sábado, 19 de maio de 2012

O FANIQUITO ORAL E ANAL DE UM PAI DE SANTO EM PARIS (OU CU EM TRANSE)


Pai Inácio de Iansã, quase irreconhecível, ressurge em cena vinte quilos mais magro – graças, principalmente a gororoba amarga, mas inegavelmente emagrecedora (garantiu-lhe vizinha do subúrbio de São Tomé de Paripe, Salvador, Bahia, cheia de truques) que misturava berinjela, vinagre e água, da qual bebeu hectolitros nos últimos meses, antes de aceitar o irrecusável convite de viagem da filha de santo que mais o enche de orgulho.

Mergulha, como não pode deixar de ser, na pompa e na circunstância que a ocasião e o lugar emanam À direita avista o magnífico Musée Rodin. À esquerda, aprecia a magnificência do Les Invalides. Resquícios da papada superlativa de outrora e da barriga rotunda esculpida lentamente a colheradas de gordurosas comidas de santo ainda podem ser notados aqui e alhures. Mas são meros detalhes. A elegância do traje obscurece qualquer  evidência de excessos corporais calipígios.

Veste Giorgio Armani da cabeça aos pés: calça bege; camisa colarinho Nehru branca; paletó branco; lenço preto no bolso; sapatos pretos. Desce do Bentley Continental GTC vermelho-Saint-James – que Bárbara prefere, com mais propriedade, chamar vermelho-Iansã – antes que o porteiro-manobrista do restaurante da Rue de Varenne chegue a tempo (embora o pobre-diabo tivesse corrido bravamente) de abrir-lhe a porta.

Olha ao redor com estudada magnanimidade. Gosta do que vê: Paris no outono, nem estupidamente gelada, nem estupidamente quente. Do jeito que gosta. Sente-se no topo do mundo.

(Nesta cidade e neste lugar como me lembrar de Joaquim José, que me traiu, que me abandonou e, há cerca de seis meses, se casou com rica e lésbica cantora-baiana chamada Michele Cajahyba, deixando-me absolutamente arrasado?)

O porteiro-manobrista do restaurante da Rue de Varenne  corre  novamente, pensa na gorda gorjeta que certamente ganhará algumas horas depois (a dona daquele carro é sempre muita generosa), e dispara velozmente em direção à outra porta do Bentlley Continental GTC. A tempo de puxar a maçaneta daquele espetacular automóvel antes que a espetacular Bárbara Lecuona desça do carro e pise na calçada com o garbo e o esplendor que lhes são sempre peculiares.

(Se dependesse dele, daquele porteiro-manobrista daquele restaurante da Rua Varenne, aquela mulher nunca pisaria na calçada, e sim nele, que se disporia, sem pejo algum, a se transformar em tapete vermelho sobre o qual aquela deusa de ébano desfilaria até a porta do restaurante, ou até o fim do mundo se ela quisesse).

O que esse porteiro-manobrista vê ao abrir a porta do carro, embora já a tivesse visto antes várias vezes, ela até já o chama pelo primeiro nome, o coloca novamente em êxtase. Não é para menos. A bordo de sapato fechado em tons de vermelho e azul de salto dez, pulseiras de ouro branco que lhes tilintam nos pulsos, e terninho vermelho com pequenos detalhes em branco, tudo da Maison Chanel - da cabeça aos pés,  Bárbara Lecuona surge em cena: fulgurante, arrebatadora, esplêndida.

O porteiro-manobrista a vê sempre (Bárbara Lecuona é freqüentadora contumaz desse restaurante da Rue Varenne, desde antes de o multimilionário marido português, Jorge Lecuona, morrer). Mas não se cansa de admirá-la, de apreciá-la, de desejá-la. Emigrante caribenho, trocou a periferia de Fort-de-France, na Martinica, pela periferia de Paris há mais de vinte anos (Para viver, sem queixas,  das migalhas que os muito ricos me enfiam na mão), está acostumado com belezas negras desde o berço.

Mas, dificilmente, Durval diz, cheio de arrebatamento, em conversa com os amigos, vi, ou verei, alguma beleza negra como essa milionária brasileira-portuguesa que ora desce do carro elegantemente, e lhe sussurra, pondo-o em absoluto e quase hipnótico encantamento: - Merci, Durval, merci.

Braço dado com Pai Inácio de Iansã, Bárbara Lecuona adentra o  luxuoso, mas decorado com sobriedade, ambiente. (Ao fundo se ouve Eric Satie, o suave Eric Satie, tocando Trois Sarabandes, e que embala languidamente o desfile altaneiro de Bárbara Lecuona). Dispara sorrisos e cumprimentos. Ouve de todas as bocas: - Bonjour, madame. Bienvenu madame! Salue, madame!

Sente-se em casa. Segue para ocupar a mesa que sempre ocupa (em  canto discreto, aconchegante, e acolhedor, aos pés do retrato de Louise Canard, a mãe de Olivier Canard, chef du cuisine e dono deste célebre restaurante parisiense). Anda de jeito tão espontâneo, tão sem pompa e tão sem circunstância, que parece caminhar do quarto para o banheiro  de algumas de suas casas na Europa e na Bahia.

Pai Inácio de Iansã parece menos à vontade. Talvez alvoroçado por recém-instalado calo no dedão do pé direito provocado de sapato de grife famosa, e por certo incômodo que o cós apertado da calça lhe proporciona, demonstra-se ligeiramente  agitado, ligeiramente nervoso. Mas, honra ao mérito, se esforça ao máximo, visivelmente, para não dar vexame, embora tenha visto, ou ache que tenha visto, por canto de olho, três ou quatro celebridades que já vira antes nas telas de cinema e nas revistas de celebridades que coleciona com paixão.

