domingo, 1 de abril de 2012

A VIPERINA LÍNGUA DO POVO (OU QUANDO CERVEJA BRAHMA NÃO É USADA PARA FINS ETÍLICOS)

Em tempos de antanho, lá pelos idos dos anos 1960 – quando essas gambiarras futuristas de hoje em dia tipo internet e aipodes dos mais diversos calibres poderiam ser, no máximo, conversa de bêbado e de  maconheiro – a mídia mais eficiente era mesmo a língua do povo, viperina, demolidora, destruidora de lares e de reputações. Arrasadora.
A língua do povo era instituição temida por Deus e o por todo mundo. A língua do povo se disseminava que nem doença virótica de alto poder de fogo em mesas de bar; em conversas de comadres nas portas de casa em finais de tarde; em cochichos e sussurros de adolescentes que se umedeciam (as meninas) e que tinham leve ereção (os meninos) ao propalar tal ou qual notícia escandalosa.
Se verdadeira ou não, pouco importava, a notícia se espalhava. O que excitava, o que realmente nos dava tesão, era dar com a língua nos dentes, falar mal da vida alheia, provar por a mais b que o jeito de viver do próximo era muito mais pecaminoso e luxurioso que a nosso. O inferno eram os outros.
Disparávamos nossos petardos verbais de alto poder de fogo sem pudor algum, sem pejo algum. Era o nosso jeito de matar o tédio. De mandar para o inferno a angústia de morar num cu de mundo do interior da Bahia em priscas e remotas eras. De debelar e diluir a possível fúria de enfiar trocentas facadas no baixo ventre do próximo que estivesse mais próximo. De se sentir cidadãos de terceira classe, longe da ´grande capitá´.
As donas de casa e senhores de ares hipocritamente pudicos, mas cheios de amásias, sentiam estranho prazer ao comentar com seus pares: - Fulana de tal se perdeu com um caixeiro-viajante, e já tá de bucho.
Os mais jovens usavam terminologia mais moderna, e comentavam no intervalo das aulas: - Fulana de tal quebrou o cabaço com um cara de fora, e vai ter de casar na marra. 
(E este cronista-então-petiz imaginava que cabaço fosse algo assim feito uma daquelas taças de cristal que abarrotavam as cristaleiras da sala de jantar da minha casa, e que eram o xodó de minha mãe Águida. E este cronista-então-petiz também se perguntava por que diabos quebrar o cabaço de alguém era condição determinante para ter de se casar com esse alguém).
Não havia Jornal Nacional, nem Facebook,  nem SMS, mas as notícias escandalosas corriam com a velocidade da luz. Ou do jamaicano Usain Bolt.
Certo dia, incendiou-se rapidamente, tal e qual pequena trilha de pólvora atingida por fósforo incandescente, a seguinte notícia: o Sr. A.L.M., pacato cidadão jequieense, probo pai de família, profissional exemplar (exercia funções ligadas às Ciências Contábeis) fora internado às pressas no Hospital Regional Prado Valadares.
Na calada da noite, em plena via pública, ermíssima àquela altura da madrugada, esse indigitado senhor enfiou garrafa de cerveja vazia na, digamos, caverna anal. Desastre dos desastres, o objeto pontiagudo e de inegável inspiração fálica, lhe fizera vácuo (era exatamente essa a expressão que circularia boca a boca pela cidade nos dias seguintes), e o pobre contador não conseguira tirar, sem ajuda de outrem, o que acabara de fazer penetrar nas suas entranhas com as próprias mãos.
Com dores dilacerantes, o indigitado contador uivou como lobo (empalado) no apogeu da lua cheia. O que chamou a atenção de certa moradora da  vizinhança, azar dos azares, uma das línguas mais ferinas da cidade.
A língua ferina, mas momentaneamente alma caridosa, o levou ao hospital. Atendido com rapidez, o contador A.L.M. teve a garrafa de cerveja arrancada de suas entranhas, como se fosse um baço ou um rim cancerosos.
Quando este cronista-então-petiz soube da notícia no dia seguinte, a primeira pergunta que me invadiu - e certamente invadiu a cabeça de muitos cidadãos e cidadãs locais - foi a seguinte: por que diabos aquele homem sem nenhum grau de insanidade aparente enfiara garrafa de cerveja Brahma (sim, a língua do povo conseguira descobrir até a marca da dita cuja) no, perdão leitores, próprio cu?
No decorrer dos dias, o quebra-cabeça foi se configurando na cabeça deste cronista-então-petiz que, com argúcia quase jornalística, procurou aos poucos elucidar aquela estranha ocorrência. Ouvindo línguas ferinas, e não ferinas, diversas, apurei o seguinte drama vivido pelo contador A.L.M.
