domingo, 6 de maio de 2012

O HOMEM, O MAR, O CRISTO, O CACHORRO DE GESSO E O PORTA-RETRATO DO SOBRINHO-NETO


Advogo o direito de falarmos sozinhos. Nas ruas. Na placidez dos nossos lares – (ok, alguns lares não são tão plácidos assim, mas esta já é outra história). A bordo de automóveis ou bicicletas ou velocípedes. Durante o sono. Sentado na sacrossanta privada. Seja lá onde for.
Há quem ache que falar sozinho é um pé, e mais um bom pedaço da perna, na loucura e na insanidade. Que no espaço entre uma coisa e outra coisa não caberia o naco da unha de um anão. Que seja. O ser humano evidencia achaques psicóticos e psíquicos de tantas e variadas maneiras, e de maneiras tão eloquentes e tão dissolutas, que falar sozinho se torna apenas pequeno grão de poeira nesse deserto do Saara de mentes insanas e torpes nas quais chafurdamos.
Há quem ache, bestamente e tolamente: registrar o fato de algumas pessoas falarem sozinhas pelas ruas depõe contra uma cidade inteira. Como se constatássemos que nessa ou naquela urbe vivem apenas doidos, e doidos muito bem varridos. (E daí? Você tem alguma dúvida, caro leitor, de que a nossa saúde mental é tão frágil quando o hímen de uma donzela?)
Aconteceu em Brasília, cidade na qual morei durante dez anos, cidade que amo de maneira incondicional, e cidade onde quero, sob as árvores frondosas do Parque da Cidade, que as minhas cinzas sejam jogadas quando finalmente escapulir deste corpo que não me pertence.
Escrevi crônica diária no Correio Braziliense – a Crônica da Cidade, na página 2 do jornal – durante dois anos e meio, entre 2000 e 2002. Foram mais de 800 textos. Num deles, flagrei certa mulher bem-vestida e bem-apessoada da Asa Norte, que travava densos e arrebatados diálogos com ela mesma enquanto caminhava. Sempre a encontrava, e a seguia quase em êxtase. Eventualmente captava essas conversas, e nesses pedaços de conversa captados, essa senhora sempre discutia com alguém com raiva, muita raiva, repetia muitos nãos, dizia palavrões, e em momentos de maior raiva, explodia: - Eu quero que você morra! Morra, ouviu bem?
Nunca consegui descobri quem era esse essa mulher e, muito menos, quem era esse alguém que essa mulher queria tanto ver morto, e de maneira tão peremptória. Mesmo assim, publiquei crônica sobre essa mulher e sobre os seres humanos que costumam falar sozinhos, em Brasília, no DF, ou em Katmandu, no Nepal.
No dia seguinte, quando a crônica foi publicada, leitora cheia de ira ligou para mim na redação do jornal, mas havia saído para almoçar. Ela estava tão apoplética que, mesmo sabendo que eu não estava, pediu para falar com outra pessoa da redação, pois queria deixar ´mensagem´ para mim. Um querido-colega-de-redação, que sentava na mesma bancada que eu, atendeu, e a leitora apoplética fez do ouvido do meu querido colega de redação privada de banheiro público.
Disse (o meu colega de redação me contou depois): a) em Brasília não havia pessoas que falavam sozinhas nas ruas; b) eu estava querendo dizer que todos os brasilienses eram malucos; c) o maluco era eu, ´ele deveria ser demitido do jornal e voltar correndo para a terra dele, a Bahia, de onde nunca devia ter saído´.
Quando soube desta ligação telefônica, pensei que fosse a própria mulher – aquela que sempre pontuava seus monólogos interiores em via pública com desabrido clamor para que alguém de suas relações morresse – que houvera ligado. Depois acabei concluindo, sabiamente: a mulher que autodialogava, envolvida em coisas mais importantes e mais viscerais, não teria tempo a perder com a leitura das notícias triviais de nossos jornais.
Esperei que essa mulher indignada com minha crônica sobre homens e mulheres que falavam sozinhos voltasse a ligar. Nunca  ligou. Mas continuei a encontrar gentes que falavam sozinhas, passei a vê-las com mais curiosidade ainda, com mais compaixão ainda, e passei a admirá-las, e vê-las como fonte de inspiração para o meu eterno vício de perscrutar a natureza humana.
Aqui no Rio de Janeiro, onde moro desde abril de 2008, continuo a encontrar pessoas que falam sozinhas. Mas – sinal dos tempos – agora preciso fazer rigorosa triagem. De repente surge guapo rapaz que julgo falar sozinho, mas não. Fala ao celular, por meio de pequeno treco-de-nome-complicado pendurado no pescoço.