Alguns até mesmo acenaram para Bárbara como se fossem íntimos. Quase desmaia, no entanto, quando cruza olhar com, caralho, será ele mesmo?, um talvez-George-Clooney. espetacularmente lindo. A troca de olhares eletriza Pai Inácio de Iansã, é mais forte do que ele, quase faz desmaiá-lo. Assim que chega à cadeira na qual senta espalhafatosamente,  argui a amiga, e, excitadíssimo, aponta: - Aquele homem ma-ra-vi-lho-so naquela mesa ali é o ator George Clooney., ou é impressão minha?

Bárbara baixa-lhe os dedos com discrição e cochicha-lhe, antes que um dos garçons se aproxime para perguntar-lhes o que querem comer e beber: - Não aponte assim, meu querido. Talvez seja o George Clooney.  sim. Ele costuma aparecer por aqui quando vem a Paris. Talvez seja ele sim.

Pai Inácio de Iansã demonstra inquietação e certo destempero, e quase grita: - Como talvez? Ou ele é George Clooney. ou ele não é George Clooney., minha querida. Fácil assim. Simples assim.

Bárbara tenta se controlar e evitar o embaraço de ter de virar o pescoço e encarar o homem da mesa ao lado, pois se o fizer estará cometendo gafe imperdoável em locais assim, onde todos são celebridades, e, portanto, todos agem como se não existissem celebridades ao redor: - Calma, meu querido, calma!

Pai Inácio de Iansã imprime tom cada vez mais impositivo à amiga, talvez impulsionado pelo calo que eclode sem dó nem piedade no dedão do pé direito: - É ou não é ele, porra?

Bárbara, acuada, fica sem saída. Só lhe resta então se virar  discretamente e sorrir para o garçom que se aproxima. Ao fazê-lo, percebe George Clooney, ele mesmo, a lhe olhar incisivamente, a dois metros dela, e lhe cumprimentar: - Hi, Bárbara! Nice to see you. You are gorgeous!!! Bárbara balbucia, imersa em ar totalmente blasé: - Hi, George! Nice to meet you too!

Vira-se então para Pai Inácio de Iansã e exclama, como se o amigo fosse cego, surdo e mudo e não tivesse acabado de presenciar o que presenciara: - É ele mesmo. É o George Clooney!

Pai Inácio de Iansã, excitadíssimo: - Não acredito que isso esteja acontecendo! E aquele homem magnífico ainda lhe acena para você do jeito que acenou, e ainda lhe cumprimenta do jeito que cumprimentou? Ai, minha Santa Bárbara, ai minha Iansã, valei-me! Por que você foi me trazer para um lugar desses, minha querida? Eu não vou dar conta. Não vou! Eu vou dar vexame, eu vou!

Bárbara tenta acalmar e acarinhar o amigo: - Calma. Vai dar conta, sim. Não vai dar vexame nenhum, não vai. Fiz questão de trazer você para passar alguns dias comigo em Paris exatamente porque quero lhe mostrar lugares e pessoas que você sempre quis conhecer,  mas nunca teve oportunidade. George era amigo do meu marido Jorge Lecuona, que adorava cinema e que o ajudou na produção de alguns filmes, algo assim. (Tentando assumidamente  mudar de assunto) Mas o que quero lhe dizer é o seguinte: consegui chegar aonde cheguei hoje, conheci essas pessoas famosas todas que conheço hoje, graças a você. Se não fosse você...

Pai Inácio de Iansã interrompe-a, com certa brusquidão: - Eu e, acima de mim, Ela. Foi Ela quem me deu todas as coordenadas. Iansã. Se não fosse Ela nada teria lhe ocorrido.

Bárbara: - Certo, certo. Agradeço a Ela todo o dia e a toda hora, a cada sopro de ar que respiro. Mas a você nunca agradeci, digamos, oficialmente, e quero fazê-lo agora. Quero muito que você viva dias muito felizes comigo em Paris, volte para Salvador de alma lavada, e esqueça de vez essa história com Joaquim José.

Antes que Pai Inácio de Iansã fale desse assunto que ainda o machuca muito, simpaticíssimo garçom se interpõe entre os dois amigos e pergunta o que desejam comer e beber. Bárbara consulta o amigo sobre o que gostaria de provar: - Você não gostaria de experimentar a lagosta maravilhosa que fazem aqui, com molho especialíssimo à base de gengibre e estragão?

Pai Inácio de Iansã demonstra-se visivelmente constrangido diante do olhar inquisitivo, mas delicioso, ele me olha como se estivesse nu, do garçom. Percebe, também, o que o alvoroça ainda mais, que se trata de belíssimo espécime, capaz de me fazer esquecer de Joaquim José  em dois tempos. Afunda-se então em dilema cruel:  quererá mesmo que  esse garçom gostosíssimo suma dali e o deixe em paz para conversar com Bárbara? Ou não?

Alguém chama o garçom, que desvia o rosto, e para de desnudá-lo com o olhar. Quebra-se enfim o clima. Então Pai Inácio de Iansã finalmente dispara, com certo estudado ar de tédio: - Você sabe que, se eu pudesse, só comeria abará, abará e abará. Como aqui, posso deduzir, não servem abará, peça o que você quiser, o que você gostar, certo, minha querida?

Bárbara, aliviada, responde-lhe com irradiante simpatia (é visível o quanto ter este amigo por perto a deixa feliz): - Está certíssimo, meu querido, você é quem manda. Pai Inácio de Iansã aproveita a deixa e faz piada: - Ah, sim, além de abará, abará e abará, não me importaria nem um pouco se aquele garçom encantador nos servisse o George Clooney que está ali na mesa ao lado. Detalhe:  com pimenta, bastante pimenta, e azeite de dendê! Bárbara ri com a brincadeira, acrescenta e com gengibre, bastante gengibre, e ordena, num francês impecável que deixa Pai Inácio de Iansã petrificado, ao garçom que poderia fazer-me esquecer Joaquim José em dois tempos os pratos e bebidas que queria. De novo a sós, Joaquim José volta a ser o tema da conversa dos dois amigos.

