domingo, 28 de novembro de 2010

UMA MANHÃ DE DOMINGO DURANTE A GUERRA

(Era, e é, uma espetacular manhã de domingo no Rio de Janeiro).

Só na altura dos fundos do Museu de Arte Moderna (MAM), me dei conta de que estávamos em guerra (e não falo dessa guerrinha pontual, midiática e sórdida que ora sacode o Morro do Alemão; e sim de uma guerra mais diuturna, mais transcendente, e  mais atávica na qual estamos imersos desde tempos imemoriais, e, parece, da qual jamais sairemos). Foi quando percebi: vários carros invadiam descaradamente a área exclusiva para pedestres na qual eu e outros muitos cariocas caminhávamos. Os motoristas desses automóveis cometiam esse ato de incivilidade com uma naturalidade e uma, digamos, imponência espantosas. Nós, pobres pedestres, que saíssemos do caminho.

Alguns pedestres, menos bovinos, ousavam reclamar da falta de policiamento. A Guarda Municipal, que sempre está no local, não dava sinal de vida. Donde se podia concluir: ou estava em casa vendo a guerra pela tevê; ou, no calor da hora, fazia figuração no ´espetáculo´ do combate ao crime no Morro do Alemão.

Enquanto isso, carros e mais carros continuavam a ocupar a pista exclusiva para pedestres. Eu espumava de raiva, e, já a poucos metros da Marina da Glória, ousei bater palmas na janela de um automóvel que quase me atropelara, e gritar: - Isso aqui não é pista de carro, não, cara!

O motorista infrator, paquiderme obeso com barriga e cérerbo cheios de merda, presumi, parou o carro, e disparou-me: - Qual é, cara? Vai encarar? Eu ando onde eu quero. Babaca!

O meu ímpeto inicial foi atiçar o duelo verbal (sou bom nisso) com aquele paquiderme infame. Mas me contive a tempo. Algum espírito santo de orelha (e lhe sou grato por isso) aconselhou-me: - Melhor não. A tendência é esse cara, bem mais forte que você, lhe encher de porrada e arrancar-lhe as vísceras e jogar para as maritacas comerem...

Então, respirei fundo e fui em frente. A todo momento quase atropelado por aquele batalhão de incivilizados e imbecis motorizados. A todo momento concluindo que aqueles trocentos bandidos acuados por tropas policiais de terra, mar e ar no Morro do Alemão não são, nem nunca serão, os únicos bandidos do Rio de Janeiro.

Ainda bem que, depois desse incidente de percurso, o acaso mais uma vez me ensinou que a vida não é só feita de dissabores – torpezas e sublimidades podem ocupar o mesmo lugar no espaço.

Vamos aos fatos que me fizeram crer que pode haver alguma trégua nessa diuturna guerra na qual vivemos.

1.    Na fronteira sul do Flamengo, pequena multidão se aglomerava à beira das pedras. Pensei, noblesse oblige, que fosse afogamento. Não era. Eram apenas dois cães labradores que nadavam alegremente e que faziam a delícia dos circunstantes.
2.    A poucos metros dali, entre cachorros das mais diversas ´marcas´ e senhoras  que não tinham o menor pudor de exibir suas colossais celulites (e por que teriam?), guapo rapaz cantava à capela o seguinte trecho de certa música de Gonzaguinha: Eu acredito é na rapaziada/Que segue em frente e segura o rojão/Eu ponho fé é na fé da moçada/Que não foge da fera e enfrenta o leão. (Ao fundo, uma balzaquiana gorducha, e excitada, aplaudia).
3.       Na fronteira entre Botafogo e Flamengo, em parada técnica para beber água de coco na barraquinha improvisada de Seu Cícero, sentou-se ao meu lado certa senhora, magrinha, sequinha, oitenta anos no lombo, no mínimo, e loirinha, como todas as mulheres o são quando envelhecem. Não resisti à tentação: disse-lhe, contemplativo diante da boca escancarada da Baía de Guanabara a poucos metros de nós: - É inacreditável que, numa cidade bonita assim, aconteça as coisas que acontecem. Ela concordou, perguntou o meu nome, e disse se chamar Tereza. Acusei-lhe o forte sotaque português. Explicou-se: - Moro aqui há 50 anos mas não consigo falar como vocêssss... Perguntei-lhe se já foi vítima de algum tipo de violência, bala perdida, assalto à mão armada, coisas assim. Afirmou: - Não, nunca. Fiz-lhe outra pergunta: - Não tem medo de morar aqui, com tanta...? Ela  interrompeu: - Por que teria? Sou fatalista. A gente só morre na hora que tem de morrer.
4.       Na banca de revistas da Rua Voluntários da Pátria, quase ao lado do Espaço de Cinema, na qual sempre compro jornais e revistas, o senhor Santo, italiano que vive no Rio há decadas, ouvia ópera como o faz todos os domingos. Enquanto me vendia os jornais do dia, pude ouvir ao fundo os Três Tenores (Pavarotti, Carreiras e Domingo) cantando La Donna é Mobile, de Verdi.

