domingo, 26 de dezembro de 2010

CAMINHANDO NA CHUVA NA CIDADE DE OUTRO PLANETA

O cosmonauta russo Yuri Gagarin  (1934-1968) legou pelo menos duas frases célebres para a posteridade: 1. A Terra é azul (quando, a bordo da espaçonave na qual viajava, avistou o planeta de onde partira). 2. Parece uma cidade de outro planeta (ao visitar a recém-inaugurada Brasília no começo dos anos 1960).

Cinquenta anos depois Brasília continua essa mesma (e adorável) cidade do outro planeta. Nada contra cidades que pareçam cidades de outro planeta. Ao contrário. Morei dez anos (entre 1998 e 2008; e morarei de novo, se preciso for) nesta cidade que parece cidade de outro planeta, e a qual procuro visitar sempre que quero rever lugares e pessoas queridos &  sentimentos e estados d´alma que me são caros.

Hoje, manhã de domingo (estou novamente nesta capital federal), Brasília parecia mais do que nunca cidade do outro planeta: fazia 21 graus, apesar do verão ora em vigor no hemisfério sul, chovia moderadamente mas insistentemente, e o céu se escondia sob colossais nuvens de chumbo.

Peguei o guarda-chuva emprestado do amigo querido que ora me hospeda, pedi que me levasse de carro até a cabeceira norte do Eixão Rodoviário, e parti. (Andar de uma ponta a outra de Brasília, aos domingos e feriados, quando o trânsito de automóveis é proibido nessa longa via, é o mais elementar, e saudável, exercício de imersão nesta cidade que parece ser de outra planeta).

São 10h30 da manhã de domingo. Chove lá fora. Desço do carro. Despeço-me do meu amigo. Abro o guarda-chuva. Caminho poucos metros até o Eixão. Olho para a frente: até onde minha vista alcança não vejo vivalma. (Nas laterais: árvores frondosas; quadras verdejantes; blocos residenciais assépticos; e carros, muitos carros, que parecem caminhar sozinhos sem que nenhum ser humano os comande).

Ando sozinho por alguns minutos. De repente, percebo à minha frente, a algumas dezenas de metros de distância, um homem. Ele também caminha sozinho. Também usa guarda-chuva. Também veste bermuda preta estampada e camiseta azul, e calça tênis pretos. Apresso o passo. Chego-lhe mais perto. Caminhamos assim, próximos, sozinhos, por longo trecho. Parece bem mais velho que eu.  Não percebe que o sigo. Por alguns momentos, deliro (deve ser efeito do ar de outro planeta de Brasília): aquele homem poderá ser um duplo-meu, bem mais velho. Nos minutos seguintes invisto no delirio-jogo: persigo um eu-mesmo-mais-envelhecido, num jogo-delírio que me empolga e que me faz caminhar mais rapidamente na tentativa de alcançá-lo. (Mas, merda, não consigo alcançá-lo).

Na altura da 108 Norte, o homem que poderá ser um-eu-mesmo-mais-envelhecido muda inesperadamente de rota. Atravessa o gramado verdejante. Desvia-se entre árvores frondosas - e some. (Sigo em frente novamente sozinho. Vez em quando, alguém cruza-me o caminho, ou me ultrapassa  a galope).

No começo da Asa Sul, depois de passar por túneis igualmente vazios e que igualmente remetem a cidades que parecem de outro planeta, ouço orquestras afinadas, e bem-vindas, de bem-te-vis. Louvados sejam.

Depois volto a cruzar com seres de rostos com traços incertos, que parecem vindos de outro planeta, e que eventualmente me encaram como se me perguntassem: - O que faz essa criatura de rosto com traços incertos, que parece vindo de outro planeta, e que me encara como se eu fosse alguém vindo de outro planeta? 

Os vendedores de bálsamos-para-a-sede de diversas origens,  que comerciam às margens da via aos
domingos e feriados, escafederam-se (como se tivessem sido fulminados por alguma poção letal na madrugada anterior). Mas, como se fosse miragem do deserto de planeta não identificado, avisto a combalida e detonada e bombardeada kombi (que talvez um dia tenha sido marrom; ou azul?) do senhor Francisco.  (Trata-se de um paraibano valente que, chova ou faça sol, está sempre ali, na altura da 108 Sul, vendendo doses salutares de água de coco).

Ele me saúda efusivamente (devo ser o primeiro ser vivo que encontra nessa manhã de domingo): - E aí, capitalista? Uma aguinha de coco docinha e geladinha? Trocamos nove ou dez palavras. Pago-lhe R$ 2,50. Enfio o canudinho no coco. Despedimo-nos (ele me deseja boa sorte; eu lhe desejo feliz ano novo).

Vou em frente. Aqui e ali ainda deparo com homens de rostos com traços incertos, que parecem vindos de outro planeta. A partir da 112 Sul, não mais. (Ok, o verde resplandece nas cercanias, e os carros que parecem caminhar sozinhos sem que ninguém os comande não param de circular. No mais não há novamente vivalma ao redor até a 116 Sul. Olho o relógio: 12h25 - e volto a delirar: quem sabe já morri hoje de manhã naquele apartamento do Sudoeste, e o mundo de fato acabou?

O barulho do celular no bolso da bermuda me tira do transe. Atendo: é o amigo querido que me hospeda. Diz que está me esperando na porta do MacDonalds da 114 Sul.

