domingo, 26 de fevereiro de 2012

HAMID, O QUASE AMIGO AFEGÃO (OU PARE O MUNDO QUE EU QUERO REBOBINAR TUDO)

Quando aquelas visitas chatas típicas de tardes quentes de domingo adentravam a minha casa, em meados dos anos 1960, em Jequié-Bahia, acionava meu truque básico. Por que eu teria de suportar aquele amigo chato de meu pai, ou aquele primo de mau hálito um pouco mais velho que tinha a mórbida curiosidade de saber se eu já tinha ´perdido o cabresto´ (eufemismo de época, que significava perder a virgindade), ou aquela tia com voz de gralha que teimava em apertar as minhas bochechas, e exclamar: - Fofo. Este é o menino mais fofo do mundo!
(Fofo, o caralho!, pensava; mas infelizmente não dizia)
Acionava, repito, meu truque básico: tentava cumprimentar cordialmente a todos; o que nem sempre conseguia; a simples presença desses outros já me irritava espetacularmente, e, pé ante pé, escondido de minha mãe que achava que fugir de visitas era falta de educação, seguia em direção ao meu quarto, deitava na minha cama, e fingia dormir.
Agi assim durante toda a minha infância. Minha mãe querida e amada certamente já havia percebido o meu truque, e não me apoquentava. Mas, vez em quando, talvez para testar a minha capacidade de concentração – afinal fingir dormir é árduo exercício – ela trazia alguns dos convidados para o meu quarto,  e obrigava-me a ouvir a conversa ao meu lado sem sequer piscar, e adotando um grau de rigidez que não poderia ser nunca cadavérica, pois ninguém dorme em rígida posição cadavérica.
Criei então truques complementares. Em movimentos diferentes, mexia parte do braço ou da perna, ou coçava a barriga, ou roncava discretamente.
Um dia quase me traí, e quase abandonei o personagem do menino que dormia no meio da tarde de domingo. Aquela tia com voz de gralha que teimava em apertar as minhas bochechas comentou com minha mãe, ao sair do meu quarto: - Este menino dorme muito durante o dia. Se continuar dormindo tanto assim vai ficar gordo feito uma baleia!
Ao ouvir tal vaticínio, dividi-me em duas vontades: 1. Parar de fingir que dormia e pular na jugular daquela bruaca aos gritos de: - Baleia é a senhora, com essa bunda maior que a geladeira Gelomatic que a gente tem na cozinha aqui de casa. 2. Manter o personagem, mergulhar de maneira ainda mais profunda nesse sono mentiroso, e fingir que não ouvira nada.
Claro, adotei o comportamento número 2, e mantive esse hábito, fingir que dormia diante de pessoas e situações inconvenientes pelo resto de minha vida.
Fingia dormir, entre outras muitas situações:
a)    Diante do amigo chato que teimava em, diante do aparelho de tevê preto e branco que exibia uma ainda virginal Regina Duarte trajando um comportadíssimo maiô e fazendo propaganda do creme dental Kolynos, me fazer a seguinte indagação: - Você comia, não comia, essa gostosona?
b)    Em visitas que fazíamos a amigos também em tardes de domingo, o momento do sono profundo sobre o sofá era iniciado quando a dona da casa pedia licença, ia até a cozinha, punha café na água quente (e já nos primeiros cheiros da bebida chegados até à sala, eu desabava sobre a cadeira do sofá, e fingia dormir pesadamente). Quando criança, eu odiava aquelas pequenas xícaras de café preto extremamente açucaradas a que éramos obrigados a sorver, mesmo as crianças, sob pena de sermos chamados de mal educados.
c)     Em noites de meio de semana, geralmente às quartas-feiras, nas quais o meu amado e querido irmão, acompanhado de primos ´pegadores´ sempre fazia visitas ao puteiro local, e, bem-intencionadamente, sempre sugeriam me levar para que eu me ´tornasse homem´, enrabando uma quenga qualquer. O que me obrigou a, durante certo tempo, sempre às quartas-feiras me recolher ao meu quarto e fingir que dormia, por pura precaução, já pelas sete da noite.
O hábito fez o monge – e foi um santo hábito. Salvou-me de situações de tédio mortal em diferentes momentos de minha vida adulta.
Em conversas nas quais o interlocutor teimava em contar os sonhos que teve na noite anterior, o-de-io que me contem sonhos, geralmente em mesas de bar e já depois de algumas boas doses, deixava cair a cabeça sobre a mesa, e fingia dormir profundamente.
Em corridas de táxis nas quais o taxista insistia em papos-furados nos quais contabilizava as mulheres que comeu a bordo do automóvel que dirigia, ou, geralmente em São Paulo, faziam discursos nos quais punham Paulo Maluf como o maior homem de todos os tempos, tombava o meu pescoço para trás, e fingia dormir pesadamente.
Em voos internacionais, nos quais somos eventualmente premiados,  por 12, 13, 14  horas, com companheiros de bordo que seríamos capazes de esfaqueá-lo para que parem de conversar bobagens. Há quem creia ingenuamente que a leitura de um livro baste. Não eu.
Até tentei certa vez num vôo relativamente curto entre Nova York e Paris (seis horas). Tentei começar a ler um livro de Philip Roth, mas não consegui passar do primeiro parágrafo.
Ao meu lado havia se instalado um homem cor de tamarindo, forte compleição física, e bastos bigodes. Cheirava a álcool e a fumo e almíscar, e comia, numa vasilha de barro, comida não identificada pelos meus padrões ocidentais, mas, noblesse oblige, tinha cheiro tentador.
Entre o primeiro parágrafo do livro de Roth e o cheiro tentador da comida do homem ao lado, capitulei: olhei para o homem ao lado e para a iguaria que devorava. Foi o que bastou. Num inglês britânico perfeito, soltou o verbo: era afegão; estudava relações internacionais em Paris e dava aulas mensais sobre a cultura árabe em Nova York e Londres. (Tentei voltar à leitura do romance de Roth, mas não consegui).
