domingo, 22 de abril de 2012

O HOMEM QUE CAIU DO CAVALO E MORREU, E A MULHER QUE NÃO CAIU DO CAVALO, MAS MORREU DUAS VEZES


(Deus, ou quem de direito, aquele que a língua do povo aponta como o cara que escreve certo por linhas tortas, é o escritor dos escritores, o pai e a mãe de todos os escritores da Terra, e de onde mais houver vida, amor e morte).
Pegue família qualquer. Aleatoriamente. Fique na esquina de uma rua de  cidade grande ou média ou pequena do planeta e aborde o primeiro, o segundo, o terceiro, o milésimo – (ou o que seja) – ser humano que por ali passa. Diga-lhe olá, tudo bem, como vai? Sente-se com ele ou ela numa mesa de bar. Ou coma pipoca com ele ou ela num banco de jardim qualquer. Ou flane com ele ou ela pelas cercanias.
Ouça-lhe, sem pressa, as histórias familiares que terá para contar. (E  constate, se ainda não constatou, quantos zilhões de lágrimas não estão sendo necessárias para transformar aquele vale onde nos chafurdamos  há milênios neste rio tão caudaloso quanto o Amazonas, o Nilo, o Mississippi-Missouri juntos, no qual mais naufragamos que navegamos).
Todas as vidas dariam magistrais romances. Questão de quem escreve e de como esse quem-que-escreve e de como esse quem-que-escreve   aproveita as pepitas literárias brutas que encontrará estrada afora ao longo da vida e da morte.
Pegarei a minha família – ou melhor, parte dela, pelo lado materno – e por ora não escreverei romance magistral ou não magistral.  Pinçarei apenas singela crônica para matar o tédio deste fim de domingo chuvoso no Rio de Janeiro, e que dividirei apenas com parcos e raros, mas caros, leitores.
O homem que caiu do cavalo e morreu era o meu avô Antonio Martiniano.
A mulher que não caiu do cavalo, mas morreu duas vezes era a minha avó Joana.
A primeira vez que minha avó Joana morreu foi quando o meu avô Antonio Martiniano caiu do cavalo lá pelos anos 1930 e morreu. Teve fratura exposta. Não conseguiu atendimento médico adequado. A perna gangrenou. Ele não resistiu.
(Ambos moravam nas brenhas mais profundas dos cafundós da Bahia, pelas beiradas da bacia do Rio Jiquiriçá).
A minha avó Joana ficou viúva com seis filhos, entre crianças e adolescentes, para criar. Por ordem de entrada em cena: José Bailão, Baraquísio, Miguel, Águida (minha mãe, então quase adolescente) e Francisco (ainda criança, o caçula). 
Antonio Martiniano, pequeno fazendeiro e comerciante de gado, deixou-lhes certo legado: potes cheios de moedas,  que talvez garantissem à família sobrevivência digna (pelo  menos até os meus tios maternos poderem trabalhar e garantir o próprio sustento).
Trapaças da sorte: não foi assim que as coisas se deram. Os meus tios-avós, irmãos de Antonio Martiniano, apareceram, e, lobos em peles de cordeiro, rapinaram tudo.
Alegando visita de cortesia à família que acabara de perder o patriarca, apareceram de surpresa na casa de minha avó Joana. Houve até certo alvoroço de alegria entre os meus então jovens tios. Chegaram a pensar que lhes dariam alguma ajuda financeira, alguma guarida, algum amparo afetivo.
No mesmo dia em que chegaram, vasculharam a casa, descobriram os potes de bairro cheios de moeda – e levaram tudo. Deixaram para trás apenas minha avó Joana, morta-pela primeira-vez, e cinco órfãos de pai desnorteados com as duas desgraças em sequência.
Minha avó Joana, mesmo morta-pela-primeira-vez, se fingiu de viva, e fez das tripas coração. Precisava criar os filhos e arranjar jeito de sobreviver. Conseguiu uma coisa e outra coisa. Os irmãos mais velhos logo se tornaram adultos e viraram pequenos comerciantes, e ninguém morreu de fome, bala ou vício.