(Ufa!) Felizmente (ou infelizmente; há controvérsias): a vida continua.




terça-feira, 21 de dezembro de 2010

UM ORÁCULO PRA CHAMAR DE SEU, MESMO QUE SEJA O MEU

Sempre foi assim. Sempre será assim. Vivemos todos loucos para saber o que vai nos acontecer no dia de amanhã (eu, noblesse oblige, inclusive). Somos dependentes químicos de oráculos, seja lá que porra de oráculo for.

Adoraríamos saber se morreremos amanhã; ou se morreremos depois de amanhã. Se seremos ungidos com os lauréis da glória e da imortalidade, ou se voltaremos ao pó no mais inexorável dos anonimatos. Se conheceremos o homem/mulher de nossas vidas na próxima esquina ou nos encarquilharemos pari passu, aniquilados pela mais cruenta das solidões.

Numa frase: queremos encontrar alguma lógica, e não há lógica alguma, no ato de viver e de existir. (Perdão leitores, estamos no Natal, e o senso comum aponta que não se deve falar sobre essas coisas nesta época em que nos afundamos nas fantasias cristãs mais torpes;  mas está lá, com todas as letras, no aparentemente insuspeito Eclesiastes: ´´Por mais que se esforce para descobrir o sentido das coisas, o homem não o encontrará´´)

Nesse vácuo aterrador que nos assombra há séculos,  charlatães das mais diversas matilhas agem, às claras, ou na calada da noite, loucos para tirar proveito dessa nossa incurável parvoíce de querermos descobrir o que vai acontecer nas cenas dos próximos capítulos; ou de descobrir algum sentido onde nunca haverá sentido algum. Queremos encontrar nesses oráculos todos algo que mitigue a nossa eterna ignorância sobre sermos e estarmos no mundo. Ponto.

O escritor Rubem Fonseca chegou a conceber, num dos contos mais abissais do retumbante Secreções, Excreções e Desatinos (lançado em 2001), um personagem que tenta encontrar o sentido da existência no design dos bolos fecais que desovava diariamente. Um cagalhão com um formato assim significaria isso. Um outro cagalhão com um formato assado significaria aquilo. (Não é um personagem extemporâneo, sabemos; eu mesmo já me flagrei a contemplar um desses cagalhões inexplicavelmente concebidos no exato formato de alguma letra do alfabeto, e me perguntar: - O que essa merda em forma de Z quer significar?;  e duvido que o mesmo sentimento  já não tenha atravessado a mente do nobre leitor...).

A bem da verdade, essa minha sede de dominar, e compreender, o futuro amainou um pouco nos anos 1990. Causa aparente: num intervalo de cerca de um ano, dois inesperados oráculos (amadores, mas oráculos) me fizeram previsões absolutamente diversas.

Momento 1: depois de visita à Tate Gallery, em Londres, sentei-me com um grupo de amigos num bar das cercanias para dividirmos nossos êxtases pictóricos coletivos. Do nada, sem motivo aparente definido, a tia de um desses amigos que viajava conosco, incorporou rapidamente a persona de uma bruxa de desenho animado de Walt Disney, pegou inesperadamente a minha mão, puxou-a, abriu-a, e, ao olhar para aquelas centimétricas trilhas manuais que todos nós carregamos, vaticinou: - Você terá uma vida longa, muito longa!

Momento 2: no auge do fechamento de uma edição difícil no jornal no qual trabalhava à época em Brasília, do nada, sem motivo aparente definido, uma de minhas repórteres mais competentes incorporou rapidamente a persona de uma bruxa de desenho animado de Walt Disney, pegou inesperadamente a minha mão, puxou-a, abriu-a, e, ao contemplar aquelas centimétricas trilhas manuais que todos nós carregamos, vaticinou: - Você não vai iver muito não, sabia? Você vai ter uma vida curta!

Em quem acreditar, caro leitor?

Resolvi: não adreditaria em nenhuma daquelas pitonisas inesperadas. Mas, a partir desses dois momentos antípodas, resumiria assim a minha ópera oracular dali em diante: elementar, meu caro Watson, previsões ruins e previsões boas têm as mesmas chances de se materializar. Ou seja: a) alguém poderá acertar espetacularmente o futuro de alguém. b) alguém poderá errar espetacularmente o futuro de alguém.

Nesse eterno vácuo oracular no qual vivemos desde sempre,  humanos desesperados com os fardos inexoráveis de suas existências tentam não soçobrar; e charlatães  ávidos por atender nossas diuturnas demandas adivinhatórias disputam, ombro a ombro, palmo a palmo, esse espólio de profundas desilusões e de profundos desencantos. Ou seja, chafurdamos todos nesse mar de sandices oraculares que nos devoram (mas não nos decifram);  que nos enlouquecem; e que, noblesse oblige, ninguém é de ferro, podem nos dar algum alento nesse desalentado mundo no qual a única certeza absoluta é que todos nós nos volatizaremos no mais remoto pó - seja na próxima esquina ou não.

Cada um tem o oráculo que merece. Tornei-me menos criativo que o personagem de Rubem Fonseca (que via na própria merda indícios da vida futura). Há algum tempo, ao  remexer os bolsos de calças e camisas sujas antes de enfiá-las na máquina de lavar, percebi: deparava eventualmente com ingressos de filmes aos quais assistira nos últimos meses. Dessas descobertas surgiu a seguinte mania oracular: cada título de filme assistido poderia significar alguma pista dos meus tempos porvir.

Certa tarde de outubro quase tive epifania ao vislumbrar, amassado e abandonado no bolso esquerdo de  certa calça jeans, o seguinte enunciado: Tudo Pode Dar Certo (Não deu; mas foi bom crer que pudesse dar; foi bom enquanto durou).

