segunda-feira, 31 de outubro de 2011

AMOR MEU GRANDE AMOR (OU NO METRÔ COM ANGELA RORÔ)

Na ex-capital federal são 17 horas. Pago no guichê seis reais e vinte centavos pela passagem de ida e volta do metrô. Estação Botafogo. Olho em volta. Meu olhar se fixa em senhorinha de cabelos brancos, meio corcunda, que, atabalhoadamente, tenta desvendar os números dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. Detalhe curioso: utiliza-se de lupa para tentar desvendar os números dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. É algo masculina, e se veste com elegância discreta: usa tênis de marca, calça cargo cinza e camisa preta quadriculada. No rosto, zero de maquiagem.
O cabelo grisalho tem corte antiquado, o que a envelhece ainda mais. Finalmente desvenda os números que tentava desvendar, e fala com alguém aos berros. Dirijo-me à plataforma de embarque, e passo rente à velhinha corcunda no exato momento em que se vira em minha direção.
Percebo 1: tem olhos espetacularmente azuis (ou seriam verdes?).
Percebo 2: já ouvira, e ouvira muuuuuuito aquela voz que tonitrua ao celular e que reverbera por um raio de muuuuitos metros.
Percebo 3: aquela senhorinha corcunda é a cantora Angela RoRô – para   quem bato cabeça até hoje – e que cantou grande parte da minha trilha sonora amorosa nos anos 1970/1980.
Penso em abordá-la. Penso em abraçá-la. Penso em lhe dizer o quanto fora importante na minha juventude, o quanto cantara com amigos canções suas em mesas de bar, altas madrugadas, bêbado de lamber sarjeta, apaixonado até o último fio dos cabelos outrora bastos. Mas não sou disso. Sigo em frente. Mas torço para que me siga. E ela me segue. Ao olhar para trás, no fim da escada da plataforma de embarque, vejo: Angela RoRô também desce, sem deixar de falar ao celular.  Desacelero o passo - e torço para que pegue o mesmo vagão de metrô que eu.
Minha torcida funciona: ela estaciona exatamente ao meu lado na plataforma de embarque, e novamente se utiliza da lupa para desvendar os número dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. Então me pergunto: por que diabos Angela RoRô não usa óculos em vez de se utilizar daquela lupa quase obscena que atrai olhares curiosos e sorrisos de escárnio? Elementar, meu caro cronista: vaidade. Talvez tenha concluído, num raciocínio torto e desastrado, que usar óculos a envelheça. Mas o que poderá envelhecer ainda mais esse velhinha precoce que tem apenas 62 anos, a serem completados a 5 de dezembro, e que aparenta ter quase 80?
Lembro então de certo programa ordinário que o canal a cabo Home & Health exibe dezenas de vezes por semana: 10 Anos Mais Jovem. Imagino aquela senhorinha, agora ao meu lado, enjaulada na Cinelândia, com os circunstantes tentando lhe adivinharem a idade (exatamente como acontece no programa ordinário da H & H). Certamente os circunstantes dirão 70; ou 68; ou 75, sabe-se lá. Este cronista, se circunstante fosse  nessa imaginária cena passada na Cinelândia, diria: aquela senhora com dois celulares e uma lupa nas mãos, e agora ao meu lado, teria, sei lá, 75 anos, talvez 70.
Finalmente o trem em direção à Praça General Osório, em Ipanema, chega. Eu e aquela senhora que imagino ter 75 anos, talvez 70, entramos no mesmo vagão. Ficamos a menos de um metro um do outro. Não há lugar para viajarmos sentados. Ficamos de pé. Garota simpática e gentil apieda-se da velhinha que não larga os celulares e a lupa, e lhe oferece o lugar. Ou melhor, tenta. Apesar de a garota simpática e gentil cutucar-lhe o ombro com alguma insistência, ela se finge de surda e de morta, e nem sequer olha para trás.