Bárbara (risonha e franca): - Nunca imaginei que Joaquim José se casasse algum dia com mulher e, ainda por cima, com mulher que fosse lésbica. Ele sempre me apareceu tão afetado, tão boneca...

Pai Inácio de Iansã (cortando-a, algo magoado com a constatação da amiga): - Impressão sua. Ele não era tão boneca assim, minha querida! Você sabe que, na maior parte do tempo, ele sempre foi o  ativo e eu o passivo?

Bárbara (surpresa): - Não acredito. Jura?

Pai Inácio de Iansã: - Foi sim. Tinha, e tenho, certa preguiça de fazer sexo anal. Essa coisa de enfiar o pau no cu dos outros não me anima muito, sabia? Então, Joaquim José resolvia o meu problema dessa minha preguiça em penetrá-lo, penetrando-me, entendeu? Além disso, tinha outra coisa. Ele era louco para casar. Vivia me enchendo o saco para que nos casássemos oficialmente e convidássemos nomes famosos da sociedade e da cultura baianas, até mesmo gente de Rio, São Paulo e Brasília,  para solenidade que deveríamos promover, desejava Joaquim José, no Forte de São Marcelo, lugar que achava lindo e lugar no qual afinal se casou com aquela ordinária cantora lésbica baiana. Se dependesse dele, teríamos nos casado de papel passado e tudo o mais...

Bárbara (interrompendo-o com bom humor):  – Menos mal. Se não agora vocês teriam que se divorciar...

Pai Inácio de Iansã: - Já pensou?

Bárbara (sinceramente preocupada): - Você acha que Joaquim José será  feliz?

Pai Inácio de Iansã: - Você sabe que sempre me pergunto isso? Na verdade, gostaria muito que sim. Gosto muito dele ainda, você sabe disso. Mas na verdade acho que ele vai ser feliz, sim. Joaquim José  é, ao contrário de mim, muito ambicioso. Será capaz de estar feliz pelo simples fato de ter casado com mulher rica e famosa que poderá lhe satisfazer todas as vontades. Além disso, não se esqueça:  ele tem todo aquele sonho de se tornar famoso etc e tal.

Bárbara (sinceramente curiosa): - E a parte sexual? A atração inegável que ele sente pelos homens e que ela sente pelas mulheres?

Pai Inácio de Iansã (já demonstrando afetada loquacidade e afetada  vivacidade, quase lhe fazendo esquecer o calo que lhe gritava no pé e o cós que lhe dividia a barriga em duas; essas novas sensações advinham da volúpia com que consumia o vinho gentilmente servido por aquele garçom que me faria esquecer Joaquim José em dois tempos): - Minha querida, não seja ingênua, aí que está o xis da questão. Uma mão lava a outra, entende? Não foi o primeiro, nem será o último, homossexual a se casar com lésbica. Não terá sido a última lésbica a casar com gay. Entendeu a lógica da coisa? É simples, minha querida, eles usam a memória. Ele não deixa de transar com homens, claro. Ela também não deixa de transar com mulheres, claro também. Então, de posse das memórias dessas relações, Joaquim José come Michele Cajahyba,  como se comesse  outro homem ou se fosse enrabado por outro homem. Michele Cajahyba fode com Joaquim José como se estivesse sendo penetrada pela mão ou pela língua de alguma amante. Entendeu a equação?

Bárbara (inesperadamente chocada): - Você acha que isso acontece mesmo, assim mesmo do jeito que você está falando?

Pai Inácio de Iansã (cada vez mais exaltado; agora disparando olhares lascivos com igual intensidade para o garçom – que acabara de trazer os pratos pedidos, tão belamente decorativos, que sentiu de vontade de cristalizá-los, levá-los para Salvador, e colocá-los na parede da sala da ampla casa do subúrbio de Paripe – e para George Clooney., que, na mesa ao lado, não parava de olhar para Bárbara, ou, delirou, seria para mim?): - Isso acontece o tempo todo, minha querida. A quantidade de gays que se casam com mulheres, e de lésbicas que se casam com gays, para serem aceitos socialmente, e utilizam suas memórias homossexuais quando têm relações sexuais é assustadora, as-sus-da-do-ra!

Bárbara (que tentava elegantemente mordiscar bem-decoradíssima  pata de lagosta, mas, sinceramente interessado no que o amigo lhe revelava, resigna-se a bicar o caviar iraniano que enfeita as bordas delicadas do finíssimo prato Lalique no qual a iguaria –  Carpaccio du Langoustine à L’huile D’Olive et Caviar – era servida): -  Os gays comem as mulheres e pensam na bunda dos homens, é isso? As lésbicas se deixam enrabar pensando na mão e na língua das outras mulheres, é isso? Que maravilha! A idéia é ótima, ardilosíssima, brilhante.

Pai Inácio de Iansã: (exaltando-se perigosamente, e fazendo descer goela abaixo mais um generoso gole de vinho que o garçom colocava com frequência cada vez maior no fino cálice Lalique com que o servia): - É isso aí, e isso aí não é nenhuma novidade. Fazem isso desde os gregos. Em Hollywood era o que mais rolava, e ainda é o que mais rola. Os homens comem as mulheres e pensam no pau i-men-so que os amantes lhes enfiam nas bundas! Ou as mulheres são penetradas pelos homens e pensam nas línguas afiadas que lambem as vaginas delas! Mas tudo bem, não gosto de julgar ninguém. Cada um faz de si o que quiser e bem entender, não é verdade?

A essa altura da alta dosagem de vinho que o afogava, tudo lhe parece o mais absoluto jardim das delícias. O restaurante agora atulhado de celebridades - todas etereamente mergulhadas na trilha sonora agora tocada, composta por Nicoló Paganini, mais exatamente Veitequattro Capricci Per Violino Solo, Opus 1 -  se torna cada vez mais aconchegante, mais uterino, mais casa dele  para Pai Inácio de Iansã.

