domingo, 15 de abril de 2012

O PIANISTA APRENDIZ QUE VIROU CARREGADOR DE PIANO (OU BEM QUE MINHA MÃE TENTOU)

Quando tinha modestos sete anos, a minha mãe, Águida Souza Menezes, me  matriculou no curso de piano da Loja Maçônica Areópago Jequieense. Ignoro de onde tirou essa ideia estapafúrdia:  não era mulher letrada, mal fizera o então chamado curso primário, e não havia músicos na família.
(Meus dedos eram tão curtos e tão tenros e tão gordinhos que precisava da ajuda de um bom pedaço de minha mão e, as vezes, do meu pulso, para produzir algum som nas teclas daquele instrumento que tinha, presumia, quase o tamanho do meu quarto de menino).
Não me lembro de ter resistido à ideia materna. Lembro-me  muito menos dos argumentos que minha mãe usou para me convencer a enveredar por essa inusitada empreitada infantil.
Só me recordo das mãos magras das irmãs Lúcia e Luiza Uzeda a tentarem, com santíssima paciência, colocar as minhas mãos curtas e gordinhas nas teclas certas – e enfim  eu pudesse tocar uma cançoneta qualquer naquele trambolho gigantesco que, intuía, poderia me devorar a qualquer momento.
Eram três aulas por semana, às tardes. De vez em quando eu faltava e ia assistir à alguma matinê no Cine Teatro Jequié ou no Cine Auditórium – e nenhum dos mocinhos dos muitos filmes que assistia tocava piano, o que não era exatamente motivo de estímulo para aquele garotinho que morava nas grotas mais profundas da Bahia.
Nessa época, eu provavelmente deduzia que o Pato Donald, o Recruta Zero e Os Sobrinhos do Capitão eram mais importantes do que Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus Mozart – cujas canções as irmãs Uzeda suaram, e suaram caudalosamente, para que eu tocasse pelo menos algum trechinho mais básico em algum momento do curso - e acho que cheguei a conseguir tocar alguma coisa desses mestres geniais em algum momento do curso, sim senhor.
Minha mãe, indômita, insistia. Não que me fizesse ameaças. Não, minha mãe era basicamente criatura amorosíssima. Estimulava-me sutilmente. Foi, aliás, esse estímulo sutil e carinhoso que me fez estudar quatro intermináveis anos de piano.
Nesse ínterim, entre os sete e os dez anos, é provável que tenha aprendido a tocar algumas curtas e elementares peças de compositores clássicos. Não tenho registro. A única peça musical aprendida nesse período e que ficou na minha memória até hoje foi Frére Jacques, canção de ninar francesa, popularíssima no Brasil dos anos 1960.
Não me lembro sequer a música (Bach? Schumann?  Tom Jobim? Roberto Carlos?) tocada no concerto de  formatura. Sim, houve concerto de formatura.
Mas me lembro exatamente o que vestia. Minha mãe caprichou no traje: calças pretas, sapatos pretos (Vulcabrás?), camisa de linho de manga comprida cor de rosa, e uma indefectível gravatinha-borboleta vermelha.
O pequeno auditório da Loja Maçônica Areópago Jequieense teve plateia lotada. A maioria absoluta era composta por parentes, amigos e vizinhos dos que concluíam o curso. Na primeira fila, claro, estava ela, minha mãe (certeza absoluta), e  meu pai e minhas duas irmãs (certeza não tão absoluta).
Não dei vexame. Toquei a minha música com garra e convicção. Fui aplaudido entusiasticamente no final Ao olhar para a plateia só consegui enxergar a minha mãe, a única, corujíssima, a se levantar e a me aplaudir de pé – e seus belíssimos olhos azuis estavam marejados de lágrimas.
Aconteceu. Por mais que minha mãe e aqueles belíssimos azuis insistissem, foi ali, naquele momento, o fim de minha carreira de pianista precoce.
