segunda-feira, 30 de abril de 2012

O CACHORRO É O NOSSO MAIOR ORIENTADOR ESPIRITUAL (OU ERAM OS DEUSES CÃES?)


Nos últimos tempos tenho abraçado mais cachorros do que seres humanos. Bom pra mim. Bom pra todos. Se a candura, o se-dar-completamente e a fidelidade caninas forem contagiosos, e tomara que sejam, estou e estarei me tornando homem melhor nestes dias que ainda me restam viver sobre a Terra.
O cachorro, ao contrário do homem, não trai. Não subtrai. Não mente. Não tem nenhum tipo de preconceito. Não faz pré-julgamentos. Não acha que a AIDS só atinge os não ungidos pelo Deus de Abraão. Não rouba. Não se candidata a cargos públicos. Não corrompe. Não se deixa corromper. Não faz proselitismo de porra nenhuma. Não fala aos berros em celulares nas vias públicas. (O lema deles parece ser: viva e me deixe viver).  
É tudo de bom que o ser humano poderia ser, e não é, e nem jamais será.
[Quando crescer quero ser cachorro. Quando morrer quero reencarnar cachorro. De preferência, um golden retriever]
Em minhas caminhadas pelo Rio de Janeiro, acostumei-me a cumprimentar primeiramente os cachorros, e depois os homens que os cachorros puxam pela coleiras.  (Não se enganem. São os cachorros que puxam os homens pelas coleiras, e não o contrário, como erradamente deduzimos).
O meu cumprimento consta de som de estalo emitido pela língua em contato com o palato, de afagos generosos na corcova do cachorro, seguido de eventual e de caloroso abraço – e só depois vejo o ser humano que o cachorro puxa pela coleira, e o parabenizo pelo belo cachorro que tem como orientador e guia espiritual.
Sim, cachorros são guias e orientadores espirituais. Não será temerário dizer, e digo: são melhores nesse metiê do que Paulo Coelho, Padre Marcelo e Gandhi (& filhos) juntos. Não querem nos convencer de nada. Não querem nos roubar nada. Não  querem nos vender nada. Não querem aumentar o tamanho de nossos pênis – e, muito menos, o tamanho de nossa fé seja que porra de fé for: só querem nos dirigir aquele olhar transcendental que só eles têm, e aquele olhar transcendental que só eles têm talvez queira nos transmitir a seguinte mensagem: - Não sou guarda de trânsito para ficar orientando ninguém. Tratem de descobrir seus próprios caminhos, ó humanos de merda!  
Cachorros são basicamente sinceros. Agem sem aqueles falsos pudores que nos fazem ser uma coisa entre quatro paredes e outra coisa em público. São uma coisa só, integralmente íntegros. Fazem xixi e cocô sem pejo diante de multidões. Cheiram os cus e as genitálias dos semelhantes com admirável nonchalance. Em síntese: não querem foder com o time de ninguém – essa modalidade olímpica ora verdadeiramente universal – e estão sempre na deles.  
(God saves Dog)
Adoro o Rio de Janeiro, e um dos muitos motivos pelos quais adoro o Rio de Janeiro é a paixão que os cariocas nutrem por cachorros. Se algum dia o ser humano for às ruas protestar contra o fato de outros seres humanos terem transformado a palavra cachorro em sinonímia para pessoa vil e sem caráter, isso acontecerá às margens da Baía de Guanabara.
Há certos comportamentos dos cariocas em relação aos cachorros que mais me surpreendem do que me desconcertam – afinal de contas, confiarmos mais em cachorros do que em  homens talvez ainda deixe entrever em nós algum rasgo de sensatez nesses  mares infectos de atávica insanidade que nos afoga desde priscas eras.
Tipo:
1)    Quando o carioca vai pegar o cão que deixou para banho e tosa, o funcionário do pet shop o recebe assim: - Rex, pare de latir. A mamãe (ou papai) chegou! (e o papai ou a mamãe de Rex corre ao encontro de Rex como se fosse ao encontro da mais filosofal de todas as pedras).
2)    Se o carioca deixar o cachorro sozinho à porta do supermercado, onde lhe é vetada a entrada, algum carioca solidário passará, parará, e conversará com o cão solitário como se conversasse com criança ameaçada de orfandade, e dirá dengosamente: - Papai e mamãe lhe deixaram aqui sozinho, foi? Coitadinho! Mas não se preocupe, papai e mamãe logo voltarão.
3)    O carioca gosta de batizar os seus queridos cães com nomes humanos. Já conheci Uriel, Natan, Tomaz, Sergio Murilo, Beatriz, Sabrina, Rebeca, Ana Regina, entre outros.
Uriel é meu super-herói preferido nos últimos tempos. Trata-se de dog alemão gigante que se veste como dálmata – de branco com manchas pretas – e se comporta exemplarmente. Frequenta, às vezes com mamãe, às vezes com papai, diariamente o Aterro do Flamengo. Quando eu o conheci, e o abracei, o confundi com um dálmata.
A mamãe de Uriel (cujo nome, noblesse oblige, nunca procurei saber) reclamou: - Alto lá! Ele é um dog alemão, meu caro!
Uriel a olhou com cara de tédio. Na verdade, pouco lhe importa se é um dog alemão ou se é um um dog boliviano. Prova disso: poderia se aproveitar do tamanho que tem para vilipendiar as centenas de cães menores que lhe cruzam o caminho. É dócil e afável com os semelhantes de todas as dimensões e raças.
Só pensa em reagir à provocação de algum semelhante, se esse algum semelhante for do tamanho dele. Uriel tem princípios. Um Golias que só se dispõe a lutar, quando necessário, com outros Golias. Uriel é nobre. Uriel nunca será presidente da república. Uriel nunca será deputado federal. Enfim, Uriel nunca será homem.
Quando avisto todos esses cães altaneiros guiando homens e mulheres sombrios pelas ruas do Rio de Janeiro, penso: os cães – e não os homens – foram feitos à imagem e à semelhança do seja-lá-quem-for – Deus, ou Clotilde – que nos (des)criou.  