Percebo 4: ela não quer ser tratada como idosa, e aceitar a oferta daquela jovem simpática e gentil talvez lhe custasse o preço de descobrir que não é mais aquela moçoila atirada que, nos anos 1970/1980, pioneira, assumia-se homossexual publicamente. E mais: corajosamente, transformava o tórrido romance que pugnava com a cantora Zizi Possi em conversas de comadres de todas as idades, de norte a sul, de leste a oeste, do país.
A jovem simpática e gentil dá de ombros, desiste de ser simpática e gentil, e volta a sentar e, a provavelmente ouvir, no aparelhinho-de-som-enfiado-no-ouvido, algum Luan Santana da vida. A velhinha continua a falar ao celular, agora em voz cada vez mais tonitruante. Os passageiros a olham com estranheza. Alguns a encaram fixamente, como se já  tivessem visto aquela senhora antes, em algum lugar da galáxia. Ela percebe que é encarada fixamente e fala ao celular de maneira cada vez mais, digamos, cenográfica – ou finge que fala; para que ninguém a aborde, ou a incomode.
Na estação Siqueira Campos , o vagão se esvazia parcialmente e a senhorinha de resplandecentes olhos verdes (ou seriam azuis?) consegue sentar-se. Mas não para de falar ao celular. Tento escutar-lhe a conversa. Apesar de falar alto, fala rapidamente, aos tropeções, e pouca coisa consigo decifrar. Ouço coisas assim: a) - Não quero mais aquele técnico de som de merda. Ele fodeu com um show meu...  b) - Você está me ouvindo? Você está me ouvindo, porra?´ c) - Afeganistão...  (????) d) - Afeganistão... (????)
Passo o resto da viagem tentando decifrar o que aquela velhinha estaria querendo dizer ao proferir a palavra Afeganistão (ou teria sido Paquistão?) no meio de uma trivial conversa telefônica, e não decifro as outras palavras que diz – ou finge dizer, para não ser incomodada pelos circunstantes. Talvez dissesse palavras sem sentido aparente exatamente para intrigar as pessoas que a rodeavam. Talvez.
Finalmente chegamos à Estação General Osório. Desço antes da velhinha precoce, e, acompanhado de pequena multidão que os vagões acabam de despejar, subo a escada rolante. Olho para trás, tento achar aquela velhinha precoce que atende pelo nome de Angela RoRô. Mas não há nenhuma velhinha precoce que atende pelo nome de Angela Rorô naquelas dezenas de rostos anônimos que contemplo, e que me contemplam.
Angela RoRô sumiu. Evaporou. (Dou de ombros, e sigo o meu caminho).
PS. Dia seguinte assisto ao ótimo Um Conto Chinês. Produção argentina (quando o cinema brasileiro conseguirá produzir filmes assim, simples mas viscerais?) dirigida por Sebastian Borensztein, conta história na qual o imponderável dá o tom. Vaca caída do céu sobre pequeno barco, no qual chinês pede chinesa em casamento, num efeito dominó, muda o curso da história em outro ponto do planeta.
O filme sugere, de maneira delicada e deliciosa: nada acontece por acaso. Na vida (ao contrário do que diz o Eclesiastes) tudo seria zelosamente orquestrado por alguma mão invisível que alguns preferem chamar Deus.
Embora não acredite que alguma lógica norteie essa equação errática que é a vida, adorei o filme – e saio do cinema feliz, querendo crer: as coisas não acontecem conosco de maneira aleatória e disparatada como eu e o Eclesiastes cremos. Não resisto à tentação, e, inspirado pelo leitmotiv do filme de Borensztein, me pergunto: ter encontrado – (por acaso?) – aquela velhinha precoce que atende pelo nome de Angela RoRô, num final da tarde de segunda-feira de outubro, poderá repercutir positivamente, ou negativamente, na minha vida?
Ao escrever este texto, manhã de segunda-feira , 31 de outubro, resolvo testar o acaso: ligo o canal de som MPB da tevê cabo, e desejo, ardentemente, escutar a inesquecível Amor Meu Grande Amor, cantada espetacularmente, com, digamos, o útero, por Angela RoRô. Negativo. Quem ouço é o solar Jorge BenJor cantando O Dia em que o Sol Declarou o Seu Amor Pela Terra.
Nesta des-coincidência, surge, no entanto, outra coincidência: há amor no título dessas duas canções – e desejo, ardentemente, que haja muuuuito amor na minha vida também (e na do caro leitor também) – estamos precisando - amém.

domingo, 23 de outubro de 2011

A VOZ DE UMA SARJETA IMUNDA DA LAPA (OU FRAGMENTOS DE UM DISCURSO DESAMOROSO)

Em manhãs muito chuvosas, não caminho pela Enseada de Botafogo e pelo Aterro do Flamengo. Prefiro enveredar, com o olho aberto, o ouvido atento, e a cabeça no lugar,  por vias mais, digamos, intestinas do Rio de Janeiro. Abro o guarda-chuva comprado a 18 reais nas Lojas Americanas, digo até-logo ao senhor Antonio Menezes, o simpático-porteiro-do-prédio-onde-moro, que tem o mesmo nome de um dos meus tios paternos, e caio na estrada. Destino final: Praça da Cruz Vermelha, no centro da cidade.  

A trilha que percorro é fascinante panaceia de sons, e de paisagens, e de ritmos, e de cheiros, e de texturas: a) pessoas sempre apressadas parecem sair do nada e ao nada voltarem; b) trêmulos anúncios multicores saltam das paredes das casas, dos edifícios, e dos muros imundos; c) automóveis e pedestres travam luta cruenta, geralmente com vítimas; d) aqui, ali e acolá, o desvio ágil de velozes bicicletas na contramão me livra da morte certa, e gulosa; e) trabalhadores empurram carrinhos de mão com traquitanas diversas; f) mulheres gorduchas, algumas grávidas, vendem frutas da estação; g) odores nauseabundos explodem como miasmas fétidos; h) moradores de rua bêbados dormem  ao lado de cachorros esquálidos; i ) garotos famélicos e de olhos vítreos se encostam em quaisquer lugares e se enfiam em camisetas espichadas até os tornozelos; j) lixos são jogados ao léu, ao deus-dará, e parecem, de tão integrados à paisagem, que nasceram ali, feito plantas inesperadas; k) caos; l) caos; m) caos.