O afegão, que se dizia chamar Hamid, comia e falava com fúria titânica, e eventualmente farelos dos cuscuzes que mastigava disparavam como bólidos, e manchavam a página inicial do romance de Roth, e me atingiam em cheio em algumas partes do rosto.
Hamid perguntou meu nome. Pensei em dizer qualquer um. Alberico, por exemplo. Mas falei a verdade: - Rogério.
Ao iniciar o serviço de bordo (estávamos num vôo da Air France), uma das aeromoças parou ao nosso lado para nos servir. Hamid vociferou: - Veneno. Essa comida é venenosa, Rogero. Por isso trago minha comida pronta de casa.
Ao aceitar com bom grado a refeição oferecida pela aeromoça, estava morrendo de fome, Hamid urrou: - Não coma isso, Rogero. Isso é veneno. Você vai morrer envenenado!
Hamid começou a então a assumir um tom de passionalidade que me desconcertou: - Acabei de conhecê-lo. Mas você parece um homem bom, e, além disso, tem muita semelhança com um grande amigo que mora em Cabul. Por isso gosto de você, e por isso não quero que coma essa comida que poderá matá-lo. Se você quiser, posso dividir a minha comida com você!
Nada contra afegãos. Nada contra comida afegã. Mas era, e sou pessoa basicamente tímida (os sonos fingidos da infância demonstravam essa minha timidez quase paralisante), e passar seis horas conversando sem parar com Hamid, por mais santo homem que ele pudesse ser, me pareceu mais doloroso que assistir a cena dos leprosos do filme Ben-Hur.
Foi então que resolvi usar o velho truque da infância. Fechei o romance de Roth, enfiei na mochila, devolvi intacta a comida servida a bordo, e, não querendo ser grosseiro com Hamid, justifiquei-me: - Tive um dia complicado em Nova York, e quase não dormi à noite passada. Vou tentar dormir um pouco.
Virei-me então de costas para Hamid. Comecei a tentar fingir de dormir como nas tardes de domingos quentes e entediantes de Jequié na minha infância.
Quando tentava incorporar o homem que fingia dormir, a voz tonitruante de Hamid soou no meu cangote: - Por favor, meu amigo, não durma. Dormir a bordo de aviões é um perigo. Caso aconteça um acidente, os que estão dormindo serão os primeiros a morrer.
Agradeci o alerta, mas menti que o sono era mais forte do que eu, e precisava dormir (melhor, fingir de dormir). E cheguei a respirar aliviado, como apenas fingiria dormir, caso algum acidente acontecesse eu não seria um dos primeiros a morrer.   
Virei novamente as costas para Hamid, que, não voltou a insistir para que eu não dormisse, mas bradou: - Vou rezar por você, vou rezar para que se o avião cair com você dormindo você não seja dos primeiros a morrer.
Não era exatamente um estímulo para um sono reparador. Nem mesmo para um sono fingidor. Mas me concentrei ao máximo, e fingi um sono profundo até que o avião pousou no Aeroporto Charles De Gaulle.
Fingi um sono profundo tão espetacularmente  bem que nem abri os olhos quando uma turbulência dos diabos chacoalhou o avião em meio ao Oceano Atlântico, e quando ouvi Hamid rezando em voz alta num idioma que não entendia e segurava minha mão fortemente, como quisesse de fato evitar que eu fosse o primeiro a morrer caso o avião caísse no mar.
Ao aterrissarmos em Paris, bicho do mato que sou, tentei escapar rapidíssimo das garras de Hamid. Se no avião ele me demonstrara tanto apego, o que poderia acontecer na chegada à cidade?
No mínimo, quereria dividir um táxi comigo. No máximo, me convidaria para um chá numa casa de subúrbio onde viveria com mulher e muitos filhos,  e eu talvez precisasse utilizar o velho truque do sono fingido.
Apenas com pequena mochila como bagagem de mão, pedi licenças seguidas aos passageiros que levantavam dos seus assentos, em assumida tentativa de escapar das garras de Hamid.
Enfim, livre de Hamid, fui um dos primeiros a desembarcar.
Enfim só.
De repente, uma forte mão masculina pesa sobre o meu ombro esquerdo, e ouço: - Você é um homem bom. Hamid nunca se engana, você é um homem bom. Hamid quer ser amigo de Rogero. Onde você vai ficar aqui em Paris?
Gelei. Contatos humanos inesperados me imobilizam, e me petrificam.
Menti: - Duas amigas estão me esperando. Vou ficar na casa delas.
(Pura e deslavada mentira: minha intenção era flanar por Paris, sem rumo, completamente sozinho, como sempre fazia. Único programa definido: ler o romance de Roth bebendo vinho num bar na beira do Sena. E só)
Hamid me deu um forte abraço, enfiou um cartão na minha mão, que continha um número de telefone, e urrou como um leão cor de tamarindo: - Rogero, tenho certeza de que poderemos ser os melhores amigos do mundo!
Hamid sumiu na multidão do Charles de Gaulle.
Eu, sozinho, sem ninguém a me esperar, peguei um táxi,  e pedi que me levasse até o Hotel Flaubert, na Rue Renequin, 19, perto do Arco do Triunfo.
Flanei dez dias por Paris.
Li e adorei A Pastoral Americana, de Philip Roth.
E, numa noite em que cheguei bêbado no Hotel Flaubert, pensei em ligar para Hamid.
Mas um sono avassalador, não daqueles fingidos que me salvaram (ou que, talvez, tenham impedido que minha vida tomasse outros rumos) em tantos momentos, me arrebatou, e nem sequer sonhei com Hamid.
Dia seguinte, voltei a São Paulo, onde então morava, mas antes piquei em pedacinhos o cartão que Hamid me havia dado no aeroporto e joguei nas águas do Rio Sena,
Epílogo: duas décadas depois, em noite quente de domingo de 27 de fevereiro de 2012, ao sentar em frente a este computador para escrever crônica sobre assunto completamente diferente, Hamid apareceu na minha frente de maneira tão real e tão indelével que tive que mudar o rumo da prosa.
Também me obriguei a perguntar: por onde andará o afegão Hamid?
Ato contínuo: pensei, mas não transformei a intenção em gesto, em chegar até à janela e gritar e gritar e gritar: – Hamid! Hamid! Hamid!