domingo, 22 de abril de 2012

O HOMEM QUE CAIU DO CAVALO E MORREU, E A MULHER QUE NÃO CAIU DO CAVALO, MAS MORREU DUAS VEZES


(Deus, ou quem de direito, aquele que a língua do povo aponta como o cara que escreve certo por linhas tortas, é o escritor dos escritores, o pai e a mãe de todos os escritores da Terra, e de onde mais houver vida, amor e morte).
Pegue família qualquer. Aleatoriamente. Fique na esquina de uma rua de  cidade grande ou média ou pequena do planeta e aborde o primeiro, o segundo, o terceiro, o milésimo – (ou o que seja) – ser humano que por ali passa. Diga-lhe olá, tudo bem, como vai? Sente-se com ele ou ela numa mesa de bar. Ou coma pipoca com ele ou ela num banco de jardim qualquer. Ou flane com ele ou ela pelas cercanias.
Ouça-lhe, sem pressa, as histórias familiares que terá para contar. (E  constate, se ainda não constatou, quantos zilhões de lágrimas não estão sendo necessárias para transformar aquele vale onde nos chafurdamos  há milênios neste rio tão caudaloso quanto o Amazonas, o Nilo, o Mississippi-Missouri juntos, no qual mais naufragamos que navegamos).
Todas as vidas dariam magistrais romances. Questão de quem escreve e de como esse quem-que-escreve e de como esse quem-que-escreve   aproveita as pepitas literárias brutas que encontrará estrada afora ao longo da vida e da morte.
Pegarei a minha família – ou melhor, parte dela, pelo lado materno – e por ora não escreverei romance magistral ou não magistral.  Pinçarei apenas singela crônica para matar o tédio deste fim de domingo chuvoso no Rio de Janeiro, e que dividirei apenas com parcos e raros, mas caros, leitores.
O homem que caiu do cavalo e morreu era o meu avô Antonio Martiniano.
A mulher que não caiu do cavalo, mas morreu duas vezes era a minha avó Joana.
A primeira vez que minha avó Joana morreu foi quando o meu avô Antonio Martiniano caiu do cavalo lá pelos anos 1930 e morreu. Teve fratura exposta. Não conseguiu atendimento médico adequado. A perna gangrenou. Ele não resistiu.
(Ambos moravam nas brenhas mais profundas dos cafundós da Bahia, pelas beiradas da bacia do Rio Jiquiriçá).
A minha avó Joana ficou viúva com seis filhos, entre crianças e adolescentes, para criar. Por ordem de entrada em cena: José Bailão, Baraquísio, Miguel, Águida (minha mãe, então quase adolescente) e Francisco (ainda criança, o caçula). 
Antonio Martiniano, pequeno fazendeiro e comerciante de gado, deixou-lhes certo legado: potes cheios de moedas,  que talvez garantissem à família sobrevivência digna (pelo  menos até os meus tios maternos poderem trabalhar e garantir o próprio sustento).
Trapaças da sorte: não foi assim que as coisas se deram. Os meus tios-avós, irmãos de Antonio Martiniano, apareceram, e, lobos em peles de cordeiro, rapinaram tudo.
Alegando visita de cortesia à família que acabara de perder o patriarca, apareceram de surpresa na casa de minha avó Joana. Houve até certo alvoroço de alegria entre os meus então jovens tios. Chegaram a pensar que lhes dariam alguma ajuda financeira, alguma guarida, algum amparo afetivo.
No mesmo dia em que chegaram, vasculharam a casa, descobriram os potes de bairro cheios de moeda – e levaram tudo. Deixaram para trás apenas minha avó Joana, morta-pela primeira-vez, e cinco órfãos de pai desnorteados com as duas desgraças em sequência.
Minha avó Joana, mesmo morta-pela-primeira-vez, se fingiu de viva, e fez das tripas coração. Precisava criar os filhos e arranjar jeito de sobreviver. Conseguiu uma coisa e outra coisa. Os irmãos mais velhos logo se tornaram adultos e viraram pequenos comerciantes, e ninguém morreu de fome, bala ou vício.