O roteiro,  com eventuais variações: Praia de Botafogo. Rua Marquês de Abrantes. Largo do Machado. Rua Senador Vergueiro. Avenida Rui Barbosa. Rua do Catete. Praia do Flamengo. Rua do Russel. Rua da Glória. Rua da Lapa. Largo da Lapa. Arcos da Lapa. Avenida Mem de Sá – onde me deslumbro sempre com lanchonete intitulada Crispim Com Certeza (Crispim é o nome de meu pai, e essa coincidência me acalenta e me faz querer passar ali ontem, hoje & sempre). E, enfim, a Praça da Cruz Vermelha, meio parisiense na intenção, mas absolutamente carioca no gesto. 

Na Avenida Mem de Sá se localiza Instituto Médico Legal desativado (e imagino quantos eventuais ectoplasmas não sobrevoam aquela região, atordoados & perplexos, ou estão presos lá dentro para todo o sempre. Mais coisas me fascinam nessa via: 1) certo Hotel Para Cavalheiros; e imediatamente  imagino que tipos de cavalheiros devam ser os senhores que o frequentam, e que se envolvam em seus lençóis quiçá macios, e sinto vontade de me misturar com aqueles cavalheiros que se envolvem em lençóis quiçá macios;  2) bodegas sórdidas, mas charmosas,  se enchem de homens e de mulheres que se entopem de café, ou de álcool, ou de coxinhas de frango gordurosas; 3) operários esburacam solos com britadeiras frenéticas e derramam litros de suores e aspergem no ar boduns variados;  4) bares e restaurantes tradicionais que viraram moda e são frequentados por gentes vindas da zona sul, tipo o Nova Capela; 5) mulheres circulam, serelepes, com caras amassadas e olhos de ressaca, aparentemente mal-amadas, aparentemente a bordo de vidas sem rumo – e com essas mulheres e identifico, e por essas mulheres sinto intensa compaixão; 6) moradores de rua, sempre em grupos, sempre risonhos e francos, sempre bêbados, flanam para lá e para cá; como se não houvesse amanhã; como se não houvesse tragédia nenhuma na vida que levam; como se fossem cordões carnavalescos hiperrealistas  que não param de dizer impropérios e palavrões de grosso calibre em altos brados.

Nesse frenético pedaço do Rio de Janeiro é impossível andar em linha reta (e, cá pra nós, caro leitor, para que diabos andar em linha reta?): haverá sempre algum excremento humano, ou não, no meio do caminho, do qual você precisará se desviar (ou não); haverá sempre mendigos estirados nas calçadas; haverá, enfim, sempre algo no meio do caminho, seja uma pedra – ou seja lá que diabo seja, talvez o próprio, em pessoa, sabe-se lá.  

Moral desses cinco primeiros parágrafos: caminhar, em manhã chuvosa, do Baixo Botafogo – mais exatamente a partir da Rua General Polidoro, na altura da Rua da Passagem – até à Praça da Cruz Vermelha, e, na sequência, fazer o caminho inverso é prazer inenarrável, quase sexual, para este cronista ávido pelas entranhas de cidades (grandes e pequenas) e de pessoas (grandes e pequenas).

Quarta-feira, 19 de outubro: outra manhã chuvosa abre os braços sobre a Baía da Guanabara, e não vacilo: abro o guarda-chuva comprado a 18 reais nas Lojas Americanas, digo até-logo ao senhor Antonio Menezes, o simpático-porteiro-do-prédio-onde-moro, que tem o mesmo nome de um dos meus tios paternos, e caio na estrada.

(Vou até a Praça da Cruz Vermelho, e volto da Praça da Cruz Vermelha, meio transido, mas sempre tentando captar o mais que puder, tentando enxergar o máximo que puder, tentando digerir o maior número de informações que puder.)

No caminho de volta para casa, no começo da Rua da Lapa, mendigos-camelôs  vendem, em calçada coalhada de poças de lama, mil e uma bugigangas inúteis de segundíssima mão, inclusive livros usadíssimos, e me forçam a fazer pequena parada. Sempre tento descobrir se haverá algum rebotalho de livro meu no meio daquela tralha de obras não identificadas. Em vão. Nunca acho, por exemplo, exemplar de Meu Nome é Gal, romance, digamos, lisérgico, de minha lavra, publicado pela Editora Codecri, no longínquo 1984. Em compensação, está lá no chão enlameado da calçada exemplar encardido de Cuba de Fidel. Autor: Roberto Dávila. Preço: 50 centavos.

Deixo os livros encardidos, e sigo. No poste localizado na esquina da Rua Taylor com a Rua da Lapa, cachorro vira-lata faz xixi, e percebo: faz xixi  sobre caderno espiralado de capa vermelha que se abre e que se esparrama e que se liquefaz em dupla face no chão, ensopado pela chuva, e, agora, pelo xixi do cachorro vira-lata.