PS: ao escrever este texto, remexi os bolsos de calça cargo que esqueci de colocar na máquina de lavar roupa ontem e que jazia, displicentemente jogada, embaixo da cama. Adivinhe o que encontrei, caro leitor? O ingresso amassado e amarrotado de Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos.

Vade retro! Deus é mais.

 

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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

BAZÁROV, O ROTWEILER QUE VIROU LATA

Nunca mais lembrara de Bazárov.

Mas ontem pela manhã, sabe-se lá por que diabos, voltei a lembrar de Bazárov. Recordei: fora ali, naquela exata curva do Parque do Flamengo, que o vira pela primeira vez lá pelos idos de 2009. Naquela ocasião, parecia aterrorizado, devastado, no mais absoluto, e irremediável, pânico. Olhava, atarantado, para os lados, desconfiado, perdido, desesperado, sem entender exatamente o que lhe acontecera; ou sem querer crer no que de fato lhe acontecera  - e o que de fato lhe acontecera fora que alguém o abandonara ali, alguém se cansara dele e o largara ali, alguém o amarrara a uma frondosa árvore e o deixara ali, submetido ao mais total e inexorável deus-dará.

Diria mesmo que Bazárov chorava.

Segui em frente, coração algo despedaçado, gosto amargo na boca. Mas na caminhada de volta, percebi, aliviado: alguém resgatara Bazárov, - e ele sumira de cena - e precisei acreditar: teria voltado ao lar doce lar de sempre e nesse lar doce lar teria voltado a ser feliz para todo o sempre.

Não seria bem assim (nunca é). Algumas semanas depois voltei a ver Bazárov: já não tinha mais coleira; e, pelo jeito blasê com que flanava entre as árvores do local, deduzi que o desespero talvez tivesse dado lugar a certo estoicismo. Andava cabisbaixo, mas resoluto,  como se ainda procurasse se acostumar à nova rotina (não mais o uterino lugar onde habitava, e sim a imensidão idílica, e desafiadora, daquele cinturão verde que emoldura a boca banguela da baía da Guanabara).

Voltei a ver Bazárov muitas e muitas vezes. Sempre o cumprimentava. Ele sempre me ignorava. Murchava a a olhos vistos (os músculos de antes davam lugar a uma voraz flacidez, como bola de futebol que fosse se se esvaziando lentamente). Mas algo de pródigo lhe ocorrera: fora adotado por grupo de mendigos que moravam à beira mar, exatamente na fronteira entre Flamengo e Botafogo, e que se dividiam entre tentar catar mexilhões e beber pinga-de-um-real-a-garrafa no gargalo.

Bazárov se adaptou aos novos amigos. Não foram poucas as vezes que o flagrei a dormir relaxadamente entre os mendigos bêbados que, generosamente, o adotaram. Comia os mexilhões mal cozidos que lhe jogavam, bebia a água das chuvas empoçada nas cercanias, contemplava, com o encantamento possível, a belíssima paisagem ao redor - e assim ia seguindo a vida.

Em certa manhã de domingo de sol cheguei a flagrar Bazárov, quase garboso, a cheirar, com certo entusiasmo, as partes pudendas de certa poodle-metida-a-sebo que lhe fazia doce, e dele fugia esbaforida, enquanto ao fundo voz feminina bradava: - Essa cachorrinha não é pro seu bico, seu vira-lata imundo!

Bazárov, a essa altura mais estoico do que nunca, fingiu que não era com ele. Enfiou o rabinho entre as pernas. Foi se abrigar no colo da mendiga-chefe do grupo, que o acolheu como se mãe dele fosse.

Certo dia percebi: os mendigos que catavam mexilhões e bebiam pinga-de-um-real-a-garrafa-no-gargalo escafederam-se. Bazárov, também.

Certo dia reencontrei Bazárov. Vagueava sozinho pela vastidão do Aterro. Cumprimentei-o. Ignorou-me. Parecia novamente órfão. O olhar estoico de antes dera lugar a uma mancha vaga e lassa.

Nunca mais vi Bazárov.



   

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

COPPOLA PÕE SHAKESPEARE PARA DANÇAR TANGO COM ALMODÓVAR EM TETRO

Tetro, dirigido por Francis Ford Coppola, 72 anos, atesta para os devidos fins: a idade tem feito muitíssimo bem a este cineasta americano que os mais jovens (e, eventualmente, mais imbecis; mas  nem sempre uma coisa leva à outra, ressaltemos) poderão achar que se trata apenas do pai da senhorita Sofia Coppola. Entre outros upgrades, Mr. Coppola parece estar se levando menos a sério: inda que continue a discorrer sobre temas que lhe são muito caros desde sempre: a nossa aviltada e combalida condição humana, com todas as suas nuanças e desvarios (caros a Mr. Coppola e, também, aos grandes bambas do grande cinema, da grande literatura e da grande arte que se produz entre nós desde que o mundo é mundo).

É o que Coppola materializa em Tetro. Ainda que seja um filme de densidade dramática desconcertante, há  certo tom de leveza lúdica perpassando e pespontando todas as ações e todas as cenas e todas as respirações. Ao não se levar tão a sério, advém nele um outro sentimento nobre: o de perceber (mas de não se imobilizar por isso) que tudo sobre essa combalida e aviltada condição humana já foi dito e redito nos mais variados campos da arte: dos gregos a Tarantino e Almodóvar, passando, claro, por William Shakespeare e John Lennon.