Essa ocorrência custou caro à minha avó Joana. Tornou-se  amarga, seca, de olhares arrevesados, de afetos e de amores desconfiados, reprimidos. Dedicou o amor que lhe restou ao filho caçula Francisco, a quem carinhosamente chamava de Chico. À minha mãe Águida, talvez por ser a segunda mais jovem e por ser mulher, também reservou naco desse amor que lhe restou. (Aos demais, nunca os destratou, mas também nunca  seria a mais amorosa das mães).
Enquanto isso, e talvez essa tragédia em dois atos tenha tornado minha avó ainda mais amarga, dois dos cunhados que haviam lhe rapinado se suicidaram, numa diferença de apenas quinze dias. Ambos se enforcaram. Um por amor. Outro por dinheiro.
Quando os netos começaram a nascer, a minha avó os tratou com zelo, mas era sempre econômica nos carinhos e nos afetos. Exigiu que nenhum neto a chamasse de , e sim de tia Joana.
Os únicos netos a quem permitiu lhe chamarem de vovó foram: 1. a minha prima Sonia, filha primogênita do amado filho Francisco; 2. este cronista que ora vos escreve, filho caçula da também amada (mas não tanto quanto Chico) filha Águida, minha mãe.
Eu adorava minha avó. O colo dela me era sempre acolhedor. Chamava-a de vovó de boca cheia e, admito, com certo orgulho por ter sido escolhido entre tantos netos, pra lá de vinte, objeto de seu amor.
Vovó morava em Mutuípe (onde nasci), às margens do Rio Jiquiriçá. Eu, que desde os três anos me mudara com a família para Jequié, me enchia de felicidade quando minha mãe e meu pai anunciavam alguma viagem de trem até à cidade natal.
Nessas viagens, eu vomitava até as tripas. A impressão era a de que o trem estava sempre parado e apenas as paisagens ao redor se movimentavam e se movimentavam numa velocidade estonteante – na verdade, míseros vinte, no máximo trinta quilômetros por hora.
Aos cinco, seis anos de idade essa jornada me exauria. A viagem de pouco mais de 150 quilômetros entre Jequié e Mutuípe durava sete horas. Entre jato de vômito e outro, o que me apascentava era saber que, ao final da viagem, me aninharia nos braços de vovó Joana.
A segunda morte – e agora morte irreversível, nada metafórica – de vovó Joana aconteceu em 1963, vítima de hemorragia digestiva.  Eu tinha nove anos, era tarde de sexta-feira, e cuidava do caixa da pequena mercearia que meu pai tinha no Mercado Municipal, 22, em Jequié. Foi então que percebi: um carteiro tinha entregado telegrama-urgente, meu pai o lera, e saíra aflito para a praça da feira, mercado persa-sertanejo no qual se vendia de tudo: de sandálias de couro que fediam a merda a tripas de porco in natura e galinhas vivas.  
Logo depois meu pai, já de volta, e meu irmão José Crispim, ambos demonstrando grande nervosismo, me avisaram, sem dizer o motivo: teríamos de viajar imediatamente para Mutuípe. Não me lembro de quem e nem de quando me comunicaram a morte de vovó Joana – nem de mais nada. Houve um blackout. Eu apaguei. Ou quis apagar tudo o que vi, e senti.
A única cena de que me lembro dessa primeira vez que a morte me cruzou o caminho foi a seguinte: à beira do caixão onde minha avó jazia, não conseguia lhe ver o rosto, era ainda bem baixinho, e espichava o pescoço para vê-la pela última vez. Foi quando alguém (talvez tio Francisco, talvez meu pai) me levantou nos braços, me derramou sobre o rosto inerte de vovó Joana, e ordenou: - Beija pela última vez o rosto de sua avó, beija.
Eu obedeci – e tudo se apagou outra vez.   

domingo, 15 de abril de 2012

O PIANISTA APRENDIZ QUE VIROU CARREGADOR DE PIANO (OU BEM QUE MINHA MÃE TENTOU)