(E não me alarmei com isso, apenas comecei a perceber, e foi bom que tivesse começado a perceber isso bem jovenzinho, que a vida nunca é o que aparenta ser: como diria o escritor Antoine Saint-Exupery no livro O Pequeno Príncipe, que acabara de ler, ´o essencial é invisível para os olhos´ - inclusive, ou principalmente, no sentido sexual)).
O drama apurado por este petiz-cronista foi o seguinte: o contador A.L.M. era bissexual - à época dizia-se gilete. Como a carne foi, é, e será sempre fraca, em certas noites de lua cheia, o nosso personagem, costumava, digamos, se aventurar por trilhas mais perigosas. Largava esposa e filhos em casa; tirava o fusquinha vermelho da garagem; surrupiava algumas brahmas da geladeira; e mergulhava pelas ruas ermas e silenciosas daquele cu de mundo que me pariu.
Na cabeça de A.L.M., já devidamente lubrificada pelo álcool, desenhava-se sempre a seguinte saga: encontrar homem que lhe satisfizesse sexualmente – (os meus colegas de escola usavam linguagem mais chula, tipo ´achar alguém que enchesse o cu dele de porra´).  
Na minha de cabecinha de pudim de garoto inexperiente, mas arguto, uma pergunta se configurava insistentemente: - Nesta cidade na qual à noite até os postes de luz das ruas se recolhem para dormir, e onde vivalma sequer circula pelas calçadas esburacadas, quem A.L.M. imaginava que pudesse encontrar para satisfazer os seus mais íntimos desejos?
Passei esta pergunta a um colega mais experiente, e ele foi didático, mas cruel: - Dizem que, de vez em quando, A.L.M. encontra algum bêbado caído na sarjeta, ou um doido que não sabe direito mais o que lhe ocorre e o que não lhe ocorre, e esses bêbados e esses doidos ´comem a bunda dele´.
Aproveitei a vocação, digamos, iluminista do meu colega mais experiente, e arguí: - Mas por que diabos ele enfiou a garrafa de cerveja Brahma no fiofó?
Meu amigo mais experiente elucidou-me: - Desespero. Puro desespero. Deve ter rodado por muito tempo pela cidade e depois de não encontrar ninguém que pudesse lhe saciar os desejos, fissurado para dar o rabo, não deve ter lhe restado outra saída a não ser socar a garrafa de cerveja no próprio cu.
Foi quando sincera compaixão se apossou deste cronista-então-petiz em relação a esse contador-pai-de-família-e-talvez-marido-exemplar – e as seguintes questões martelaram-me o cérebro nos dias seguintes:
1. Em que grau de tormentos A.L.M. não viveria mergulhado tentando se equilibrar nessa corda bamba?
2. Como conseguiria seguir a vida, fazer balancetes bancários, preencher com cálculos mais e mais cadernos de débito e crédito com a dona culpa sentando-lhe diuturnamente na corcova?
3. Como conviver com essa sexualidade heterodoxa numa época e numa cidade totalmente refratárias a qualquer prática sexual que avançasse um milímetro sequer do esquema milenar papai-mamãe?
Não cheguei a nenhuma conclusão.
O tempo foi passando – novas histórias foram surgindo – em Feira de Santana, a 200 quilômetros de Jequié, revelou-se a história de solteirona encruada que toda a semana ia parar no hospital após enfiar uma ou duas bananas na vagina; e a partir do momento em que a prática dessa mulher se tornou pública, alcunharam-lhe de Ana Banana – o mundo continuou girando – a Lusitana prosseguiu rodando – e, algum tempo depois, cruzei, no meio da Praça Rui Barbosa, com o indigitado A.L.M., o homem que, no meio da noite, em plena via pública, havia enfiado uma garrafa de cerveja  Brahma no cu.
A.L.M. me conhecia, nossas famílias se conheciam, e ele, ao me vê, se desesperou. Evitou o meu olhar (que ainda era de compaixão, mas ele não sabia, nem nunca saberia, dessa minha compaixão). Atravessou a rua às pressas. Quase foi atropelado.
Foi a última vez que o vi.
Algum tempo depois troquei a amada, mas recatada, cidade onde passei a infância – e, cá pra nós, àquela época a prosaica e simplória Jequié poderia ter ares libertários de grandes metrópoles? – por Salvador. Eram os anos 1970, o auge do desbunde e do cada-um-vive-como-quer, e então pude lavar (e bem lavadamente) a minha alma: mergulhei, para o bem e para o mal, em todos os mistérios e delírios da carne. (Thanks, Lord!)
Que fim levou o contador que enfiou uma garrafa de cerveja no cu no meio da noite em via pública? Não sei. Talvez tenha se matado. Ou não. (O ser humano é capaz de resistir às maiores diatribes da sorte).
E a língua do povo? Bem, a língua do povo continua firme e forte e demolidora – e assim será, creio, para todo o sempre.








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