Pai Inácio de Iansã olha para a amiga, agora a multimilionária Bárbara Lecuona, com muito amor:  sabia que, fizesse o que fizesse, nada lhe aconteceria. Olha para o garçom que descobriu, graças à curiosidade de Bárbara, ser tunisiano chamado Ravic Shamur e que havia passado a adolescência em cidade brasileira próxima à Foz do Iguaçu, e que, portanto, falava português precário, mas simpático, com agora inegável volúpia. Imagina que não só Ravic Shamur o fará esquecer Joaquim José, mas também quer, deseja, anseia que Ravic Shamur o penetre ali mesmo sobre aquela mesa encimada por aquela fotografia solene naquele refinado restaurante de Paris.

Olha também para os demais comensais e cada vez mais vê rostos que lhe são familiares. Além de George Clooney. que continua a contemplar Bárbara cobiçosamente, depara com semblantes muito parecidos com os de Jeanne Moreau, Catherine Deneuve, que viu e reviu dezenas de vezes em A Bela da Tarde, ao mesmo tempo em que chupava pênis alheios em sessões seguidas no Cine Capri, em Salvador); Alain Delon; Fanny Ardant; Audrey Tatou, Marion Catillard, Jean Dujardim e Bérénice Bejo; enfim a fina flor, o dernier cri, do cinema francês.

Em mesa mais adiante duas velhuscas, mas ainda enxutas e guapas, vestidas de maneira elegantíssima, talvez de Chanel ou Dior, lhe remetem a dois rostos muitíssimos conhecidos, os quais tenta desesperadamente lembrar-se. Até que se lembra: são Brigitte Bardot e Mylene Demongeot., célebres símbolos sexuais de tempos de antanho por  quem Pai Inácio de Iansã, louco por cinema, sente verdadeira veneração. Suspira. É emoção demais para mim.

Bárbara Lecuona também, embora bebesse menos, já parece mais descontraída. Visivelmente relaxada, também já está um pouco mais bêbada que o normal, eventualmente deixa escapulir o sapato Manolo Blahnik dos belíssimos pés. Mas rapidamente recompõe-se, e os calça outra vez.

Pai Inácio de Iansã muda então o foco da conversa: - E como está esse seu ménage a trois com Lourenço e Narcisa Lecuona?

Bárbara (a bordo de efusiva felicidade): - De vento em popa. De vento em popa.

Pai Inácio de Iansã (assumidamente vulgar): - E quem come quem?

Bárbara (fingindo certa irritação, mas mantendo o tom risonho e franco de sempre): - Não seja vulgar, meu querido. Mas aqui pra nós, todo mundo come todo mundo.

Pai Inácio de Iansã (visivelmente interessado por saber maiores detalhes dessa história): - Como assim?

Bárbara (mantendo o riso e a franqueza): - Simples assim. Às vezes transo com Lourenço. Às vezes transo com Narcisa. Às vezes transo com os dois ao mesmo tempo.

Pai Inácio de Iansã (mantendo o tom de fofoca): - Não surgem ciúmes?

Bárbara (sem pestanejar): - Quando surgem, conversamos. O importante é que cada um de nós tem vida pessoal independente. Quando nos encontramos é uma farra, uma maravilha. Enquanto estou aqui com você, Lourenço está em Nova York e Narcisa, em Londres...

Pai Inácio de Iansã (com assumidas intenções moralizantes):  – Certamente transando com outras pessoas...

Bárbara (cortando-o, desafiadora): - E se estiverem? Sabe o que aprendi neste mundo e nunca quero deixar de aprender, meu querido? Que ninguém é de ninguém. Por mais que queiramos amarrar alguém na perna da nossa cama, jamais conseguiremos fazê-lo. Adiantou o quê você ficar pegando no pé de Joaquim José o tempo inteiro? Adiantou o quê, me diga?

Pai Inácio de Iansã (magoado, mas conciliador): - Oxente, menina, fique calma. Não se esqueça que fui eu que botei na sua cabeça de que eles estavam loucos para foder com você, loucos. O nosso amigo Lázaro de Assis Valente que morreu de Aids, que Deus o tenha,  tinha razão: quem desdenha quer sempre comprar, sempre!

Bárbara (tentando reparar a gafe que cometera): - Perdão, meu querido. Já tinha me esquecido que fora você que colocou essa ideia maravilhosa na minha cabeça...

Pai Inácio de Iansã (ligeiramente repreensivo): – Mas não se esqueça disso nunca, entendeu?  Fui eu sim, com a bênção de Iansã, quem colocou Lourenço e Narcisa no seu caminho.

Bárbara: - Obrigada meu pai, obrigada Iansã. Juro que nunca mais vou esquecer, nunca!

Apetites satisfeitos e saciados, Ravic Shamur, o garçom tunisiano que falava precariamente português (agora já quase íntimo de ambos) retirou os pratos ainda quase intocados. Ambos riam, relaxadamente, sem preocupação com nada, nem com ninguém. Como se não houvesse amanhã.

Pai Inácio de Iansã demonstra-se insaciável e pede a Bárbara para pedir mais vinho, e mais vinho é servido pelo garçom a quem o Pai Inácio de Iansã cobiça de maneira cada vez mais evidente. Bárbara observa bem-humoradamente, sem nenhum tom de recriminação, fala por falar: - Olha, não beba demais, se não você vai acabar protagonizando sessão de sexo anal com o Ravic Shamur aqui mesmo....

Pai Inácio de Iansã gargalha: - Sabe que não é má ideia?

Enquanto Pai Inácio de Iansã faz essa bem-humorada pergunta, percebe que  algo lhe arrebata a mente, atravessa-lhe o cérebro, agita-lhe as entranhas. Sabe o que isso poderá significar. Quando essas coisas aconteceram anteriormente, o transe, a possessão era inevitável, inadiável. Ainda tem tempo de alertar a amiga: - Bárbara, lamento muito. Isso me acontece de vez em quando e parece que voltará a acontecer agora...