Quando tinha modestos sete anos, a minha mãe, Águida Souza Menezes, me  matriculou no curso de piano da Loja Maçônica Areópago Jequieense. Ignoro de onde tirou essa ideia estapafúrdia:  não era mulher letrada, mal fizera o então chamado curso primário, e não havia músicos na família.
(Meus dedos eram tão curtos e tão tenros e tão gordinhos que precisava da ajuda de um bom pedaço de minha mão e, as vezes, do meu pulso, para produzir algum som nas teclas daquele instrumento que tinha, presumia, quase o tamanho do meu quarto de menino).
Não me lembro de ter resistido à ideia materna. Lembro-me  muito menos dos argumentos que minha mãe usou para me convencer a enveredar por essa inusitada empreitada infantil.
Só me recordo das mãos magras das irmãs Lúcia e Luiza Uzeda a tentarem, com santíssima paciência, colocar as minhas mãos curtas e gordinhas nas teclas certas – e enfim  eu pudesse tocar uma cançoneta qualquer naquele trambolho gigantesco que, intuía, poderia me devorar a qualquer momento.
Eram três aulas por semana, às tardes. De vez em quando eu faltava e ia assistir à alguma matinê no Cine Teatro Jequié ou no Cine Auditórium – e nenhum dos mocinhos dos muitos filmes que assistia tocava piano, o que não era exatamente motivo de estímulo para aquele garotinho que morava nas grotas mais profundas da Bahia.
Nessa época, eu provavelmente deduzia que o Pato Donald, o Recruta Zero e Os Sobrinhos do Capitão eram mais importantes do que Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart – cujas canções as irmãs Uzeda suaram, e suaram caudalosamente, para que eu tocasse pelo menos algum trechinho mais básico em algum momento do curso - e acho que cheguei a conseguir tocar alguma coisa desses mestres geniais em algum momento do curso, sim senhor.
Minha mãe, indômita, insistia. Não que me fizesse ameaças. Não, minha mãe era basicamente criatura amorosíssima. Estimulava-me sutilmente. Foi, aliás, esse estímulo sutil e carinhoso que me fez estudar quatro intermináveis anos de piano.
Nesse ínterim, entre os sete e os dez anos, é provável que tenha aprendido a tocar algumas curtas e elementares peças de compositores clássicos. Não tenho registro. A única peça musical aprendida nesse período e que ficou na minha memória até hoje foi Frére Jacques, canção de ninar francesa, popularíssima no Brasil dos anos 1960.
Não me lembro sequer a música (Bach? Schumann?  Tom Jobim? Roberto Carlos?) tocada no concerto de  formatura. Sim, houve concerto de formatura.
Mas me lembro exatamente o que vestia. Minha mãe caprichou no traje: calças pretas, sapatos pretos (Vulcabrás?), camisa de linho de manga comprida cor de rosa, e uma indefectível gravatinha-borboleta vermelha.
O pequeno auditório da Loja Maçônica Areópago Jequieense teve plateia lotada. A maioria absoluta era composta por parentes, amigos e vizinhos dos que concluíam o curso. Na primeira fila, claro, estava ela, minha mãe (certeza absoluta), e  meu pai e minhas duas irmãs (certeza não tão absoluta).
Não dei vexame. Toquei a minha música com garra e convicção. Fui aplaudido entusiasticamente no final Ao olhar para a plateia só consegui enxergar a minha mãe, a única, corujíssima, a se levantar e a me aplaudir de pé – e seus belíssimos olhos azuis estavam marejados de lágrimas.
Aconteceu. Por mais que minha mãe e aqueles belíssimos azuis insistissem, foi ali, naquele momento, o fim de minha carreira de pianista precoce.