O cachorro vira-lata parte. Eu fico. Sinto atração irresistível por aquele caderno espiralado de capa vermelha que jaz, quase liquefeito, em poça de água de chuva + urina canina. Não dá outra: abaixo-me (mendiga imunda me olha com cara de raiva; estou invadindo o ´terreno´ dela), tento folheá-lo, e percebo, comovido: tudo fora escrito à mão, espécie de diário íntimo que alguém escrevera, e fora parar em sarjeta imunda da Lapa. Tudo está manchado, tudo parece ilegível. Quase tudo. Em algumas pouquíssimas páginas, posso ler alguma coisa, e eu quero ler essa alguma coisa.

Salvo, com carinho e delicadeza, o caderno espiralado vermelho do afogamento total - e fatal, e da liquefação total - e fatal. Puxo-o cuidadosamente com as pontas dos dedos e o enfio em saco plástico de supermercado que cato nas cercanias.

Volto apressadamente para casa, coração aos pulos. Algo me diz, ou quero acreditar que diga: aquele caderno poderá ser alguma variação urbana de garrafa-jogada-ao-mar, na qual alguém estaria enviando alguma mensagem a alguém. 

A galope, chego em casa o mais rapidamente possível, embora a chuva se intensifique cada vez mais entre a Lapa e o Largo do Machado, e o meu guarda-chuva comprado a 18 reais, embora tente, não consegue evitar que eu me encharque dos pés à cabeça. Finalmente, sentado na mesa da sala, ainda ensopado, abro o caderno espiralado vermelho, que, quero crer, poderá ser  o diário de algum náufrago urbano que soçobrara em alguma sarjeta imunda da Lapa. E, de fato, é. Mas está completamente ilegível. Melhor: quase totalmente ilegível.

Pacientemente, despetalando cuidadosamente cada página para que não se despedace, descubro: há apenas duas páginas que podem ser lidas com alguma dificuldade, mas lidas. Uma quase inteiramente; a outra, apenas uma ou duas ou três palavras. Passo as duas horas seguintes tentando arrumar aquele quebra-cabeça. Frases interrompidas, palavras devoradas, sílabas estilhaçadas tornam minha missão quase impossível. Mas persisto, persisto, persito, e... bingo: consigo ler as três páginas escritas à mão por algum náufrago urbano que soçobrara em alguma sarjeta imunda da Lapa – e que talvez nunca descubramos o nome.

E o que leio é o seguinte, caro leitor:

Dia 31 (ou 32; mas acabo concluindo, ou querendo concluir: é 31)

(Ilegível) ... nesta noite horrenda que ora vivo, penso que já morri, e que estou em purgatório fedido, queimando minhas culpas terrenas, antes que batalhões de anjos e diabos se decidam para onde... (ilegível) devo ir: para o céu, ou para o inferno, ou para a puta que me pariu. É muito tempo de tormenta. A vida está uma merda há tempo demais. (Ilegível) ... sei lá quando.

Ando perdendo a noção do tempo. Não sei mais o que fazer. Pior: não sei mais o que não fazer. Rezo, rezo muito. É o que me resta. Puxo na memória todas as orações aprendidas na infância. A que achava, e ainda acho, mais bela era, e é, a Salve Rainha, que falava que vivíamos num vale de lágrimas, e realmente vivemos... (ilegível). Mas, porra, não consigo lembrar mais as palavras exatas dessa prece. Rezo por rezar. Sei que ninguém parece disposto a ouvir as minhas preces. Ou seja, rezo como se me masturbasse. Mergulho numa solidão que não consigo mais dar conta. (Ilegível)...  Há alguém aí? Há alguém aí, porra? Não, não precisa responder: sei que não há alguém aí, porra, nem por essa (ilegível) ... Lapa que me cerca, nem pelo Rio de Janeiro que me cerca, e nem por esse mundo de merda inteiro que me cerca.

Então tento reler o Eclesiastes pela enésima vez. Está tudo lá: não há sentido algum, não há mistério algum, não há... (ilegível). A vida é equação indecifrável. O barulho do bar em frente é infernal, e não consigo reler o Eclesiastes pela enésima vez. Vou à a cozinha; fervo água; e faço chá de hortelã com limão (iguais aos que os personagens de Amós Oz tomam), e bebo o chá de hortelã com limão e engulo três comprimidos de ... (ilegível). O barulho é absurdo. A Lapa é absurda. A vida é absurda. De repente, ouço as sirenes de carros de polícia. Vou à janela e vejo muitos carros de polícia e vários bêbados ... (ilegível).

O Rio de Janeiro vive fracassado processo civilizatório. Tudo é aqui é... (Ilegível), ainda em vias de se tornar cidade habitável. A polícia vai embora. A música diminui. Mas o barulho prossegue. Moro num primeiro andar da Rua da Lapa. Uma corja de moradores de rua fala sem parar, aos berros. Filhos da puta. Minha consciência social de outros tempos foi para a casa do caralho – e já foi tarde. Se metralhadora tivesse agora fuzilaria todos esses mendigos,  sem dó nem piedade.