O que pode diferenciar, melhor, nuançar, a grande arte concebida hoje em dia da grande arte que nos precedeu é, talvez, a forma (e, por tabela, todo o aparato de linguagens e significados decorrentes) com que essa grande arte contemporânea pretende resumir a nossa torpe, desde sempre, condição humana (sobre a qual o genialíssimo William Shakespeare sacramentou a seguinte, e definitiva, equação em Macbeth: ``A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, não significando nada.´´)  

Em Tetro há tudo isso: sons rascantes, fúrias abissais, e, basicamente, aquela náusea básica que nos faz procurar algum sentido na vida, inda que saibamos que a vida possa significar absolutamente nada. É sob essas condições emocionais de temperatura e pressão que tentam submergir os personagens do mais recente filme de Mr. Coppola; (aliás, como nós aqui fora da tela, submetidos a um enigmático destino do qual nunca conseguiremos decifrar).

Ou seja, o ectoplasma de William Skapeare (e de outros gênios da raça que nos precederam; aqui e ali, entre outras citações e emulações, poder-se-á flagrar o espectro de Orson Welles e de seu memorável Cidadão Kane) paira sobre os 127 minutos de duração de Tetro. Mas Mr. Coppola vai além: deixa-se também chafurdar nos encantos de um dos mais fulgurantes cineastas da segunda metade do secúlo 20: um certo Pedro Almodóvar. Prova inconteste dessa evidência: emanações almodovarianas perpassam cada take de Tetro.

Essa presença fulgurante de Pedro Almodóvar é tão assumidamente óbvia (Carmen Maura, por exemplo, interpreta personagem abissalmente almodovariana chamada Alone) que tudo leva a crer: Francis Ford Coppola, aos 72 anos, sabe o quanto o atual grande cinema deve a um cineasta mais jovem como Pedro Almodóvar (aos 62) - e, noblesse oblige, lhe faz uma homenagem absolutamente comovente..

(O bom-humor de Mr. Coppola também se revela na seguinte, digamos, blague estética: o cinema almodovariano, basicamente multicor; melhor, basicamente em tons de vermelho e de laranja, é apresentado em preto e branco em Tetro. Mas não se engane, caro leitor: mesmo em preto e branco, poder-se-á perceber o quão vermelhos, ou quão multicores, são os vestidos que Mr. Coppola obriga Alone/Carmen Maura a vestir).  

E aqui se poderá apontar uma outra caracaterística advinda da sabedoria que a maturidade pode trazer: a consciência de que o que realmente importa não é se ter 18 ou 90 anos - e sim, como dizia um certo Walter Franco, de saudosa memória, ´o que importa é a cabeça irmão´.  Aliás, na trama de Tetro tal sabedoria se materializa: é o jovem Benjamin, de 18 anos (interpretado por um certo Alden Ehrenreich; anote este nome, caro leitor, esse cara ainda vai dar muito o que falar!), quem decodifica, e materializa e corporifica a literatura  produzida pelo irmão mais velho Tetro,  até então absolutamente imobilizado pelo terror generalizado que lhe cerca a vida..

Enfim, desse mix Coppola-Shakespeare-Almodóvar resulta um dos mais memoráveis filmes que este locutor que vos fala já viu em 50 anos de escurinho do cinema. Atesto, e dou fé.

Dever de casa para o caro leitor: tente flagrar em Tetro a menção a pelo menos dois filmes de Pedro Almodóvar. Uma diretamenrte: o nome de certa produção almodovariana é citada, en passant, mas de maneira muito clara; na outra, o título do filme aparece camufladamente em determinado diálogo; um certo adjetivo é trocado por outro, um antônimo.

PS: respostas num próximo post.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

ALGUNS ESCRITORES PELOS QUAIS OS MEUS SINOS DOBRAM

Vez em quando um amigo muitíssimo querido de Brasília me pede que lhe faça lista dos romances que me foram mais fundamentais, que me marcaram desde a aurora da minha vida a até  mais ou menos um minuto atrás. Resisto à idéia. Livros são pessoais e instransferíveis. Obras primas para uns podem soar pífias para outros. E vice-versa. Além disso, gosto da idéia de cada um fazer a sua própria geneologia literária, descobrir seus próprios heróis literários, e definir quais escritores lhe serão mais caros e pelos quais se apaixonarão para todo o sempre.

Mas agora há pouco, ao acabar de ler o mais recente livro do israelense Amós Oz lançado no Brasil (Uma Certa Paz, escrito em 1982 e que só agora ganha tradução brasileira), pude, extasiado, perceber: há (e haverá) sempre um livro que você ainda não leu, e que, quando o ler, esse livro poderá deixá-lo absolutamente extasiado (o que, nesses tempos medonhos nos quais vivemos, é uma providencial bênção). Ou seja: A vida está uma merda? A solidão é cada vez mais atroz? Você não consegue decifrar quase nada do que acontece com a sua vida desde que se entende por gente? Você acha que ninguém lhe ama e que ninguém lhe quer? Receito-lhe: literatura na veia (a velha e boa literatura ainda poderá ser o mais poderoso e operoso bálsamo, tanto para o bem como para o mal, das nossas existências).

Consequentemente, me lembrei do meu queridíssimo amigo de Brasília e pensei em dividir alguns dos meus mais fundamentais afetos literários com ele, e com quem mais estiver me lendo neste momento. Mas, logo percebo, teria alguma dificuldade em apontar os livros que me marcaram durante tooooda a minha loooonga vida (talvez me falte memória para tanto!). Prefiro então me fixar nos livros que me marcaram e me remarcaram (releituras de livros que li em outras épocas e que agora voltaram a me extasiar e a me deslumbrar) nos últimos quatro anos; ou seja, de 1 de janeiro de 2007 até mais ou menos um minuto atrás.