Bárbara (ligeiramente embriagada, ignorando o poder de fogo das cenas que virão a seguir): - O que foi meu querido, está se sentindo mal? Bebeu demais o meu queridinho, não foi?

Pai Inácio de Iansã (falando rápido, como se precisasse pegar trem às pressas e precisasse correr): - É o seguinte, minha querida: vez em quando pomba-gira lasciva e sapeca me possui, e perco totalmente o controle, saio de mim mesmo, tiro a roupa, começo a falar sandices, e demoro a me controlar, a voltar ao normal, entendeu?

Bárbara (enfim parecendo levá-lo a sério): - Quando morava na Bahia você não tinhas esses acessos não. Quando isso começou?

Pai Inácio de Iansã (já falando tropegamente): - Não foi há muito tempo não. Tive minha primeira crise há coisa de um ano, quando soube que o Joaquim José estava me traindo com aquela rica e lésbica cantora baiana, a Michele Cajahyba. 

Bárbara (olhos acesos, coração disparado, semblante ligeiramente alterado): - Nada pode impedir isso?

Pai Inácio de Iansã (incisivo): - Nada!

Bárbara (minuciosa; já pensando em algo que possa evitar algum desastre iminente): - Nada poderá tirá-lo desse transe?

Pai Inácio de Iansã: - Poderá sim. Mas você não vai acreditar no que me poderá tirar desse transe...

Bárbara (nervosa, alguns comensais já olham com curiosidade para a mesa que ocupam): - O quê, meu querido, o quê?

Pai Inácio de Iansã (categórico): - Algum homem bonito e gostoso terá que enfiar o dedo no meu cu para eu sair do transe...

Bárbara (sem querer crer no que acabou de ouvir): - O quê? Você está brincando comigo...

Pai Inácio de Iansã (decisivo): - Não, não estou brincando...

Bárbara (visivelmente interessada em encontrar  solução mais doméstica para enfrentar esse terrível transtorno que se anuncia): - Não poderia ser o meu.... o meu dedo, o dedo elegante de sua querida amiga?

Pai Inácio de Iansã (levantando-se da mesa, à beira de total e completa apoplexia): - Não, já disse que não. NÃO. NÃO, NÃO!!!

(Nem a música fulgurante de Nicoló Paganini que continua a se espalhar freneticamente pelo amplo salão do restaurante é capaz de abafar os terríveis berros de Pai Inácio de Iansã).

Pai Inácio de Iansã mergulha então no mais agitado dos desvarios, no mais frenético dos transes. Arranca as várias camadas de Armani que o cobrem em questão de segundos. Primeiramente o lenço bege, que atira em direção ao garçom tunisiano Ravic Shamur, que dele se aproxima com visíveis sinais de preocupação e de pânico. Depois o paletó branco, a camisa gola Nehru branca, e, enfim, os sapatos e as calças, que, atiradas a esmo, quase atingem George Clooney, caso o ator americano, ágil, não tivesse abaixado a cabeça.

Ainda de cueca vermelha, circula em zigue-zague veloz entre as mesas. Exatamente às margens da mesa que Myléne Demongeot. e Brigitte Bardot. ocupam, arranca-a como se arrancasse peça de roupa do varal de seu amplo quintal de São Tomé de Paripe, em Salvador, Bahia, joga-a para o alto. Na descida a peça íntima cai molemente, maciamente, sobre o Tomate Confite Aux Douze Saveurs que Catherine Deneuve. saboreava, quase religiosamente. Ela abafa grito curto, levanta-se, e some de cena.

Pai Inácio de Iansã volta aos pulos à mesa que ocupava. Puxa então, de um só golpe, a toalha branca. Derruba no chão vários copos e pratos Lalique,   espatifando-os. Transforma a seguir aquela peça de finíssimo linho branco em pomposo turbante que arma sobre a cabeça, dando-lhe certo ar de príncipe africano recém-saído do banho. Então, completamente nu não fosse pelo turbante improvisado, Pai Inácio de Iansã, a bordo de pomba-gira demasiadamente  ideológica, vocifera: - Vão tomar no cu, seus burgueses de merda! Vão se foder, seus burgueses de merda!

(Bárbara, mergulhada no mais absoluto paroxismo, ainda imobilizada pelo choque recente, afunda-se no terninho Chanel. Mais: se pudesse,  partiria ao encontro da madame Louise Canard dessa fotografia aí de cima, ao lado de quem viveria para todo o sempre).

Os célebres comensais deslocam pescoços e ombros em ritmo frenético. Tentam acompanhar as diabruras que Pai Inácio de Iansã faz pelo amplo salão.

Eis as diabruras de Pai Inácio de Iansã: a) alisa e beija a lustrosa careca de certo senhor com cara de magnata grego. b) esfrega as nádegas dadivosas e fartas no rosto de vários homens, inclusive no rosto de George Clooney. c) libera flatos letais que pesteiam o ar com odores terríveis. d) joga beijos por entre as mesas como se acabasse de ter sido eleita rainha da primavera em alguma cidade primeva do interior da Bahia. e) em frente à mesa ocupada pelas senhoras Bardot e Demongeot, brada, cuspindo jatos de saliva caudalosa sobre as atrizes:  Vocês já devem ter quase cem anos anos, mas ainda dão um bom caldo, suas danadinhas!!! f) amassa seguidamente o pênis, que não demora a enrijecer e a se transformar em adaga pontuda e afiada que maneja como se fosse sabre ávido por cortar cabeças.

Como se não bastasse tudo isso, Pai Inácio de Iansã ainda urra, berra, uiva inusitada imprecação: - Quero que comam a minha bunda! Querem que enfiem o dedo no meu cu.

Numa palavra: caos.

Noutra: turbilhão.