Envio torpedo pra Regina (nessas horas de solidão abissal, é o único nome que ainda me vem à cabeça): Teclo ´Reze por mim´. Tento me desligar: me jogo na cama desarrumada e cheirando a suor e a ... (ilegível). Depois de algum tempo, o telefone fixo toca. Não atendo. Deve ser a Regina, mas não quero falar com a porra da Regina. Repetir-lhe toda a cantilena de sempre me doeria muito. Em seguida, Regina liga pro meu celular. Vejo o nome dela no visor , atendo, mas aviso, cheio de raiva: - Não quero conversar. Apenas reze por mim. E desligo. (Ter a Regina aqui comigo agora me aliviaria um pouco, mas não quero me aliviar um pouco, quero ... (ilegível).

Não sei por quanto tempo mais vou resistir. Não quero mais resistir. A merda é que não consigo me matar; e temo tentar me matar e não conseguir morrer. E ainda ... (ilegível)

Dia 45

Consegui. Fui...  (ilegível).

(Ainda chove lá fora - e me pergunto: 1) Quem terá escrito esse ferido diário? 2) Que fim o autor desse ferido diário terá levado? 3) E Regina, por onde andará Regina?) 




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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

AS VACAS PASSEIAM NA LUA CHEIA (OU CHOVE CHUVA, CHOVE SEM PARAR. OBÁ, OBÁ, OBÁ!)



Terra em transe. Tempo em transe. Tudo em transe. Em centenas de cidades do interior da Bahia,  & de ene Bahias deste Brasil-varonil, & de ene Brasis-varonis deste mundão-velho-sem-porteira, é assim (& assado): presente & passado (ontem & hoje; civilização & barbárie; modernidade & atraso) se fundem, se interpenetram, se beijam de língua, trocam líquidos & secreções diversos. Dessa pororoca de realidades e paisagens aparentemente  paradoxais resulta transição fascinante, deslumbrante, diante da qual me contrito, bato cabeça, atesto & dou fé & que faço questão de registrar para uma posteridade em que vacas-de-rua-que-passeiam-na-lua-cheia e fanfarras-que-nos-fazem-chorar-de-saudades terão desaparecido para todo o sempre.

Sete da noite de lua cheia de  outubro: duas vacas bem nutridas e úberes passeiam calmamente sobre as calçadas de paralelepípedos de ruas dessa pequena cidade do interior da Bahia. Não parecem intimidadas. Ao contrário, desfilam como se voltassem das compras. Ou fossem visitar amiga doente. Ou, ainda, simplesmente passeassem por passear. Não se constrangem, nem se assustam, com os automóveis ao redor; ou com as pessoas com as quais cruzam aqui, ali e alhures. Em síntese: estão na delas.

Caminham calmamente. Dobram a esquina sem pressa. Descem, decididas, certa rua sem calçamento que provavelmente não as levará a lugar nenhum (Ou levará?). Por um átimo penso em segui-las, em flagrar qual será o destino dessas duas criaturas surgidas do nada no meio da noite do sertão da Bahia. Mas acabo desistindo da ideia de segui-las (e depois me arrependi por não tâ-las seguido) - e sigo o meu rumo.

Vou até a pracinha-com-coreto (uma das pracinhas-com-coreto mais belas que este cronista já viu) e descubro barraquinhas coloridas que vendem acarajé & abará. Louco-por-abará&acarajé assumido, e sem culpa, compro um-de-cada na mão de garota-danada-de-bonita que veste camiseta estampada com a efígie de Mariah Carey. Sento para devorá-los (e para tomar cerveja estupidamente gelada) em mesa de bar da pracinha-com-coreto, e, também, para pensar na vida (e na morte da bezerra). Mas não consigo pensar na vida (e muito menos na morte da bezerra): aquelas duas vaquinhas sem destino que acabara de ver não saem de minha cabeça e certa saudade delas me invade, e penso: -  Porra, por que diabos não as segui?.

Oito da noite de lua cheia de outubro: percebo certo alvoroço em rua próxima à bucólica praça e entro em certo clube social de instalações algo precárias. Lá dentro flagro centenas de jovens (e nem tão jovens assim) que se inscrevem para participar de certo ´evento cultural´ (conforme me informou guapa rapariga). São diligentemente atendidos por outros jovens, a bordo de lepitopes de última geração, (conectados com o resto da galáxia pelo sistema wireless. (Em prova cabal de que cultura & arte & outras mumunhas mais brotam dos grotões mais ermos, no off do off, no cu do cu, e não apenas no regurgitar frenético das megalópoles).

Vacas-de-rua-que-passeiam-na-lua-cheia e lepitopes-up-to-date na mesma cena, no mesmo quadro, no mesmo diapasão: pretendo pensar mais sobre essa superposição de aparentes contrastes, sobre esses universos paralelos que se unem no mesmo quadro, mas as duas vacas-de-rua-que-passeiam-na-lua-cheia continuam caminhando na minha imaginação (Seriam namoradas? Estariam indo para alguma balada noturna? Chamar-se-iam Elza e Dagmar?)).