Por que essa datação tão rigorosa? Talvez porque foram nesses últimos quatro anos que realmente defini (defini?) que eu seria (seria?) de fato um escritor. A ver.

Eis alguns livros, escritos por autores contemporâneos e não, pelos quais os meus sinos dobraram nos últimos quatro anos (e pelos quais os sinos do prezado leitor também poderão dobrar. Ou não.).

(Sem ordem de preferência, apenas na ordem que me vem à cabeça:

1. O Vermelho e o Negro, de Stendhal.
2. Anna Kariênina, de Leon Tolstoi.
3. Os Demônios e Os Irmãos Karmázov, de Fiodor Dostoiévski.
4.  Crônica de Uma Vida de Mulher, de Arthur Shcnitzler.
5. Retrato de Uma Senhora, de Heny James.
6. Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev.
7. Os Eclesiastes (está na Bíblia Sagrada; pode não ser, e não é, um romance, mas certamente se trata de um dos textos mais instigantes que já li, e reli, e reli, e reli, na minha vida).
8. Servidão Humana, de Somerset Maugham.
9. Luz em Agosto, de William Faulkner.
10. Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac.
11. Neve, Meu Nome é Vermelho, Istambul, Outras Cores, O Livro Negro, de Orhan Pamuk.
12. As Benevolentes, de Jonathan Littel.
13. 2666, de Roberto Bolaño.
14. Homem Lento e Desonra, de J.M. Coetzee.
15. De Amor e Trevas, Cenas da Vida na Aldeia, Rimas da Vida e da Morte, A Caixa Preta, 
de Amós Oz.
16. Casei com um Comunista, Homem Comum, O Animal Agonizante, Fantasma Sai de Cena,  Indignação, A Humilhação, de Philip Roth.
17. Equador, de Miguel Sousa Tavares.

Acho que foi isso.

(Do excepcional Uma Certa Paz, de Amós Oz, gostaria de dividir o seguinte trecho com você, caro leitor:
``A morte é muito poderosa e está em todo o lugar. A crueldade está plantada em todos nós. Cada um é um pouco assassino; se não dos outros, de si mesmo.´´)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A VIDA DURANTE A GUERRA E A NOVELA DAS OITO

Depois de um dia estafante numa Rio de Janeiro que faz um calor dos diabos, meus planos noturnos eram  pouco ambiciosos: assistir a mais um capítulo de Tititi (a novela das sete que, exatamente por não se levar tão a sério,  e não pretender ser simulacro - argh! - da realidade, é perfeita para zerar o cérebro nesses tempos sombrios) e, mais tarde, um novo episódio do seriado americano The Event (pelos mesmos motivos já citados). Mas eis que a roda da fortuna gira, a lusitana roda, e, num intervalo comercial, descubro: seria hoje que Gerson, um dos principais personagens da novela Passione, de Silvio de Abreu, revelaria o seu terrrível segredo ao Dr. Flávio Gikovate, o psiquiatra que tenta abrandar-lhe, digamos, os achaques.

Duas horas depois, assisto à seguinte, e patética, cena: um nervoso e tenso homem de quarenta e poucos anos (Gerson, na verdade o ator Marcelo Antony) abre o coração para o psicanalista que o atende de sesenta e poucos anos (o Dr. Flávio Gikovate, na verdade, o psicanalista Flávio Gikovate). Revela-lhe que gosta de sexo sujo, que gosta de cheirar banheiros ´fétidos´, e coisa e tal, bla-bla-bla...

Depois de ouvi-lo com um olhar plácido, o ´personagem´ Dr. Flávio Gikovate agradece ao paciente por essa retumbante revelação, o que, segundo o psicanalista, lhe propiciará traçar eficaz estratégia para curá-lo. A cura é, hosana nas alturas, indolor, rápida, e imediata. Cenas seguintes: a) o nosso herói trágico de araque aparece em cena, com cara de atriz jovem fazendo anúncio de absorvente; b) está à beira de lago no parque do Ibirapuera, em São Paulo; c) emana ar de felicidade tão espetacular que o faz jogar pedrinhas no lago; d) ao fundo ouve-se a voz diáfana do ´personagem´ Dr. Gikovate bradar :  - Você é como todo mundo, você é como todo mundo!

Próximo ato (e que, perdão leitores, me fez vomitar caudalosamente no tapete da sala): o tal Gerson , a bordo de sorriso colgatíssimo, donde podemos deduzir que esteja totalmente curado, encontra a namorada, tem com ela conversa amorosíssima, e, mesmo que a novela ainda não tenha acabado, percebia-se: eles serão felizes para sempre.

Mas cá pra nós: o que eu, tu, nós, vós, eles temos a ver com o fato de esse tal Gerson gostar ou não de cheirar banheiros fétidos pelos quatro cantos do mundo ou que goste de transar com mulheres gordas com bundas e vaginas mal lavadas? (Já pensou, caro leitor/telespectador, se o tal Gerson tivesse problemas ginecológicos? Imagine o que nos obrigariam a ver!)

A cena também nos permite perceber a seguinte, e exdrúxula, equação: o personagem  Gerson (por natureza, falso, irreal) revela-se real - e creio piamente que 99,9% dos habitantes do planeta Terra terão questões sexuais (ainda; ou para sempre) não resolvidas; os 0.01% restantes acabaram de falecer no último segundo; o psicanalista Flávio Gikovate, que tem realmente sólida formação psiquiátrica, e consultório muito concorrido em São Paulo, portanto um ser verdadeiro, real, revela-se irreal - tenho dúvidas se 99,9% dos psicanalistas do planeta Terra convidados topariam virar personagem de novela de tevê.