Essa ocorrência custou caro à minha avó Joana. Tornou-se  amarga, seca, de olhares arrevesados, de afetos e de amores desconfiados, reprimidos. Dedicou o amor que lhe restou ao filho caçula Francisco, a quem carinhosamente chamava de Chico. À minha mãe Águida, talvez por ser a segunda mais jovem e por ser mulher, também reservou naco desse amor que lhe restou. (Aos demais, nunca os destratou, mas também nunca  seria a mais amorosa das mães).
Enquanto isso, e talvez essa tragédia em dois atos tenha tornado minha avó ainda mais amarga, dois dos cunhados que haviam lhe rapinado se suicidaram, numa diferença de apenas quinze dias. Ambos se enforcaram. Um por amor. Outro por dinheiro.
Quando os netos começaram a nascer, a minha avó os tratou com zelo, mas era sempre econômica nos carinhos e nos afetos. Exigiu que nenhum neto a chamasse de , e sim de tia Joana.
Os únicos netos a quem permitiu lhe chamarem de vovó foram: 1. a minha prima Sonia, filha primogênita do amado filho Francisco; 2. este cronista que ora vos escreve, filho caçula da também amada (mas não tanto quanto Chico) filha Águida, minha mãe.
Eu adorava minha avó. O colo dela me era sempre acolhedor. Chamava-a de vovó de boca cheia e, admito, com certo orgulho por ter sido escolhido entre tantos netos, pra lá de vinte, objeto de seu amor.
Vovó morava em Mutuípe (onde nasci), às margens do Rio Jiquiriçá. Eu, que desde os três anos me mudara com a família para Jequié, me enchia de felicidade quando minha mãe e meu pai anunciavam alguma viagem de trem até à cidade natal.
Nessas viagens, eu vomitava até as tripas. A impressão era a de que o trem estava sempre parado e apenas as paisagens ao redor se movimentavam e se movimentavam numa velocidade estonteante – na verdade, míseros vinte, no máximo trinta quilômetros por hora.
Aos cinco, seis anos de idade essa jornada me exauria. A viagem de pouco mais de 150 quilômetros entre Jequié e Mutuípe durava sete horas. Entre jato de vômito e outro, o que me apascentava era saber que, ao final da viagem, me aninharia nos braços de vovó Joana.
A segunda morte – e agora morte irreversível, nada metafórica – de vovó Joana aconteceu em 1963, vítima de hemorragia digestiva.  Eu tinha nove anos, era tarde de sexta-feira, e cuidava do caixa da pequena mercearia que meu pai tinha no Mercado Municipal, 22, em Jequié. Foi então que percebi: um carteiro tinha entregado telegrama-urgente, meu pai o lera, e saíra aflito para a praça da feira, mercado persa-sertanejo no qual se vendia de tudo: de sandálias de couro que fediam a merda a tripas de porco in natura e galinhas vivas.  
Logo depois meu pai, já de volta, e meu irmão José Crispim, ambos demonstrando grande nervosismo, me avisaram, sem dizer o motivo: teríamos de viajar imediatamente para Mutuípe. Não me lembro de quem e nem de quando me comunicaram a morte de vovó Joana – nem de mais nada. Houve um blackout. Eu apaguei. Ou quis apagar tudo o que vi, e senti.
A única cena de que me lembro dessa primeira vez que a morte me cruzou o caminho foi a seguinte: à beira do caixão onde minha avó jazia, não conseguia lhe ver o rosto, era ainda bem baixinho, e espichava o pescoço para vê-la pela última vez. Foi quando alguém (talvez tio Francisco, talvez meu pai) me levantou nos braços, me derramou sobre o rosto inerte de vovó Joana, e ordenou: - Beija pela última vez o rosto de sua avó, beija.
Eu obedeci – e tudo se apagou outra vez.   

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