segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

À SOMBRA DA ÁRVORE SAGRADA (OU DELÍRIOS PROUSTIANOS EM MANHÃ DE PRIMAVERA CARIOCA)


Sob o boné preto adidado na lateral com três listras brancas paralelas, o cérebro cozinhava sob o fogo mezzo brando do sol malemolente de fim de primavera carioca. Cozia ao som de jam session intracraniana na qual se misturavam pensamentos deletérios;  desvarios de otimismo; ânsias de vômito; vontade de mandar tudo o mais para o inferno; e otras cositas más.

Quase mandei para o inferno velhusca simpática, mas apalermada, que ziguezaveava a bunda gorda à minha frente, sem saber se levava a bunda gorda para a direita ou  para a esquerda. Quem me salvou de cometer essa indelicadeza imperdoável (não se deve mandar velhuscas simpáticas de bunda gorda para o inferno por motivos tão banais) foi tonitruante voz masculina.  

O dono dessa voz ostentava basta cabeleira grisalha (não, não era Deus), e dizia: - Foi naquele prédio, ao lado daquele espigão, que Carlos Lacerda morou.

Espigão? Carlos Lacerda? Como? Onde? O quê? Meus neurônios cada vez mais amolecidos pelo fogo mezzo brando do sol malemolente de fim de primavera carioca, len-ta-men-te processaram: 1) Espigão-novela-das-dez-da-Globo-nos-anos-1970. 2) Carlos-Lacerda-governador-do-Rio-de-Janeiro-uma-velha-raposa-da-política-brasileira-em-tempos-de-antanho-e-grande-ídolo-político-de-meu-pai-Crispim-Menezes.

Por um átimo, pensei  ter descido na década errada.

Não descera. Olhei para o lado, e vi, e ouvi: o motorista de um daqueles carrinhos que levam turistas para passear pelo Aterro do Flamengo apontava para belo prédio da Avenida Rui Barbosa, e repetia, com entusiasmo, digamos, lacerdista (não, não era Deus): - Foi ali  que o Carlos Lacerda morou. Foi ali!

O meu lado mal-humorado pensou com os meus botões também muitíssimos mal-humorados: - E eu com isso, cara-pálida?

Mas o meu lado cara-pálida, e bem-humorado,  preferiu, nostalgicamente, pescar madeleines. Deu nisso: recuamos no túnel do tempo: anos-2010; anos-zero-zero, anos-1990, anos-1980, anos-1970, anos-1960, avenida-Rio-Branco, 817, quase esquina com a rua Silva Jardim, pacata-cidade-do-sudoeste-da-Bahia, mais exatamente Jequié, também conhecida como Cidade Sol.

No fim desse túnel do tempo havia garoto gordinho que amava concursos de miss e livros de Jorge Amado. Passava naquele exato momento por árvore frondosa da qual se desgarravam insetos minúsculos que provocavam ardor insuportável quando caíam nos nossos olhos, e eles se atiravam nos nossos olhos com volúpia notável.

(Por essa época ele inventou certa lenda macabra para esses ataques: ao mergulharem nos nossos olhos, esses bichinhos, enlouquecidos por viverem aquelas vidas sem sentido, atiravam-se, kamikazes, em direção à morte).

Como se chamavam esses insetos minúsculos que se atiravam, kamikazes, nos olhos humanos, caro leitor? Bingo: la-cer-di-nhas – homenagem torta da população da época a Carlos Lacerda, político carioca de projeção nacional – e aqui, bingo outra vez, essa ciranda madelêinica se fecha.

Sempre ao voltar para casa esse garoto gordinho tinha a farda cáqui do colégio torpedeada por indóceis exércitos de lacerdinhas que, sabe-se lá por quais diabólicos desígnios, adoravam a cor amarela – e a cor cáqui, para lacerdinhas mais otários, parecia o mais exaltado dos amarelos.

Ao chegar em casa, a pouca distância do colégio, a farda desse garoto gordinho estava infestada de pontinhos negros. Mais: lacerdinhas menos felizes, ainda na versão dele, erravam o alvo de propósito, e se afogavam nos olhos desse garoto gordinho.

Esse garoto gordinho não sabia bem o que fazer quando esses lacerdinhas kamikazes mergulhavam-lhe nos olhos vivazes. Constatação hamletiana invadia-lhe: coçar os olhos,  mitigar o ardor ocular, poderia aliviar-lhe, mas certamente, pensava, apressaria a morte dos lacerdinhas kamikazes.

Preferia então caminhar feito robô até em casa, braços e mãos esticados juntos ao corpo, olhos escancarados (fechá-los significava destruir qualquer chance de sobrevida dos lacerdinhas). Protagonizava insana tentativa de impedir que aqueles lacerdinhas kamikazes cumprissem o destino que lhes cabia. Por isso, alguns colegas passaram a chamá-lo de ‘o gordinho maluco’.

Gordinho maluco, o caralho! - no último segundo tentei engolir a frase. Tarde demais. A frase saiu nítida e clara (como se Paulo Autran a dissesse no proscênio do palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro) naquela manhã de sábado sob sob o fogo mezzo brando do sol malemolente de fim de primavera carioca. 

Pude perceber por canto de olho:  mãe zelosa e assustada com o meu berro à Paulo Autran, tirava o bebê do carrinho e o protegia entre os braços (ao fundo o Pão de Açúcar, majestático).

Confundido injustamente com algum bicho-papão materializado às margens da baía de Guanabara, esse garoto gordinho hoje quase-velhote magrinho, correu em busca de seu lado zen, se é que algum lado zen o habita: refugiou-se sob a mais bela e a mais cálida das sombras do Aterro do Flamengo, a que fica sob a, batizada por este cronista que vos escreve, Árvore Sagrada, a rainha-mãe de todas as árvores do Aterro do Flamengo.

Melhor de tudo: dessa frondosa Árvore Sagrada do Aterro do Flamengo não se desgarram aqueles insetos minúsculos, os tais lacerdinhas, que provocam ardor insuportável quando caem nos nossos olhos, e que se atiravam, kamikazes, nos olhos das pessoas na Jequié dos anos 1960.

Bendita Árvore Sagrada!
 




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