Mas esse episódio é revelador: reflete as promíscuas e incestuosas relações entre realidade e ficção nas telas da tevê brasileira, das quais resulta a seguinte, e esquizofrênica, equação: novelas que querem parecer vida real; vidas reais que querem parecer ficção.

Resultados dessa preocupante esquizofrenia: 1) novelas que deixam de ser válvula de escape, lazeres bem-vindos para zerar os nossos cérebros - e me responda rapidinho, caro leitor/telespectador, qual o problema de continuarmos fazendo novelas que desopilem nosso fígado carregado de bílis e fel nesses dias de ira e tédio profundos? 2) telejornais que, por mais reais que aparentem ser, transpiram forte tom de manipulação (parece haver em processo espécie de paradoxal dramaturgia telejornalística), em que mocinhos são mocinhos e bandidos são bandidos (e, sabemos que não é simples assim, desde A Bíblia Sagrada, passando por Shakespare, Faulkner, Becket, e o nosso genial Nelson Rodrigues, entre outros, que a vida real nunca foi, nem será, bem assim) .

Resultado: novelas que se tornam cada vez menos atraentes exatamente por insistir nessa tecla ´realista´; telejornais que se tornam cada vez menos críveis e confiáveis por apostar nessa tecla ´irrealista´.

A heroicização da ocupação do Morro do Alemão ontem no Rio de Janeiro (na qual todos os policiais envolvidos foram apresentados como arrebatados e cabais heróis que representavam  todos os mais sagrados valores das virtudes humanas) começou a cair por terra hoje mesmo, no dia seguinte ao que se vendeu na tevê como o apogeu de uma nova era. Num telejornal do início da noite uma desconcertada repórter (como se aquilo que noticiava parecesse não se adequar a toda essa dramaturgia telejornalística em curso) anunciava que moradores da região tomada ontem pelas ´forças do bem´ contra o ´coração do mal´ se queixavam de alguns policiais que estavariam invadindo casas para saqueá-las.

Donde se poderá, corretamente, concluir: a vida real nunca deverá, nem poderá, ser manipulada.

Se tal manipulaçao pudesse de fato acontecer, talvez fosse o caso de sugerir que o governo do Rio de Janeiro contratasse os serviços do personagem Dr. Flávio Gikovate da novela Passione para curar todos esses psicopatas que comandam o tráfico do Rio de Janeiro.

Aviso aos navegantes: nem todos os psicopatas do planeta Terra serão assim tão facilmente identificáveis quantos esses pobres-diabos que assombram os morros, e o asfalto, desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

domingo, 28 de novembro de 2010

UMA MANHÃ DE DOMINGO DURANTE A GUERRA

(Era, e é, uma espetacular manhã de domingo no Rio de Janeiro).

Só na altura dos fundos do Museu de Arte Moderna (MAM), me dei conta de que estávamos em guerra (e não falo dessa guerrinha pontual, midiática e sórdida que ora sacode o Morro do Alemão; e sim de uma guerra mais diuturna, mais transcendente, e  mais atávica na qual estamos imersos desde tempos imemoriais, e, parece, da qual jamais sairemos). Foi quando percebi: vários carros invadiam descaradamente a área exclusiva para pedestres na qual eu e outros muitos cariocas caminhávamos. Os motoristas desses automóveis cometiam esse ato de incivilidade com uma naturalidade e uma, digamos, imponência espantosas. Nós, pobres pedestres, que saíssemos do caminho.

Alguns pedestres, menos bovinos, ousavam reclamar da falta de policiamento. A Guarda Municipal, que sempre está no local, não dava sinal de vida. Donde se podia concluir: ou estava em casa vendo a guerra pela tevê; ou, no calor da hora, fazia figuração no ´espetáculo´ do combate ao crime no Morro do Alemão.

Enquanto isso, carros e mais carros continuavam a ocupar a pista exclusiva para pedestres. Eu espumava de raiva, e, já a poucos metros da Marina da Glória, ousei bater palmas na janela de um automóvel que quase me atropelara, e gritar: - Isso aqui não é pista de carro, não, cara!

O motorista infrator, paquiderme obeso com barriga e cérerbo cheios de merda, presumi, parou o carro, e disparou-me: - Qual é, cara? Vai encarar? Eu ando onde eu quero. Babaca!

O meu ímpeto inicial foi atiçar o duelo verbal (sou bom nisso) com aquele paquiderme infame. Mas me contive a tempo. Algum espírito santo de orelha (e lhe sou grato por isso) aconselhou-me: - Melhor não. A tendência é esse cara, bem mais forte que você, lhe encher de porrada e arrancar-lhe as vísceras e jogar para as maritacas comerem...

Então, respirei fundo e fui em frente. A todo momento quase atropelado por aquele batalhão de incivilizados e imbecis motorizados. A todo momento concluindo que aqueles trocentos bandidos acuados por tropas policiais de terra, mar e ar no Morro do Alemão não são, nem nunca serão, os únicos bandidos do Rio de Janeiro.

Ainda bem que, depois desse incidente de percurso, o acaso mais uma vez me ensinou que a vida não é só feita de dissabores – torpezas e sublimidades podem ocupar o mesmo lugar no espaço.

Vamos aos fatos que me fizeram crer que pode haver alguma trégua nessa diuturna guerra na qual vivemos.