Sempre me perguntei por que minha mãe, mulher extremamente sensível, mas de cultura simplória, se emprenhou tanto em fazer do filho um pianista. Tenho algumas conjeturas. Águida Souza Menezes teria sido  artista frustrada. Talvez pudesse ter se tornado grande atriz, se morasse numa cidade cosmopolita. Ou cantora de ópera. Ou escritora. Ou poeta. Mas não. Na acanhada Jequié dos anos 1960 se tornou a artista possível: cozinheira excepcional (apenas para a família), artesã brilhante, modista e cabeleireira disputada.
Morreu jovem para os padrões atuais de longevidade: aos 62 anos, em 13 de abril de 1976. Eu então já havia trocado Jequié por Salvador, o piano pelo teatro e pelo curso de Administração de Empresas, que não cheguei a concluir.
A ideia de eu me tornar ator e diretor teatral não a incomodou. Ao contrário. Quando, liderando grupo de atores amadores, todos bem maluquinhos, para dizer o mínimo, apresentamos a peça Supermercado Pau & Osso em Jequié, minha mãe foi magnânima: não só hospedou todo o elenco na casa da nossa família, como assistiu às duas apresentações na primeira fila do Salão Paroquial da Igreja Matriz de Santo Antônio de Pádua.
Aos 15 anos, estimulado por minha mãe, fui morar sozinho em Salvador (os meus irmãos mais velhos não tiveram esse privilégio; eu era o filho caçula). Era como se ela tivesse decidido: - Esse aqui vai ser na vida tudo o que não conseguir ser.
Morreu sem saber que eu me tornei jornalista. Só segui esse caminho  alguns meses depois da morte dela, fazendo um novo concurso vestibular. Gostava de escrever e achava, erradamente, percebi depois, que seria a única carreira na qual eu exerceria a minha paixão de escrever plenamente e diuturnamente. Ledo e ivo e nagle engano.
Minha mãe, portanto, não tem nenhuma responsabilidade no fato de eu ter abraçado essa carreira inglória à qual me dedico nos últimos 35 anos, com muitos êxitos, mas, também, com muitos fracassos. Mea culpa mea maxima culpa.
Também me tornei escritor (carreira ainda mais inglória do que a de jornalista; mas minha mãe certamente gostaria de saber que me tornei escritor) – e um escritor que não quer desistir nunca, embora, submetido aos caprichos do desatinado e eventualmente sórdido mercado literário brasileiro, pense em abandonar tudo e virar monge trapista em algum lugar do mundo, ou mergulhar em mares mais abissais, e irretornáveis. 
Só não sigo essa trilha escapista porque penso na minha mãe, que, esteja onde estiver, e certamente ela está em algum lugar, dirá: - Vá em frente, vá em frente! Conquiste o que não consegui conquistar.
(E é por isso continuo caminhando, até que a morte me arrebate).
Talvez a intuição materna estivesse certa, e eu devesse ter prosseguido na minha carreira de pianista, iniciada e abortada tão precocemente. Quem sabe hoje não seria famoso no mundo inteiro e morasse em algum castelo do interior da França, e fosse um homem feliz, pleno, realizado, e bem-casado com alguma atriz ou ator de Hollywood?
Não existe, nem existirá, resposta para tal pergunta. 
De qualquer forma, posso e devo rir desta minha errática trajetória jornalístico-literária e concluir, bem-humoradamente:  não mudei totalmente de ramo entre a infância e a (ainda buscada) maturidade. Em meados dos anos 1960, era pianista aprendiz. Hoje, em 2012, sou carregador de piano (claro, quando há algum piano para carregar; nem sempre há).
Assim é a vida, caro leitor: tal e qual a grande literatura, nunca se sabe exatamente o que vai acontecer no início, no fim, e no meio. (Salve Raul!)
Minha mãe talvez desconfiasse, e tentasse, me mudar de rota, tornando-me pianista.
Mas sabemos o nosso enredo básico: ninguém muda a rota de ninguém - mas minha mãe não tinha obrigação de saber disso, ou não queria que a vida fosse asim. 
PS: a vida ainda pulsa, e, como, acacianamente, dizia o meu pai, e minha mãe concordava: - O jogo só acaba quando termina.


  





 

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