Sempre me perguntei por que minha mãe, mulher extremamente sensível, mas de cultura simplória, se emprenhou tanto em fazer do filho um pianista. Tenho algumas conjeturas. Águida Souza Menezes teria sido  artista frustrada. Talvez pudesse ter se tornado grande atriz, se morasse numa cidade cosmopolita. Ou cantora de ópera. Ou escritora. Ou poeta. Mas não. Na acanhada Jequié dos anos 1960 se tornou a artista possível: cozinheira excepcional (apenas para a família), artesã brilhante, modista e cabeleireira disputada.
Morreu jovem para os padrões atuais de longevidade: aos 62 anos, em 13 de abril de 1976. Eu então já havia trocado Jequié por Salvador, o piano pelo teatro e pelo curso de Administração de Empresas, que não cheguei a concluir.
A ideia de eu me tornar ator e diretor teatral não a incomodou. Ao contrário. Quando, liderando grupo de atores amadores, todos bem maluquinhos, para dizer o mínimo, apresentamos a peça Supermercado Pau & Osso em Jequié, minha mãe foi magnânima: não só hospedou todo o elenco na casa da nossa família, como assistiu às duas apresentações na primeira fila do Salão Paroquial da Igreja Matriz de Santo Antônio de Pádua.
Aos 15 anos, estimulado por minha mãe, fui morar sozinho em Salvador (os meus irmãos mais velhos não tiveram esse privilégio; eu era o filho caçula). Era como se ela tivesse decidido: - Esse aqui vai ser na vida tudo o que não conseguir ser.
Morreu sem saber que eu me tornei jornalista. Só segui esse caminho  alguns meses depois da morte dela, fazendo um novo concurso vestibular. Gostava de escrever e achava, erradamente, percebi depois, que seria a única carreira na qual eu exerceria a minha paixão de escrever plenamente e diuturnamente. Ledo e ivo e nagle engano.
Minha mãe, portanto, não tem nenhuma responsabilidade no fato de eu ter abraçado essa carreira inglória à qual me dedico nos últimos 35 anos, com muitos êxitos, mas, também, com muitos fracassos. Mea culpa mea maxima culpa.
Também me tornei escritor (carreira ainda mais inglória do que a de jornalista; mas minha mãe certamente gostaria de saber que me tornei escritor) – e um escritor que não quer desistir nunca, embora, submetido aos caprichos do desatinado e eventualmente sórdido mercado literário brasileiro, pense em abandonar tudo e virar monge trapista em algum lugar do mundo, ou mergulhar em mares mais abissais, e irretornáveis. 
Só não sigo essa trilha escapista porque penso na minha mãe, que, esteja onde estiver, e certamente ela está em algum lugar, dirá: - Vá em frente, vá em frente! Conquiste o que não consegui conquistar.
(E é por isso continuo caminhando, até que a morte me arrebate).
Talvez a intuição materna estivesse certa, e eu devesse ter prosseguido na minha carreira de pianista, iniciada e abortada tão precocemente. Quem sabe hoje não seria famoso no mundo inteiro e morasse em algum castelo do interior da França, e fosse um homem feliz, pleno, realizado, e bem-casado com alguma atriz ou ator de Hollywood?
Não existe, nem existirá, resposta para tal pergunta. 
De qualquer forma, posso e devo rir desta minha errática trajetória jornalístico-literária e concluir, bem-humoradamente:  não mudei totalmente de ramo entre a infância e a (ainda buscada) maturidade. Em meados dos anos 1960, era pianista aprendiz. Hoje, em 2012, sou carregador de piano (claro, quando há algum piano para carregar; nem sempre há).
Assim é a vida, caro leitor: tal e qual a grande literatura, nunca se sabe exatamente o que vai acontecer no início, no fim, e no meio. (Salve Raul!)
Minha mãe talvez desconfiasse, e tentasse, me mudar de rota, tornando-me pianista.
Mas sabemos o nosso enredo básico: ninguém muda a rota de ninguém - mas minha mãe não tinha obrigação de saber disso, ou não queria que a vida fosse asim. 
PS: a vida ainda pulsa, e, como, acacianamente, dizia o meu pai, e minha mãe concordava: - O jogo só acaba quando termina.