Continuo a mergulhar em ruas  ermas.  Até que o estonteante som de metais e de batuques, vindos de algum lugar não identificado, expulsa as inesperadas vacas-de rua-que-passeavam-na-lua-cheia & qualquer outra ruminação intelectual). Fascinado, parto em busca do lugar de onde vem esse som.

Enfim, arfante, ao dobrar esquina, avisto bando de rapazes e moças ainda inseguros e algo desafinados, mas, mesmo assim, deslumbrantes e garbosos. Tocam temas musicais candentes do nosso cancioneiro popular. Coço os olhos, quase não acredito no que vejo e, basicamente, no que ouço, mas sou obrigado a concluir  (e a vibrar com essa conclusão): trata-se evidentemente de uma fanfarra – fan-far-ra, caro e incréu leitor (e fanfarras são meu objeto de culto desde garoto).

Este cronista e alguns poucos nativos nos encostamos em muro que margeia a rua para ver a fanfarra passar. Olho para o lado e vejo belo jovem negro, com saxofone dourado nas mãos – e puxo conversa. Diz se chamar Eduardo. Conta: a fanfarra ainda não tinha nome definido, e começara a ser formada havia cerca de vinte dias.
Eu: - Vinte dias? Só?
Ele: - Só. A gente acabou de se formar, mas a gente já vai participar de um campeonato de fanfarra que começa domingo numa cidade perto daqui.

Eduardo se despede, se agrega ao resto da fanfarra e, com o resto da fanfarra, se perde dentro da noite de lua cheia.

Sigo para o hotel de Dona Tereza. Cidade completamente erma,  cães vadios se esfregam lascivamente em cantos de becos escuros; inebriantes cheiros de coentro emanam não sei de que buracos. Mas as vacas-de-rua-que-passeavam-na-lua-cheia, os lepitopes-de-última-geração-no-meio-do-nada, a fanfarra-recém-nascida ainda fervilham no meu cérebro.

(E, de volta ao mundo urbano, nesta manhã carioca chuvosa de segunda-feira, não posso deixar de me perguntar: por onde andarão essas vacas-que-passeavam-na-lua-cheia, e que talvez  namorassem, e que talvez seguissem para alguma balada noturna, e que talvez se chamassem Elza e Dagmar?) 








segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO PARAGUAÇU (OU MINHA PEQUENA CACHOEIRA)

Eu & os rios. Os rios & eu. Nasci às margens de um rio – o Jiquiriçá. Passei a infância ao lado de outro rio – o das Contas (e hoje moro em outro Rio, o de Janeiro-fevereiro-e-março). Não podia ser diferente: venero o Sena; o Amazonas; o São Francisco; o Nilo; e todos-os-dessa-laia que nos trazem alentos balsâmicos em momentos nos quais a barra pesa – e a barra sempre pesa, sabemos. Por causa desse arrebatamento que rios me provocam, é sempre retumbante emoção rever rios que não via havia tempos. Assim sucedeu quando, lá do alto, avistei o majestático rio Paraguaçu: vigoroso, retumbante, de fazer mocetona-virgem-incruada mergulhar em bem-vindas vertigens de êxtase.

Verdade que, mesmo não sendo mocetona-virgem-incruada, quase tive bem-vinda vertigem de êxtase ao me aproximar desse rio majestático que separa Cachoeira de São Felix. Mas o problema não é meu. O problema é do Paraguaçu, um pitéu, um pedaço-de-mau-caminho. Se rios fossem homens (e, na calada da noite, talvez sejam; se não, fica, a quem de direito, a sugestão), o Paraguaçu seria algo similar a Javier Bardem & a guapos rapagões do mesmo naipe. Se rios fossem mulheres (e, na calada da noite, talvez sejam; se não, fica, a quem de direito, a sugestão), o Paraguaçu seria algo similar a Penélope Cruz & a guapas raparigas da mesma estirpe.

À beira de rio assim, meio Javier Bardem, meio Penélope Cruz, cidades nem precisariam ser tão belas – mas Cachoeira o é – e eu quase já havia esquecido disso – e eu não visitava essa princesinha do recôncavo há décadas. (Com casario de notório valor arquitetônico, Cachoeira é tipo aquele homem e mulher, de beleza rara, que não se jactam de possuírem beleza rara – a idéia é essa, e essa idéia é boa: não precisar provar nada para ninguém).

Enquanto cidades tão belas quanto (ou apenas um tiquinho menos), tipo Tiradentes (MG), Goiás (GO) e Paraty (RJ), das quais também sou amante amantíssimo, se tornam vez mais conhecidas Brasil e mundo afora, Cachoeira corre devagar. Sem pressa alguma de chegar, se é que quer chegar a algum lugar. (A propósito: há poucos hotéis na cidade com mínimas condições de conforto; e os restaurantes são poucos e simplórios – mas nem por isso menos notórios).
A melhor carne de sol que este-cronista-cada-vez-menos-carnívoro já comeu nos últimos tempos foi servida em pé-sujo cachoeirense fundado há cerca de oitenta anos: o PQTRLV – que deve ser lido à moda baiana, Pê-Quê-Tê-Rê-Lê-Vê. Em bom português, essa sigla significaria Pedro Quer Ter Renda, Lucro e Vantagem. (Esse Pedro – segundo o atual dono desse boteco, o simpático Zé Miúdo, que comprou o ponto há 22 anos – foi o homem bem-humorado que abriu o restaurante
(´lá pelos anos trinta´) , e deu supercerto nessa cidade superfesteira: - A gente já gosta de uma folia por aqui!)