1.    Na fronteira sul do Flamengo, pequena multidão se aglomerava à beira das pedras. Pensei, noblesse oblige, que fosse afogamento. Não era. Eram apenas dois cães labradores que nadavam alegremente e que faziam a delícia dos circunstantes.
2.    A poucos metros dali, entre cachorros das mais diversas ´marcas´ e senhoras  que não tinham o menor pudor de exibir suas colossais celulites (e por que teriam?), guapo rapaz cantava à capela o seguinte trecho de certa música de Gonzaguinha: Eu acredito é na rapaziada/Que segue em frente e segura o rojão/Eu ponho fé é na fé da moçada/Que não foge da fera e enfrenta o leão. (Ao fundo, uma balzaquiana gorducha, e excitada, aplaudia).
3.       Na fronteira entre Botafogo e Flamengo, em parada técnica para beber água de coco na barraquinha improvisada de Seu Cícero, sentou-se ao meu lado certa senhora, magrinha, sequinha, oitenta anos no lombo, no mínimo, e loirinha, como todas as mulheres o são quando envelhecem. Não resisti à tentação: disse-lhe, contemplativo diante da boca escancarada da Baía de Guanabara a poucos metros de nós: - É inacreditável que, numa cidade bonita assim, aconteça as coisas que acontecem. Ela concordou, perguntou o meu nome, e disse se chamar Tereza. Acusei-lhe o forte sotaque português. Explicou-se: - Moro aqui há 50 anos mas não consigo falar como vocêssss... Perguntei-lhe se já foi vítima de algum tipo de violência, bala perdida, assalto à mão armada, coisas assim. Afirmou: - Não, nunca. Fiz-lhe outra pergunta: - Não tem medo de morar aqui, com tanta...? Ela  interrompeu: - Por que teria? Sou fatalista. A gente só morre na hora que tem de morrer.
4.       Na banca de revistas da Rua Voluntários da Pátria, quase ao lado do Espaço de Cinema, na qual sempre compro jornais e revistas, o senhor Santo, italiano que vive no Rio há decadas, ouvia ópera como o faz todos os domingos. Enquanto me vendia os jornais do dia, pude ouvir ao fundo os Três Tenores (Pavarotti, Carreiras e Domingo) cantando La Donna é Mobile, de Verdi.

Saio dali querendo crer: a guerra também é mobile.



sábado, 27 de novembro de 2010

MAIS VIDA DURANTE A GUERRA

Ontem. 26 de novembro, dia seguinte ao dia D, e  a uma, digamos, tropicalíssima versão da invasão da Normandia, como pretendeu certo jornal local, acordei cedo. Fui caminhar no Aterro do Flamengo, bem longe do front (presumia; e desejava). Ainda bem: não tropecei  em cadáveres, nem engoli balas perdidas. 
Depois de duas horas de caminhada,  na qual pude perceber que o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar continuavam (ainda) no mesmo local,  parei para respirar. Fui beber água de coco no quiosque do Seu José (na ponta sul da praia do Flamengo). Ele, certamente, até prova em contrário, é o mais zen dos cariocas. Aos  80 e tantos anos, me recebeu com a simpática indiferença de  sempre, serviu-me a mais deliciosa das águas de coco da região, e, ao lhe perguntar como estava a vida,  ouvi, entre dentes (esse homem fala muito pouco, quase nada):  - Hummm...  - (ou coisa parecida)
Sorvi minha água de coco – e caminhei, ensimesmado, de volta para casa. Estava ainda entristecido com o desfecho do romance A Humilhação, de Philip Roth, que acabara de ler na madrugada anterior: o herói trágico rothiano Simon Axler tivera o mesmo e inglório fim de Anna Kariênina (no livro homônimo de Tolstoi) e de Konstantin Treplev (na peça A Gaivota, de Tchekhov). 
A melhor saída seria mesmo um tiro nas têmperas ou o mergulho embaixo de um trem em movimento? Tenho minhas dúvidas  sobre esse contundente tema desde os oito anos de idade (quando comecei a cultivar esses pensamentos niilistas). Mas fui salvo pelo gongo: olhei a estibordo o Pão de Açúcar, feérico e quase pornográfico, como poderia dizer o Nelson Rodrigues, e voltei a perceber (por que não?): 1) a vida vale a pena, sim, porra! ; 2) o judeu americano Philip Roth é o maior escritor vivo do planeta, sim porra! (ok, nesse sublime triunvirato pódio literário o turco Orhan Pamuk e o israelense Amos Óz são as princesas!)
No final da tarde, desisti pela enésima vez de dar o pontapé inicial do meu novo romance, o que tento fazer há algum tempo. Mas embora sente todo dia, contritamente, à frente do notebook,  as palavras não vêm, embora o plot já esteja completamente definido. (Foi assim ontem novamente: a inspiração não veio). 
Então resolvi assistir ao mais recente filme de Woody Allen (num cinema perto de mim):  Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos.  Entorpecido pelo tom, digamos, vagamente positivista do filme anterior desse cineasta americano (Tudo Pode Dar Certo, uma comédia na qual tudo poderá dar certo, ainda que de maneira acidental, e aleatória), tomei certo choque.
Mr. Allen, aos 75 anos, continua amargo como sempre. No novo filme que dirigiu, nos demonstra o seguinte: tudo poderá dar errado, ainda que de maneira acidental e aleatória.
Ou seja, ambas as respostas, caro leitor, são absolutamente certas: 1) Tudo pode dar certo. 2) Tudo pode dar errado. (Questão de hora, e de lugar).
Hoje. tarde de 27 de novembro. Digito essas maltraçadas linhas e ouço jazz pela tevê. De repente, me pergunto: - E a guerra que fervilha em tempo (ir)real a algumas milhas daqui?
Ato contínuo, aciono o controle remoto: em vez do jazz mavioso dos Braxton Brothers  (transmitido pelo canal  de áudio 479 da SKY), entram em cena flagrantes ao vivo e em cores da guerra dos morros do Rio.
Não titubeio: volto imediatamente aos braços dos Braxton Brothers, de onde nunca deveria ter saído.
A (ir)realidade faz mal - principalmente nas tardes de sábado.
(Enquanto isso três helicópteros da polícia fazem vôo rasante pelos céus de Botafogo; ou seja, precisamos todos de mais jazz na veia).





quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A VIDA DURANTE A GUERRA (*)

Ao sair do prédio onde moro no final da manhã, o Senhor L., o porteiro de plantão, sempre fascinado por escabrosidades, disparou, salivando de satisfação: - Seu Rogério, os bandidos arrombaram um caveirão lá na Vila Cruzeiro.