A cena dura pouco mais de cinco minutos, mas é o suficiente para transformar o elegante restaurante no mais prosaico pardieiro do Pigalle, aos pés de Montmartre, ou da Ladeira da Montanha, às margens da Praça Castro Alves. Casais assustados abandonam taças de vinho ainda intocadas e pratos que apenas começavam a beliscar, e tentam escapulir do local às pressas. Algumas mulheres deixam cair colares e pulseiras reluzentes. Ao vê-los fugirem, Pai Inácio de Iansã os cerca, os apalpa, os bolina, e volta a explodir, a imprecar: - Quero que comam minha bunda! Quero que enfiem o dedo no meu cu, seus franceses de merda!

Olivier Canard, o chef du cuisine e dono do restaurante,  que, com o barulho, abandonara a cozinha e viera, desesperado, apagar o incêndio, implora, com a lhaneza que lhe é peculiar, a Bárbara que faça alguma coisa para acalmar o amigo.

(Mas nada parece capaz de apagar aquele incêndio. Nada parece capaz de aplacar o fogo de Pai Inácio de Iansã).

Então Bárbara se lembra da frase dita por Pai Inácio de Iansã antes de entrar em transe, antes de ser possuído por aquela pomba-gira maléfica (Algum homem bonito e gostoso terá que ficar o dedo no meu cu para eu sair do transe). Não pensa duas vezes, pois se pensar duas vezes se imobilizará, não fará o que deverá ser feito. Precisa, custe o que custar, dê no que der, fazer algo para interromper aquela sanha enlouquecida que se apossa do amigo querido.

Olha ao redor: tenta desesperadamente achar algum cúmplice naquela missão insana. Precisa encontrar alguém que se disponha a acionar aquela inusitada senha que possa tirar o amigo querido  e desse torpor maligno e nefando. Ninguém lhe parece louco o suficiente para fazer o que lhes quer pedir. George Clooney? No way. Além disso, Mr. Clooney, cauteloso, já se escafedera antes que algum paparazzi o flagrasse com a língua enfiada no rabo de um negro brasileiro.

Nesse exato Ravic Shamur, o garçom tunisiano, entra em cena. Carrega elegante roupão branco Dior. Tenta meio pateticamente alcançar Pai Inácio e  abafar-lhe a nudez cada vez mais eloqüente, cada vez mais priápica (ele, o pomba-girado, agora se masturba freneticamente sobre uma das mesas e não para de urrar o mantra que lhe frita as entranhas).

Bárbara olha-o, esse é o cara, e, agilíssima, puxa Ravic Shamur a um canto, e declara: - Só tem um jeito de fazê-lo sair desse transe: enfiar-lhe o dedo no cu, e isso tem de  ser feito por um homem bonito e gostoso. Como você, Ravic Shamur. Salve minha vida, Ravic Shamur. Faça isso por mim!

Ravic Shamur pensa então que todo o português que aprendera no tempo que vivera no Brasil não era suficiente para entender o que lhe pedia Bárbara Lecuona. Diante da cara de parvo dele, Bárbara tem de ser rápida no gatilho. Saca pacote de dinheiro do coldre-bolsa Chanel e lhe propõe, sem vacilações, não é momento para vacilações, porra!: - Seguinte, cherri. Pago-lhe 20 mil euros cash, agora, já, para você enfiar o dedo no cu dele. Entendeu? Entendeu?

O tunisiano Ravic Shamur só acaba de entender completamente a proposta quando Bárbara lhe enfia no bolso maço de duzentas notas de 100 euros, e berra: - Enfie o dedo no cu dele. Agora! Now! Tout de suite!!!

Aos seguranças, que, em esforço hercúleo, finalmente agarraram Pai Inácio de Iansã, Bárbara ordena que o tragam a canto do salão, mas que não o soltem ainda. Em poucos segundos, tendo Bárbara como comandante-em-chefe, fecha-se círculo, delimitado por cinco espadaúdos homens de preto, ao qual só têm acesso Bárbara Lecuona, Ravic Shamur e um Pai Inácio de Iansã ainda indócil, mas já meio combalido como se a pomba-gira invasora o houvesse esvaído quase completamente.

Bárbara Lecuona então abraça Pai Inácio de Iansã e o põe em posição confortável, e adequada, para receber o golpe que o livrará daquela pomba-gira lasciva. Então ordena finalmente: - Agora, Ravic Shamur! Já!

Enquanto o golpe se desfere, viril, certeiro, letal, Pai Inácio de Iansã  vira os olhos de prazer. Em seguida, torce o pescoço em direção ao garçom tunisiano chamado Ravic Shamur e lhe sussurra em lenta voz de falsete: - Obrigado, meu querido, seu dedo é tudo! Tudo! Tesão!Te-são! Você quer casar comigo, mon amour?

Golpe proferido, Pai Inácio de Iansã murcha, fenece, descamba. Bárbara precisa ampará-lo para que não desabe sobre o carpete. Diz que sente muito frio e implora a Bárbara: - Me leve embora daqui agora. Por favor!

Enquanto isso, todos os Georges-Clooneys e Catherines-Deneuves que escapuliram do lugar entram em automóveis magníficos e partem a toda velocidade. Sem, certamente, terem a menor ideia do que sucedera naquele restaurante insuspeito dos Invalides naquela noite esplêndida de lua cheia em Paris. 

Bárbara Lecuona, algo abalada, mas não a ponto de perder o glamour e a pose, dama do mundo acostumada a lidar com escândalos que é, abraça Olivier Canard afetuosamente. Diz-lhe que a comida estava como sempre superbe e que ligará no dia seguinte para acertar tudo. Distribui a seguir sinceros pardon, pardon, pardon e notas de 100 euros a todos que encontra pelo caminho. Em especial, agradece a participação do garçom Ravic Shamur no desfecho inusitado aquele inusitado episódio. Abraça-o, e lhe diz, carinhosamente: - Merci beaucoup, merci beaucoup!