Como se vê, Cachoeira é cidade assumidamente festeira. O sargento Orlando, dublê de policial militar e maestro da filarmônica Lyra Ceciliana, fundada em 1870, atesta, e dá fé: por causa desse espírito festeiro da cidade, a filarmônica nunca parou (´nem parará´) de tocar. Ele diz, com orgulho incontido: - Não tem semana que a gente não toque em algum festejo. Filarmônica por aqui é artigo de primeiríssima necessidade.
(Há outra filarmônica cachoeirense que também não para de tocar desde 1877: a Minerva Cachoeirana).

São Félix, ligada a Cachoeira por ponte secular que chacoalha perigosamente a cada pisada que damos nas tábuas irregulares e esburacadas que a compõem, é irmã gêmea de Cachoeira. É, no entanto, mais macambúzia, menos feérica (embora também tenha uma filarmônica desde 1916: a Sociedade Filarmônica União Sanfelixista) – e, talvez, há controvérsias, menos bela e mais malcuidada.
Enquanto a maioria dos casarões (embora ainda haja alguns em condições de abandono, toscamente ancorados) de Cachoeira seja esplendorosa, os de São Félix desmoronam ao sol e à chuva, inclementes, do recôncavo. (Única e honrosa exceção: o prédio da fábrica de charutos Dannemann: flor de preservação arquitetônica, que hoje também funciona como museu e centro cultural).
Após passear pelas ruas ermas de São Félix, volto a Cachoeira, e volto perigosamente: entre olhar para onde piso nessa ponte naïf e frágil, como deve ser (afinal de contas qualquer vacilo poderá ser fatal e nos fazer afundar em buraco inesperado), e apreciar o Paraguaçu-JavierBardem-PenelopeCruz que corre gloriosamente lá embaixo, eu não penso duas vezes. Prefiro, claro, (e preferirei sempre), apreciar o rio Paraguaçu-Javier-Bardem-Penélope-Cruz, cada vez mais arrebatador, cada vez mais encantador, que ronca lá embaixo.

Por volta das oito da noite, para digerir o acarajé devorado após a travessia da ponte, volto a circular pela Rua da Feira, que já tentaram chamar, sem êxito, de Antonio Carlos Magalhães e de J.J. Seabra. Logo no começo da caminhada ouço espetacular e familiar som de metais: é mais um ensaio noturno da Filarmônica Lyra Ceciliana, eternamente a se preparar para festas por vir, e em Cachoeira novas festas hão sempre de pipocar por aí.

Com esses sonantes acordes na cabeça, sonho encontrar outras filarmônicas pelo caminho. Mas encontro apenas igrejas evangélicas. Primeira parada: Igreja Pentecostal Primitiva Ato dos Apóstolos. Segunda parada: Igreja Universal do Reino de Deus. Terceira Parada: Igreja Assembléia de Deus. Quarta parada: Igreja Pentecostal Deus é Amor. Detalhe revelador: estão todas lotadas.
Por um momento aquele transe de fé carregado de culpa no meio da noite me acabrunha. Depois dou de ombros, e constato, com algum bom-humor: na festeira Cachoeira, fervilha, paralelamente, uma, digamos, Broadway-de-igrejas-evangélicas. Na seqüência, em conclusão lógica & dedutiva, percebo também: na festeira e dionisíaca Cachoeira muitos são os que sofrem e os que buscam parar de sofrer por meio de ritos religiosos que dizem ser o melhor que há (não por acaso, imenso outdoor na porta da Igreja Universal do Reino de Deus esbraveja: Pare de sofrer!).
Ou seja: sofre-se em qualquer lugar, quer-se parar de sofrer em qualquer lugar, até naquela aparentemente festeira e dionisíaca Cachoeira.
Por um momento penso em entrar num daqueles templos evangélicos e reforçar o coro dos sofredores que imploram a clemência de Deus (ou a quem de direito; há alguém aí?). Mas lembro do Paraguaçu/JavierBardem/PenelopeCruz, e me deixo afagar & afogar pelos braços generosos dessas águas profundas que me pariram. 

PS1: Se eu fosse uma cidade, seria Cachoeira, e adoraria que o retumbante rio Paraguaçu circulasse por minhas veias e artérias.