Acordara horas antes, vendo um carro pegando fogo ao vivo e em cores na tela da tevê, e contemplando, com algum espanto, admito, repórteres da TV Globo ostentando quase glamurosos coletes à prova de bala com logotipo da emissora (eles pensam em tudo, não?). Mas não me intimidara. A lombar doía, o calcanhar esquerdo, também, e a nova sessão de fisioterapia, que venho fazendo há alguns dias por conta de avarias diversas no corrpo físico, parecia indispensável. E fui.

Sem nenhuma bala perdida a desviar-me do meu alvo, encontrei-me, quinze minutos depois, na sala de espera de uma centro de ortopedia, na Rua Sorocaba, em Botafogo. Em vez de chafurdar-me nas imagens transmitidas ao vivo pela tevê de 32 polegadas que pairava sobre todos os circunstantes, que, contritos, não desgrudavam os olhos da tela, continuei a leitura de um ótimo romance (A Humilhação) de Philip Roth.

Abstraí-me na leitura deliciosa (eis aqui um livro imperdível, que os caros leitores não podem deixar de ler), a ponto de esquecer que morava na cidade do Rio de Janeiro neste 25 de novembro de 2010. Mas, no exato momento em que parei para respirar (afinal a narrativa rothiana é sempre de tirar o fôlego) e olhei ao redor, uma senhora simpática e elegante, que também buscava lenitivo para suas dores físicas, captou-me com uma declaração dita num pathos trágico que me arrebatou (a ponto de abandonar a leitura do romance de Philip Roth). Ela bradou, enfática: - Isso tudo é teatro! A polícia brinca de combater os bandidos; os bandidos brincam de combater a polícia, e tudo continua igual. Se a polícia quisesse mesmo resolver isso, invadia a favela onde estão escondidos e matava todo mundo! É tudo teatro!

O placar piscou o número 73. Convocavam-me para a minha fisioterapia. E, assim, salvavam-me de ter que inventar algum argumento (na verdade, eu não tinha nenhum argumento a respeito dessa declaração que acabara de ouvir) diante da peremptória afirmação daquela elegante e simpática senhora.

Uma hora depois, com a lombar e o calcanhar esquerdo mais aliviados, peguei a estrada. Caminhei até a rua Voluntários da Pátria. Fui almoçar na Cobal (para quem não é do Rio: trata-se de um complexo gastronômico/etílico localizado na fronteira do Botafogo com Humaitá). No caminho, cruzei com mocetona de grande porte que dizia para a amiga do lado: - É o fim dos tempos! A ver.

Nas portas das lojas de eletrodomésticos semivazias e nos bares com suas tevês eternamente ligadas, pequenas multidões assistiam à cobertura das ocorrências. Tal e qual, sem tirar nem por, assitiram às partidas de futebol da seleção brasileira na última Copa do Mundo. Medo e circo, pois não?

Tentei escapar desse exercícios públicos de autoflagelação: fui mergulhar na comida sempre honesta servida no restaurante self service no qual almoço com certa frequência. Na pequela fila para servir-me, entre uma olhada na salada de rúcula e outra no sempre adorável pastel de catupiry, flagrei uma televisão estupidamente ligada que transmitia ao vivo o espetáculo da vida (ir)real que os canais de tevê exibiam com sofreguidão, sob todos os ângulos possíveis e imagináveis.

Pensei em escapar para outro restaurante das proximidades. O que seria inútil. Todos os restaurantes do local serviam o mesmo, e nauseante, prato: imagens ao vivo de ônibus que eram incendiados e de mocinhos enfrentando bandidos (mas não vemos esse mesmo filme há milênios?).

Resignei-me. Comi às pressas enquanto tentava voltar a ler alguns trechos de A Humilhação (sem êxito; não consegui me concentrar na espetacular narrativa de Philip Roth). Tomei um café pingado no lugar de sempre. Voltei às ruas, nas quais pequenas multidões continuavam a se autoflagelar: consumiam avidamente as imagens de terror transmitidas pelas tevês das lojas de eletrodomésticos semivazias e dos bares com suas tevês eternamente ligadas.

Meia hora depois, cheguei em casa são e salvo. Encontrei novamente o Senhor L., o porteiro de plantão. Agora, ele me dizia, algo enigmático e, talvez, algo ameaçador: - A polícia está procurando sarna pra se coçar!

Entrei em casa. Escovei os dentes. Liguei imediatamente a tevê. Escrevia esse texto, mas não conseguia desgrudar os olhos das cenas da guerra nos morros e favelas do Rio de Janeiro: também eu mergulhava nesse coletivo, e catártico, exercício de autoflagelação.

(*) A vida Durante a Guerra é um filme notável, dirigido por Todd Solondz, atualmente em cartaz no Rio de Janeiro.