  





 

domingo, 8 de abril de 2012

AS GARGALHADAS ÁSPERAS DE DEMENTE DO VENTO QUE LEVA TUDO (OU MORTE NO PALCO)

Fujo do vento, como o diabo foge da cruz.
Temo o vento.
O meu medo é que o vento me vergue, me quebre em dois, em três, em mil, e espalhe meus pedaços pelos ares, e esses pedaços sejam devorados pelos biguás que voam sobre a Baía de Guanabara.
A poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930) escreveu belo verso sobre a insaciabilidade desse ar-em-frenesi quando se agita e desse ar-em-frenesi quando enlouquece:
´O vento passa a rir, torna a passar
em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh´alma trágica e doente
Não sabe se há de rir/se há de chorar!´
(A chuva me aquieta). O vento me inquieta.
Esse temor talvez advenha das sentenças ameaçadoras que me bradavam na infância.
Ao congelar um ar zarolho de colega de escola.
Ao imitar um mendigo que mancava.
Ao macaquear o jeito de gaguejar da vizinha.
Ao matraquear palavras sem sentido como se fosse louco.
Ao fingir que morria e que caía espetaculosamente morto no chão.
Ao cometer qualquer uma dessas sandices, havia sempre voz superegoica de plantão que tonitruava, como se fosse a voz de Deus, mas era mesmo a voz de minha mãe, das duas irmãs, ou de algum pequeno amigo temente do vento:
- Para de fazer isso. Se o vento passar por aqui agora, você ficará zarolho pelo resto da vida. Se o vento passar por aqui agora você vai mancar pelo resto da vida. Se o vento passar por aqui agora você será gago pelo resto da vida. Se o vento passar por aqui agora você se tornará um louco de rua pelo resto da vida. Se o vento passar aqui agora você nunca mais voltará a viver.
Parava a brincadeira na hora. Cria piamente: se o vento passasse e me flagrasse nessas situações, o vento tinha o poder de me transformar, num piscar d´olhos, em zarolho, em aleijado, em gago, em louco, ou em morto.
O vento podia tudo. (O vento pode tudo)
Nas minhas caminhadas diárias pelas ruas do Rio de Janeiro nada me acabrunha, nada me abate, nada me imobiliza. Nem chuva. Nem ladrões-de-bicicleta-roubando-correntinas-e-celulares-no-Aterro-do-Flamengo. Nem relâmpagos. Nem trovões. Mas o vento, sim: quando a ventania bate forte, rezo dois pais-nossos, duas ave-marias, me apego a Santa Bárbara - e me enfio num abrigo qualquer até que o vento se amanse e vá embora, e eu possa voltar a respirar em paz.
Lembrei esse vento que tudo pode, e que transforma brincadeiras e representações em situações reais ao ler notícia no jornal de hoje: em Itararé, interior de São Paulo, o ator Thiago Klimeck se enforcou acidentalmente ao representar a cena do enforcamento de Judas Iscariotes num espetáculo da Paixão de Cristo.
O ator não corre risco de morte. Mas a morte passou por perto, a um nanomilímetro do pescoço do sujeito, certamente soprada pelo vento, esse vilão alado e que pode tudo e do qual fujo como o diabo foge da cruz.
Lembrei também outro evento ocorrido há algumas décadas, talvez começo dos anos 1980, em Salvador, Bahia.
Ok, o fato assustador aconteceu dentro de um teatro – a Sala do Coro do Teatro Castro Alves, durante a representação de uma peça cujo nome não me lembro mais – e ventos não costumam circular por salas de teatro de portas fechadas.
Mas quem sabe não houvesse imenso ventilador ligado para mitigar o calor do verão baiano, e esse vento emanado pelo ventilador tivesse gerado essa ocorrência bizarra?
A ocorrência bizarra: o personagem interpretado pelo ator Ed Ribeiro (jovem simpático e querido de cabelos encaracolados com quem tomei algumas cervejas geladas em botecos da Rua Carlos Gomes ou do Beco dos Artistas) morria em cena. Ressurgia alguns minutos depois, dentro de caixão, em velório cenográfico que marcava o final da peça.
Na hora dos aplausos, todos os atores se colocaram em posição de agradecimento ao público. Todos, menos Ed Ribeiro.
Pasme, caro leitor: o ator Ed Ribeiro teve ataque cardíaco fulminante, e morreu dentro do caixão, silenciosamente, em cena aberta, num mix de ficção e realidade que nem a mais rocambolesca literatura seria capaz de criar.
Não estava na Sala do Coro do Teatro Castro Alves nessa noite. Mas quando soube, pensei no vento, no poder de vida e de morte do vento, e em como fora bom que me avisassem sobre o poder de vida e de morte do vento nos meus tempos de criança.
PS1: Em 1982, durante as filmagens de No Limite da Realidade, filme em quatro episódios, dirigido por Steven Spielberg, John Landis e Joe Dante, a realidade ultrapassou todos os limites: em certa cena, o personagem interpretado por Vic Morrow (1929-1982) salvava duas crianças de algum destino cruel, e as transportava, de helicóptero, rumo a alguma eventual redenção.
O helicóptero, depois de pouco tempo de voo, caiu.
Ficou totalmente destruído.
O ator e as duas crianças-atores morreram.
PS2: Em 1993, o vento soprou novamente: durante as filmagens de O Corvo (The Crow) o ator Brandon Lee (1965-1993) foi, num assassinato de mentirinha, coisas da vida & da morte, assassinado de verdade por bala de fuzil disparada – acidentalmente? – por colega de cena.
A poeta Florbela Espanca tem razão:  o vento sempre ri, e ri com gargalhadas ásperas de demente – e talvez pelo fato de o vento ter rido dela com essas garras de demente, tenha soçobrado tão precocemente: numa terceira tentativa de suicídio, morreu aos 36 anos.
Quem quiser chamar o vento, como Dorival Caymmi o fez em belíssima canção (O Vento), que o chame. Eu não.