PS2:  Esta cidade tão cara a este cronista sedia até 16 de outubro a primeira edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica). Longa vida à Flica!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A LEI DA SELVA QUE NOS FAZ CAGAR E ANDAR PARA O PRÓXIMO (OU SALVE-SE QUEM PUDER)

Vivemos era paradoxal, caro leitor: cada vez mais sabemos detalhes da vida dos outros – (o que gostam, o que odeiam, o que curtem, com quem fodem, as opiniões,  falsas ou verdadeiras, pouco importa,  sobre tudo e todos, via Facebook e outras mumunhas mais do nosso virtualíssimo mundo) – e cada vez menos nos envolvemos, de fato, e em tempo real, com a vida dos outros.
Essa falsa intimidade virtual mascara o desinteresse que a vida de cada um de nós desperta nos outros, e, por tabela, o desinteresse que a vida dos outros desperta em cada um de nós. Viramos legião de criaturas narcísicas que cagam e andam para aquilo que não é espelho.
Essa atitude não é algo que defina faixas etárias: garotos recém-entrados na casa dos 20 anos e órfãos de Woodstock que já passaram dos 60 incorporaram com o mesmo nonchalance esse modus operandi às nossas rotinas  diárias. O cronista que ora lhe escreve se empenha fervorosamente em não cagar e andar para aquilo que não é espelho. Luta inglória. Quase sempre em vão. Em 2006, por exemplo, me flagrei  (mea culpa mea maxima culpa) entristecido a abatido ao saber, em meio a solar manhã de sábado, da  morte súbita do humorista Bussunda.
No meio desse transe, certo amigo, da mesma faixa etária, ligou. Ao lhe revelar o motivo da minha tristeza-quase-angústia, ele disparou, sem choro nem vela: - O que é que você tem a ver com a morte do Bussunda. Bussunda morto vai mudar a sua vida em quê, cara? Sai dessa!
Desde então, sempre penso duas vezes antes de me entristecer e de me angustiar diante das mortes súbitas de outrem, e das dores súbitas de outrem. Mas devo admitir: o meu amigo fracassou nessa tentativa de me tornar indiferente diante do que não é espelho. É mais forte do que eu. Fazer o quê? Nasci assim. Vou morrer assim?
Nesta semana dois fatos me trouxeram de volta essa tristeza-quase-angústia diante das dores alheias:
1.      Em texto publicado no blog do jornalista Luiz Caversan, no UOL, soube da situação de extrema penúria em que vive atualmente a atriz Ruth Escobar, um dos nomes mais emblemáticos do teatro brasileiro do século XX. Aos 75 anos, abatida pelo Mal de Parkinson, a outrora fulgurante dama dos palcos nacionais, vive inferno-na-terra.
Em 1977, ainda de cueiros, assisti, extasiado, à montagem Torre de Babel, dirigido pelo franco-argentino Victor Garcia, protagonizada por Ruth Escobar no teatro homônimo – e que, à época, fervilhava com a fulgurância do crème de la crème da inteligência paulistana. Além disso, entrevistei-a nos anos 1980 para a Folha da Tarde (SP). A partir dessa entrevista, escrevi texto assumidamente queer, alcunhando-a de ´estrela calva´ (trocadilho  infame com ´estrela Dalva´), por conta da calvície que sempre procurou esconder com indefectível peruca preta.  
Ontem no Facebook comentou-se fartamente sobre essa débâcle escobariana,  e falava-se  sobre certa fotografia que registrava a atual penúria física e mental na qual a atriz vive, ou melhor, morre lentamente. Poupei-me. Abstive-me de acessar esse flagrante do ocaso dessa grande dama do teatro brasileiro. Mesmo assim, passei grande parte de minha caminhada matinal de ontem no Aterro do Flamengo com o pensamento voltado para essa ocorrência não exatamente alentadora.
2.      Também ontem, no começo da tarde, acessando mensagens no UOL, o título de certo e-mail me chamou de imediato a atenção: Bad News.  Pensei em deletá-la sem lê-la (já não bastam as milhares de bedinius que nos rodeiam e nos sangram as jugulares diuturnamente?). Mas li o nome do remetente (amigo queridíssimo, e a quem amo muitíssimo) – e fui em frente.
O amigo queridíssimo enviava mensagem aos mais próximos na qual comunicava: acabara de saber por meio de exames médicos recém-feitos que estava, no viço e no auge do seu poder intelectual e mental e sexual, apresentando os primeiros sinais do Mal de Parkinson, doença não exatamente simpática (se é que haverá alguma doença simpática).
Mas, bravo guerreiro, dono de alma altaneira, não se deixava vitimizar Ao final do bilhete, brincava: ´Estou désolé (para ser bem fresco e usar a palavra em francês porque é mais chique), mas não a ponto de me jogar do oitavo andar. Tentarei seguir trabalhando dentro das limitações. Lamento apenas não mais poder tomar vinho. A vida é bem injusta. Mas o sexo está liberado (até onde for possível). Bem, a vida não é tão injusta assim´.
Senti vontade imensa de ir ao encontro de meu amigo, de ampará-lo, de lhe dar colo, de beijá-lo, e de lhe dizer que tudo iria acabar bem como nas comédias românticas de antanho protagonizadas por Rock Hudson e Doris Day. Mas não. Disparei-lhe apenas amoroso, sincero, e encorajador bilhete.
(Merda: Acho que estou vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar).