-chuva comprado a 18 reais, embora tente, não consegue evitar que eu me encharque dos pés à cabeça. Finalmente, sentado na mesa da sala, ainda ensopado, abro o caderno espiralado vermelho, que, quero crer, poderá ser  o diário de algum náufrago urbano que soçobrara em alguma sarjeta imunda da Lapa. E, de fato, é. Mas está completamente ilegível. Melhor: quase totalmente ilegível.

Pacientemente, despetalando cuidadosamente cada página para que não se despedace, descubro: há apenas duas páginas que podem ser lidas com alguma dificuldade, mas lidas. Uma quase inteiramente; a outra, apenas uma ou duas ou três palavras. Passo as duas horas seguintes tentando arrumar aquele quebra-cabeça. Frases interrompidas, palavras devoradas, sílabas estilhaçadas tornam minha missão quase impossível. Mas persisto, persisto, persito, e... bingo: consigo ler as três páginas escritas à mão por algum náufrago urbano que soçobrara em alguma sarjeta imunda da Lapa – e que talvez nunca descubramos o nome.

E o que leio é o seguinte, caro leitor:

Dia 31 (ou 32; mas acabo concluindo, ou querendo concluir: é 31)

(Ilegível) ... nesta noite horrenda que ora vivo, penso que já morri, e que estou em purgatório fedido, queimando minhas culpas terrenas, antes que batalhões de anjos e diabos se decidam para onde... (ilegível) devo ir: para o céu, ou para o inferno, ou para a puta que me pariu. É muito tempo de tormenta. A vida está uma merda há tempo demais. (Ilegível) ... sei lá quando.

Ando perdendo a noção do tempo. Não sei mais o que fazer. Pior: não sei mais o que não fazer. Rezo, rezo muito. É o que me resta. Puxo na memória todas as orações aprendidas na infância. A que achava, e ainda acho, mais bela era, e é, a Salve Rainha, que falava que vivíamos num vale de lágrimas, e realmente vivemos... (ilegível). Mas, porra, não consigo lembrar mais as palavras exatas dessa prece. Rezo por rezar. Sei que ninguém parece disposto a ouvir as minhas preces. Ou seja, rezo como se me masturbasse. Mergulho numa solidão que não consigo mais dar conta. (Ilegível)...  Há alguém aí? Há alguém aí, porra? Não, não precisa responder: sei que não há alguém aí, porra, nem por essa (ilegível) ... Lapa que me cerca, nem pelo Rio de Janeiro que me cerca, e nem por esse mundo de merda inteiro que me cerca.

Então tento reler o Eclesiastes pela enésima vez. Está tudo lá: não há sentido algum, não há mistério algum, não há... (ilegível). A vida é equação indecifrável. O barulho do bar em frente é infernal, e não consigo reler o Eclesiastes pela enésima vez. Vou à a cozinha; fervo água; e faço chá de hortelã com limão (iguais aos que os personagens de Amós Oz tomam), e bebo o chá de hortelã com limão e engulo três comprimidos de ... (ilegível). O barulho é absurdo. A Lapa é absurda. A vida é absurda. De repente, ouço as sirenes de carros de polícia. Vou à janela e vejo muitos carros de polícia e vários bêbados ... (ilegível).

O Rio de Janeiro vive fracassado processo civilizatório. Tudo é aqui é... (Ilegível), ainda em vias de se tornar cidade habitável. A polícia vai embora. A música diminui. Mas o barulho prossegue. Moro num primeiro andar da Rua da Lapa. Uma corja de moradores de rua fala sem parar, aos berros. Filhos da puta. Minha consciência social de outros tempos foi para a casa do caralho – e já foi tarde. Se metralhadora tivesse agora fuzilaria todos esses mendigos,  sem dó nem piedade.

Envio torpedo pra Regina (nessas horas de solidão abissal, é o único nome que ainda me vem à cabeça): Teclo ´Reze por mim´. Tento me desligar: me jogo na cama desarrumada e cheirando a suor e a ... (ilegível). Depois de algum tempo, o telefone fixo toca. Não atendo. Deve ser a Regina, mas não quero falar com a porra da Regina. Repetir-lhe toda a cantilena de sempre me doeria muito. Em seguida, Regina liga pro meu celular. Vejo o nome dela no visor , atendo, mas aviso, cheio de raiva: - Não quero conversar. Apenas reze por mim. E desligo. (Ter a Regina aqui comigo agora me aliviaria um pouco, mas não quero me aliviar um pouco, quero ... (ilegível).

Não sei por quanto tempo mais vou resistir. Não quero mais resistir. A merda é que não consigo me matar; e temo tentar me matar e não conseguir morrer. E ainda ... (ilegível)

Dia 45

Consegui. Fui...  (ilegível).

(Ainda chove lá fora - e me pergunto: 1) Quem terá escrito esse ferido diário? 2) Que fim o autor desse ferido diário terá levado? 3) E Regina, por onde andará Regina?) 




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