Ravic Shamur (retirando o maço de notas de euros do bolso): - Deixe-me devolver isso à senhora. Na verdade, acabou sendo enorme prazer fazer o que fiz, enorme prazer!

(Ravic Shamur, o garçom tunisiano, dirige essa última frase especialmente para Pai Inácio de Iansã que, desabado sobre o ombro de Bárbara Lecuona, não o ouve; só pensa na cama macia e nos lençóis de algodão egípcio supermacios e o esperam na Suíte Imperial do Hotel Ritz logo mais).

Bárbara Lecuona pensa em insistir na oferta, mas desiste. Sabe que Pai Inácio de Iansã adorará saber que o garçom tunisiano não cobrara nada para lhe enfiar o dedo salvador no ânus, e isso é o que importa agora, a possibilidade de algo recobrar as forças do amigo querido quando acordar mergulhado em culpas no dia seguinte. Ajudada pelos seguranças, arrasta-o até a Rua de Varenne, àquela altura infestada de paparazzi. Flashes pipocam como se fossem relâmpagos em filme de terror B.

Durval, o porteiro-manobrista emigrado da Martinica, travestido agora de anjo-salvador, surge do nada. Organiza, com competência adquirida em outros enfrentamentos desse tipo, os seguranças para que o casal chegue incólume até o Bentley Continental GTC vermelho-iansã estacionado logo em frente. Não entendera exatamente o que acabara de acontecer, mas isso pouco importava (Desisti há muito tempo  de entender o que acontece com essas celebridades que vêm aqui!).

O que sabe, o que infere, o que conclui é: madame Bárbara Lecuona precisa de ajuda, e é isso que de fato importa (Quem sabe assim ela não perceberá a minha existência e se apaixonará por mim?).

Bárbara e Pai Inácio de Iansã chegam, apesar dos fotógrafos, apesar dos anatoles-vergês, que enfiam câmeras nos mais inusitados lugares para flagrá-los em poses e situações que farão as delícias dos editores dos jornais e sites do dia seguinte, chegam afinal ao carro. Ele é jogado sobre o banco traseiro do automóvel. Ela entra às pressas e, antes de partir a toda velocidade, enfia o maço de 20 mil euros que Ravic Shamur recusara na mão de Durval , e o beija na face: - Merci, Durval, merci!

Os paparazzi, os anatoles-vergês, entram nos respectivos automóveis e disparam atrás do carro dirigido por Bárbara Lecuona. Fotógrafo mais inexperiente escorrega, cai, e é atropelado pelo resto da matilha.

O caribenho Durval, 20 mil euros mais rico, pensa: - J’aime cette femme!








































































