Encontro muita gente Rio de Janeiro afora praticando esse mesmo destempero comportamental: falam aos gritos, com esse treco-de-nome-complicado pendurado no pescoço, coisas bastante íntimas  com outras pessoas, às quais nosotros não temos a mínima ideia de quem sejam – ou até mesmo se essas pessoas existam.
(Não usariam esses trecos-com-nomes-complicados pendurados no pescoço como álibis para vociferar seus intensos monólogos interiores para o vazio, sem que alguém os pudesse chamar de loucos?)
A verdade nua e crua: sempre encontro nas minhas caminhadas pelo Rio de Janeiro gentes que realmente falam sozinhas, sem treco-de-nome-complicado algum pendurado no pescoço. Há um homem, por exemplo, velhote cheio de vigor, anda com passadas de gigante, e passa por mim sempre repetindo enigmática frase: - Eles não perdem por esperar. Eles não perdem por esperar... Um dia a casa cai. Um dia a casa cai...
Há outro homem que passa a bordo de bicicleta veloz, sempre às gargalhadas, e dele sempre consigo captar duas ou três frases pela metade. A mais recorrente, e que consigo registrar quase inteiramente, é a seguinte: - Eu estarei presente no enterro de todos vocês... KKKKKKKKK.
Talvez por força dessa convivência, e – por que não? – dessa admiração, tornei-me também homem que eventualmente conversa sozinho nas minhas diuturnas caminhadas pelo Aterro do Flamengo e pela Pista Cláudio Coutinho, na Urca.  
Meus interlocutores imaginários preferidos:
1)    O Cristo Redentor: por força da companhia diária, avisto-o desde que saio de casa em Botafogo, até as margens do Aeroporto Santos Dumont, onde dou meia volta,  e retorno. Converso com ele de igual pra igual (e não somos?). Queixo-me das coisas da vida. Rogo mudanças de rumo na minha trajetória profissional errática. Mas, às vezes, estou tão puto da vida que lhe mando, com todo o respeito, plantar coquinhos, e não lhe dou a mínima atenção, ignoro-o totalmente.
2)    O mar viril que arrebenta nas pedras do Morro da Urca, e quebra de maneira tão espetacular que sempre acho que esse mar poderá oferecer boas respostas para algumas de minhas angústias existenciais mais recorrentes – e esse mar majestático que vejo do alto da Pista Cláudio Coutinho, nunca me falta. Sempre tem (des)palavra que me desorienta, e quase sempre tudo o que procuro é palavra que me desoriente, que me desconcerte, que me faça ligar o botão do foda-se quando necessário – e sempre é – e sempre será.
Em casa, mais confortável, sem os olhos dos passantes curiosos que podem me confundir com algum doido varrido e me enfiar em algum camburão de hospício, meus melhores interlocutores são:
A) Martim Junior: cachorro de gesso comprado em shopping vagabundo de Brasília no começo do século 20 e que tem sido o meu amigo mais fiel nos últimos dez anos. Levo-o aonde vou. Esteja onde estiver, e tenho estado em muitos lugares, está sempre ao meu lado, em eterno e terno diálogo. Não fala (bobagens), nem late – ponto para ele, e algumas horas de vida a mais para mim. Quando lhe coloco alguma candente questão para ser debatida, ouve-me, silenciosamente (o que é uma bênção), e contritamente. Olha-me com olhar especial, que nunca é o mesmo, e sempre sei o que quer me dizer a cada olhar diferentemente especial que me dirige.
B) O porta-retrato do meu sobrinho-neto Davi, de um ano e meio. Prefiro o original – uma das crianças mais especiais que já conheci em minha vida (Deus benza!). Nem sempre tenho o privilégio de vê-lo ao vivo. Ele mora um pouco longe, em Jacarepaguá, e nem sempre nos encontramos. Resultado: pus a fotografia dele ao lado da televisão (desligada), e, sentado em poltrona a poucos metros de distância, conversamos longamente sobre coisas da vida (e da morte).
Não tenho do que me queixar: neste mundo em que todos somos ilhas cercadas de porra-nenhuma por todos os lados, fiz-me ilha especial. Margeiam-me, conversam comigo de homem pra homem, inspiram-me a não endoidecer quando a barra pesa, e a barra pesa sempre – assim é a vida: a) cachorro de gesso chamado Martim Junior; b) o porta-retrato do meu querido e amado sobrinho-neto Davi; c) a imagem do Cristo Redentor; d). o mar arrebatador que bate no Morro da Urca, a meia-légua da janela do meu quarto.
Folgo em lhe dizer duas coisas, caro leitor: 1. Sou homem feliz. 2. Nunca estou só.

Nenhum comentário:

Postar um comentário