Saio dali querendo crer: a guerra também é mobile.



3 comentários:

  1. tenho procurado o seu blog diariamente. lucidez e ternura durante a guerra.
    bjo

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  2. Que bom que você não decidiu entrar em guerra com o "babaca". É preciso ser criativo como o seu blog para combater essa guerra diária.

    abraço.

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  3. Há dias não se fala em outro assunto: o Estado (finalmente!) se impõe ao tráfico, “derruba” seu modo de atuação e assume o compromisso de atuar em seus espaços mais restritos. Os brasileiros de empolgam, afinal, estamos em clima de Tropa de Elitte II e assistir ao teceiro filme da trilogia ao vivo e pela tv, uau! Benditos sejam nossos heróis truculentos e com armamento pesado, precisamos mostrar ao mundo que a turistada pode vir à Copa, temos condições de garantir a segurança.

    A bandeira do Brasil é fincada no Alemão, o Poder Público chegou, agora vale o Estado de Direito. Será? Façamos de conta que a questão não é muito mais complexa que a tomada de territórios, que os que realmente lucram são os traficantes que atuam nos morros. Façamos de conta também que as Forças Armadas ficarão ad eternum a garantir “paz”, que tão logo a questão esfrie não aparecerão novos atores ávidos por tomar o espaço dos traficantes presos, afinal quem resiste a um imenso mercado consumidor, um produto caro e a conivência e corrupção da polícia carioca? Não existe vácuo de poder.

    Em nosso faz de conta combinado, finjamos que não há falhas nas prisões (com violação de direitos, domicílios, “prisões para averiguação” e apreensão de provas) que não comprometerão apenas as investigações como acarretaraão em relaxamento de prisões. Ok, vamos nos dar ao luxo de exercitamos um otimismo ingênuo.

    Eu, da Bahia, fico grudada a TV e na Internet, assimilando tudo. Ontem mesmo disse a meu namorado que queria comprar todas as revistas que tratam do assunto. Tenho uma desculpa na ponta da língua para justitificar o mórbido interesse: mô, sempre me interessei por segurança pública.

    Em verdade, perdi a conta de quantas vezes vi a cena da fuga de centenas de homens da Vila Cruzeiro, já nem sei dizer quantas vezes isso aconteceu... A mídia devassa, distorce e transmite. Com a extrema repetição imagética, fomenta a comoção popular e manufatura a opinião pública (já que a experiência comunicativa midiática é unilateral). Aborda incansavelmente o mesmo tema porque este vende jornais, revistas e dá audiência e assim o é exatamente porque o assunto é exaustivamente apresentado, num ciclo de retro-alimentação.
    O espetáculo é feito e a totalidade da vida nele se converte, a linguagem vira mercadoria. Na expropriação da linguagem comunicativa, a vida prática é alienada e reificada, o mundo midiático (com seu apelo imagético) apaga as imagens cotidianas.

    Estou presa ao simulacro como as milhares de pessoas que ficam em vigília em frente da TV e se arriscam para presenciar as operações policiais. Os três textos que li neste blog fizeram-me percerber.

    Lembrei da idéia de espetáculo de Guy Debord e Baudrillard: (quase) todos estamos visceralmente comovidos e engajados, ao mesmo tempo, expectadores e alheios à própria vida, numa postura de passividade e contemplação, indiferentes à própria existência e a dramas mais próximos e concretos.

    Gostaria de agradecer ao autor do blog por ter me proporcionado essa percepção e parabenizá-lo por distoar da manada e seguir a própria vida com fisio e pingado!

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