  

domingo, 1 de abril de 2012

A VIPERINA LÍNGUA DO POVO (OU QUANDO CERVEJA BRAHMA NÃO É USADA PARA FINS ETÍLICOS)

Em tempos de antanho, lá pelos idos dos anos 1960 – quando essas gambiarras futuristas de hoje em dia tipo internet e aipodes dos mais diversos calibres poderiam ser, no máximo, conversa de bêbado e de  maconheiro – a mídia mais eficiente era mesmo a língua do povo, viperina, demolidora, destruidora de lares e de reputações. Arrasadora.
A língua do povo era instituição temida por Deus e o por todo mundo. A língua do povo se disseminava que nem doença virótica de alto poder de fogo em mesas de bar; em conversas de comadres nas portas de casa em finais de tarde; em cochichos e sussurros de adolescentes que se umedeciam (as meninas) e que tinham leve ereção (os meninos) ao propalar tal ou qual notícia escandalosa.
Se verdadeira ou não, pouco importava, a notícia se espalhava. O que excitava, o que realmente nos dava tesão, era dar com a língua nos dentes, falar mal da vida alheia, provar por a mais b que o jeito de viver do próximo era muito mais pecaminoso e luxurioso que a nosso. O inferno eram os outros.
Disparávamos nossos petardos verbais de alto poder de fogo sem pudor algum, sem pejo algum. Era o nosso jeito de matar o tédio. De mandar para o inferno a angústia de morar num cu de mundo do interior da Bahia em priscas e remotas eras. De debelar e diluir a possível fúria de enfiar trocentas facadas no baixo ventre do próximo que estivesse mais próximo. De se sentir cidadãos de terceira classe, longe da ´grande capitá´.
As donas de casa e senhores de ares hipocritamente pudicos, mas cheios de amásias, sentiam estranho prazer ao comentar com seus pares: - Fulana de tal se perdeu com um caixeiro-viajante, e já tá de bucho.
Os mais jovens usavam terminologia mais moderna, e comentavam no intervalo das aulas: - Fulana de tal quebrou o cabaço com um cara de fora, e vai ter de casar na marra. 
(E este cronista-então-petiz imaginava que cabaço fosse algo assim feito uma daquelas taças de cristal que abarrotavam as cristaleiras da sala de jantar da minha casa, e que eram o xodó de minha mãe Águida. E este cronista-então-petiz também se perguntava por que diabos quebrar o cabaço de alguém era condição determinante para ter de se casar com esse alguém).
Não havia Jornal Nacional, nem Facebook,  nem SMS, mas as notícias escandalosas corriam com a velocidade da luz. Ou do jamaicano Usain Bolt.
Certo dia, incendiou-se rapidamente, tal e qual pequena trilha de pólvora atingida por fósforo incandescente, a seguinte notícia: o Sr. A.L.M., pacato cidadão jequieense, probo pai de família, profissional exemplar (exercia funções ligadas às Ciências Contábeis) fora internado às pressas no Hospital Regional Prado Valadares.
Na calada da noite, em plena via pública, ermíssima àquela altura da madrugada, esse indigitado senhor enfiou garrafa de cerveja vazia na, digamos, caverna anal. Desastre dos desastres, o objeto pontiagudo e de inegável inspiração fálica, lhe fizera vácuo (era exatamente essa a expressão que circularia boca a boca pela cidade nos dias seguintes), e o pobre contador não conseguira tirar, sem ajuda de outrem, o que acabara de fazer penetrar nas suas entranhas com as próprias mãos.
Com dores dilacerantes, o indigitado contador uivou como lobo (empalado) no apogeu da lua cheia. O que chamou a atenção de certa moradora da  vizinhança, azar dos azares, uma das línguas mais ferinas da cidade.
A língua ferina, mas momentaneamente alma caridosa, o levou ao hospital. Atendido com rapidez, o contador A.L.M. teve a garrafa de cerveja arrancada de suas entranhas, como se fosse um baço ou um rim cancerosos.
Quando este cronista-então-petiz soube da notícia no dia seguinte, a primeira pergunta que me invadiu - e certamente invadiu a cabeça de muitos cidadãos e cidadãs locais - foi a seguinte: por que diabos aquele homem sem nenhum grau de insanidade aparente enfiara garrafa de cerveja Brahma (sim, a língua do povo conseguira descobrir até a marca da dita cuja) no, perdão leitores, próprio cu?
No decorrer dos dias, o quebra-cabeça foi se configurando na cabeça deste cronista-então-petiz que, com argúcia quase jornalística, procurou aos poucos elucidar aquela estranha ocorrência. Ouvindo línguas ferinas, e não ferinas, diversas, apurei o seguinte drama vivido pelo contador A.L.M.