domingo, 6 de maio de 2012

O HOMEM, O MAR, O CRISTO, O CACHORRO DE GESSO E O PORTA-RETRATO DO SOBRINHO-NETO


Advogo o direito de falarmos sozinhos. Nas ruas. Na placidez dos nossos lares – (ok, alguns lares não são tão plácidos assim, mas esta já é outra história). A bordo de automóveis ou bicicletas ou velocípedes. Durante o sono. Sentado na sacrossanta privada. Seja lá onde for.
Há quem ache que falar sozinho é um pé, e mais um bom pedaço da perna, na loucura e na insanidade. Que no espaço entre uma coisa e outra coisa não caberia o naco da unha de um anão. Que seja. O ser humano evidencia achaques psicóticos e psíquicos de tantas e variadas maneiras, e de maneiras tão eloquentes e tão dissolutas, que falar sozinho se torna apenas pequeno grão de poeira nesse deserto do Saara de mentes insanas e torpes nas quais chafurdamos.
Há quem ache, bestamente e tolamente: registrar o fato de algumas pessoas falarem sozinhas pelas ruas depõe contra uma cidade inteira. Como se constatássemos que nessa ou naquela urbe vivem apenas doidos, e doidos muito bem varridos. (E daí? Você tem alguma dúvida, caro leitor, de que a nossa saúde mental é tão frágil quando o hímen de uma donzela?)
Aconteceu em Brasília, cidade na qual morei durante dez anos, cidade que amo de maneira incondicional, e cidade onde quero, sob as árvores frondosas do Parque da Cidade, que as minhas cinzas sejam jogadas quando finalmente escapulir deste corpo que não me pertence.
Escrevi crônica diária no Correio Braziliense – a Crônica da Cidade, na página 2 do jornal – durante dois anos e meio, entre 2000 e 2002. Foram mais de 800 textos. Num deles, flagrei certa mulher bem-vestida e bem-apessoada da Asa Norte, que travava densos e arrebatados diálogos com ela mesma enquanto caminhava. Sempre a encontrava, e a seguia quase em êxtase. Eventualmente captava essas conversas, e nesses pedaços de conversa captados, essa senhora sempre discutia com alguém com raiva, muita raiva, repetia muitos nãos, dizia palavrões, e em momentos de maior raiva, explodia: - Eu quero que você morra! Morra, ouviu bem?
Nunca consegui descobri quem era esse essa mulher e, muito menos, quem era esse alguém que essa mulher queria tanto ver morto, e de maneira tão peremptória. Mesmo assim, publiquei crônica sobre essa mulher e sobre os seres humanos que costumam falar sozinhos, em Brasília, no DF, ou em Katmandu, no Nepal.
No dia seguinte, quando a crônica foi publicada, leitora cheia de ira ligou para mim na redação do jornal, mas havia saído para almoçar. Ela estava tão apoplética que, mesmo sabendo que eu não estava, pediu para falar com outra pessoa da redação, pois queria deixar ´mensagem´ para mim. Um querido-colega-de-redação, que sentava na mesma bancada que eu, atendeu, e a leitora apoplética fez do ouvido do meu querido colega de redação privada de banheiro público.
Disse (o meu colega de redação me contou depois): a) em Brasília não havia pessoas que falavam sozinhas nas ruas; b) eu estava querendo dizer que todos os brasilienses eram malucos; c) o maluco era eu, ´ele deveria ser demitido do jornal e voltar correndo para a terra dele, a Bahia, de onde nunca devia ter saído´.
Quando soube desta ligação telefônica, pensei que fosse a própria mulher – aquela que sempre pontuava seus monólogos interiores em via pública com desabrido clamor para que alguém de suas relações morresse – que houvera ligado. Depois acabei concluindo, sabiamente: a mulher que autodialogava, envolvida em coisas mais importantes e mais viscerais, não teria tempo a perder com a leitura das notícias triviais de nossos jornais.
Esperei que essa mulher indignada com minha crônica sobre homens e mulheres que falavam sozinhos voltasse a ligar. Nunca  ligou. Mas continuei a encontrar gentes que falavam sozinhas, passei a vê-las com mais curiosidade ainda, com mais compaixão ainda, e passei a admirá-las, e vê-las como fonte de inspiração para o meu eterno vício de perscrutar a natureza humana.
Aqui no Rio de Janeiro, onde moro desde abril de 2008, continuo a encontrar pessoas que falam sozinhas. Mas – sinal dos tempos – agora preciso fazer rigorosa triagem. De repente surge guapo rapaz que julgo falar sozinho, mas não. Fala ao celular, por meio de pequeno treco-de-nome-complicado pendurado no pescoço.
Encontro muita gente Rio de Janeiro afora praticando esse mesmo destempero comportamental: falam aos gritos, com esse treco-de-nome-complicado pendurado no pescoço, coisas bastante íntimas  com outras pessoas, às quais nosotros não temos a mínima ideia de quem sejam – ou até mesmo se essas pessoas existam.
(Não usariam esses trecos-com-nomes-complicados pendurados no pescoço como álibis para vociferar seus intensos monólogos interiores para o vazio, sem que alguém os pudesse chamar de loucos?)
A verdade nua e crua: sempre encontro nas minhas caminhadas pelo Rio de Janeiro gentes que realmente falam sozinhas, sem treco-de-nome-complicado algum pendurado no pescoço. Há um homem, por exemplo, velhote cheio de vigor, anda com passadas de gigante, e passa por mim sempre repetindo enigmática frase: - Eles não perdem por esperar. Eles não perdem por esperar... Um dia a casa cai. Um dia a casa cai...
Há outro homem que passa a bordo de bicicleta veloz, sempre às gargalhadas, e dele sempre consigo captar duas ou três frases pela metade. A mais recorrente, e que consigo registrar quase inteiramente, é a seguinte: - Eu estarei presente no enterro de todos vocês... KKKKKKKKK.
Talvez por força dessa convivência, e – por que não? – dessa admiração, tornei-me também homem que eventualmente conversa sozinho nas minhas diuturnas caminhadas pelo Aterro do Flamengo e pela Pista Cláudio Coutinho, na Urca.  
Meus interlocutores imaginários preferidos:
1)    O Cristo Redentor: por força da companhia diária, avisto-o desde que saio de casa em Botafogo, até as margens do Aeroporto Santos Dumont, onde dou meia volta,  e retorno. Converso com ele de igual pra igual (e não somos?). Queixo-me das coisas da vida. Rogo mudanças de rumo na minha trajetória profissional errática. Mas, às vezes, estou tão puto da vida que lhe mando, com todo o respeito, plantar coquinhos, e não lhe dou a mínima atenção, ignoro-o totalmente.
2)    O mar viril que arrebenta nas pedras do Morro da Urca, e quebra de maneira tão espetacular que sempre acho que esse mar poderá oferecer boas respostas para algumas de minhas angústias existenciais mais recorrentes – e esse mar majestático que vejo do alto da Pista Cláudio Coutinho, nunca me falta. Sempre tem (des)palavra que me desorienta, e quase sempre tudo o que procuro é palavra que me desoriente, que me desconcerte, que me faça ligar o botão do foda-se quando necessário – e sempre é – e sempre será.
Em casa, mais confortável, sem os olhos dos passantes curiosos que podem me confundir com algum doido varrido e me enfiar em algum camburão de hospício, meus melhores interlocutores são:
A) Martim Junior: cachorro de gesso comprado em shopping vagabundo de Brasília no começo do século 20 e que tem sido o meu amigo mais fiel nos últimos dez anos. Levo-o aonde vou. Esteja onde estiver, e tenho estado em muitos lugares, está sempre ao meu lado, em eterno e terno diálogo. Não fala (bobagens), nem late – ponto para ele, e algumas horas de vida a mais para mim. Quando lhe coloco alguma candente questão para ser debatida, ouve-me, silenciosamente (o que é uma bênção), e contritamente. Olha-me com olhar especial, que nunca é o mesmo, e sempre sei o que quer me dizer a cada olhar diferentemente especial que me dirige.
B) O porta-retrato do meu sobrinho-neto Davi, de um ano e meio. Prefiro o original – uma das crianças mais especiais que já conheci em minha vida (Deus benza!). Nem sempre tenho o privilégio de vê-lo ao vivo. Ele mora um pouco longe, em Jacarepaguá, e nem sempre nos encontramos. Resultado: pus a fotografia dele ao lado da televisão (desligada), e, sentado em poltrona a poucos metros de distância, conversamos longamente sobre coisas da vida (e da morte).
Não tenho do que me queixar: neste mundo em que todos somos ilhas cercadas de porra-nenhuma por todos os lados, fiz-me ilha especial. Margeiam-me, conversam comigo de homem pra homem, inspiram-me a não endoidecer quando a barra pesa, e a barra pesa sempre – assim é a vida: a) cachorro de gesso chamado Martim Junior; b) o porta-retrato do meu querido e amado sobrinho-neto Davi; c) a imagem do Cristo Redentor; d). o mar arrebatador que bate no Morro da Urca, a meia-légua da janela do meu quarto.
Folgo em lhe dizer duas coisas, caro leitor: 1. Sou homem feliz. 2. Nunca estou só.