(E não me alarmei com isso, apenas comecei a perceber, e foi bom que tivesse começado a perceber isso bem jovenzinho, que a vida nunca é o que aparenta ser: como diria o escritor Antoine Saint-Exupery no livro O Pequeno Príncipe, que acabara de ler, ´o essencial é invisível para os olhos´ - inclusive, ou principalmente, no sentido sexual)).
O drama apurado por este petiz-cronista foi o seguinte: o contador A.L.M. era bissexual - à época dizia-se gilete. Como a carne foi, é, e será sempre fraca, em certas noites de lua cheia, o nosso personagem, costumava, digamos, se aventurar por trilhas mais perigosas. Largava esposa e filhos em casa; tirava o fusquinha vermelho da garagem; surrupiava algumas brahmas da geladeira; e mergulhava pelas ruas ermas e silenciosas daquele cu de mundo que me pariu.
Na cabeça de A.L.M., já devidamente lubrificada pelo álcool, desenhava-se sempre a seguinte saga: encontrar homem que lhe satisfizesse sexualmente – (os meus colegas de escola usavam linguagem mais chula, tipo ´achar alguém que enchesse o cu dele de porra´).  
Na minha de cabecinha de pudim de garoto inexperiente, mas arguto, uma pergunta se configurava insistentemente: - Nesta cidade na qual à noite até os postes de luz das ruas se recolhem para dormir, e onde vivalma sequer circula pelas calçadas esburacadas, quem A.L.M. imaginava que pudesse encontrar para satisfazer os seus mais íntimos desejos?
Passei esta pergunta a um colega mais experiente, e ele foi didático, mas cruel: - Dizem que, de vez em quando, A.L.M. encontra algum bêbado caído na sarjeta, ou um doido que não sabe direito mais o que lhe ocorre e o que não lhe ocorre, e esses bêbados e esses doidos ´comem a bunda dele´.
Aproveitei a vocação, digamos, iluminista do meu colega mais experiente, e arguí: - Mas por que diabos ele enfiou a garrafa de cerveja Brahma no fiofó?
Meu amigo mais experiente elucidou-me: - Desespero. Puro desespero. Deve ter rodado por muito tempo pela cidade e depois de não encontrar ninguém que pudesse lhe saciar os desejos, fissurado para dar o rabo, não deve ter lhe restado outra saída a não ser socar a garrafa de cerveja no próprio cu.
Foi quando sincera compaixão se apossou deste cronista-então-petiz em relação a esse contador-pai-de-família-e-talvez-marido-exemplar – e as seguintes questões martelaram-me o cérebro nos dias seguintes:
1. Em que grau de tormentos A.L.M. não viveria mergulhado tentando se equilibrar nessa corda bamba?
2. Como conseguiria seguir a vida, fazer balancetes bancários, preencher com cálculos mais e mais cadernos de débito e crédito com a dona culpa sentando-lhe diuturnamente na corcova?
3. Como conviver com essa sexualidade heterodoxa numa época e numa cidade totalmente refratárias a qualquer prática sexual que avançasse um milímetro sequer do esquema milenar papai-mamãe?
Não cheguei a nenhuma conclusão.
O tempo foi passando – novas histórias foram surgindo – em Feira de Santana, a 200 quilômetros de Jequié, revelou-se a história de solteirona encruada que toda a semana ia parar no hospital após enfiar uma ou duas bananas na vagina; e a partir do momento em que a prática dessa mulher se tornou pública, alcunharam-lhe de Ana Banana – o mundo continuou girando – a Lusitana prosseguiu rodando – e, algum tempo depois, cruzei, no meio da Praça Rui Barbosa, com o indigitado A.L.M., o homem que, no meio da noite, em plena via pública, havia enfiado uma garrafa de cerveja  Brahma no cu.
A.L.M. me conhecia, nossas famílias se conheciam, e ele, ao me vê, se desesperou. Evitou o meu olhar (que ainda era de compaixão, mas ele não sabia, nem nunca saberia, dessa minha compaixão). Atravessou a rua às pressas. Quase foi atropelado.
Foi a última vez que o vi.
Algum tempo depois troquei a amada, mas recatada, cidade onde passei a infância – e, cá pra nós, àquela época a prosaica e simplória Jequié poderia ter ares libertários de grandes metrópoles? – por Salvador. Eram os anos 1970, o auge do desbunde e do cada-um-vive-como-quer, e então pude lavar (e bem lavadamente) a minha alma: mergulhei, para o bem e para o mal, em todos os mistérios e delírios da carne. (Thanks, Lord!)
Que fim levou o contador que enfiou uma garrafa de cerveja no cu no meio da noite em via pública? Não sei. Talvez tenha se matado. Ou não. (O ser humano é capaz de resistir às maiores diatribes da sorte).
E a língua do povo? Bem, a língua do povo continua firme e forte e demolidora – e assim será, creio, para todo o sempre.