    

domingo, 19 de fevereiro de 2012

A MORTE E A MORTE DO FILHO DE GANDHY DESGARRADO (OU O VACILO DE SANTA BÁRBARA)


Parte 2
Forma-se então pequena clareira no meio daquela selva de gente que, a essa altura do meio da madrugada de quarta-feira de cinzas, ainda saracoteia altaneira como se a farra estivesse apenas começando. O pipoqueiro e a baiana sonolenta continuam suas rotineiras azáfamas, como se nada tivessem visto, como se nada tivesse acontecido ou estivesse por acontecer em seguida: eram apenas paisagens – e paisagens  inúteis – absolutamente inúteis.
No proscênio dessa pequena clareira surgida no meio dessa selva de gentes que ainda saracoteiam serelepes, estão agora em cena apenas dois  solitários personagens.
De um lado resplandece Matilde das Dores. Vigorosa e altiva, ronda o agora objeto do seu mais absoluto desprezo como o toureiro ronda o touro à beira de lhe dar a estocada fatal. De outro, fera ferida, pisada, amolecida, e entorpecida pelo exaustivo e dilacerante dia-noite, apaga-se, fenece, soçobra o agora destroçado Jorge dos Prazeres.
Ele quer sumir. Desaparecer da face da terra. Configura-se, e percebe-se, mais lúcido do que nunca. Como se aquela súbita tempestade de azeite-de-dendê fervente o acordasse do transe, o desintoxicasse da overdose de álcool, ácido, maconha e éter na qual surfou durante as últimas horas, e o fizesse perceber: algo se desconjuntara nele, algo se partira nele, e o fizera desconfiar, com inteira razão, que tudo estava irremediavelmente perdido.
Ela quer fulgurar. Projetar-se sobre o vazio e sobre o êxtase que a evacuação do mar de lama e de lava vulcânica quente que se materializara havia pouco na frente dela estava lhe proporcionando. Como se, redentora, pudesse impedir que traições dessa natureza não mais existissem; que traidores, como o marido, soçobrassem sob o peso de mulheres corajosas e vingativas como a mulher que a habita nesse  momento, mergulhada na mais funda vontade de machucar, de ferir, de pisar, de denegrir, de destruir.
Jorge dos Prazeres, mãos e braços imóveis ainda esticados para cima, como se petrificados e congelados, encosta-se, entorpecido e anestesiado, na porta central de ferro dobrável do Cine Tamoio. O turbante desconjuntado ainda tenta lhe emprestar alguma dignidade, mas o pau murcho, despencado para fora da cueca, lhe impossibilita qualquer possibilidade de redenção.
O traje de Filho Gandhy, antes imaculadamente branco e agora mais próximo do marrom e do ocre, ainda está puxado para cima até a altura do tórax, exatamente como Ferdinando Loy o deixara.
(Talvez possa se ver em Jorge dos Prazeres, nesse Jorge dos Prazeres absolutamente desconstruído e desconjuntado, em adequado exercício de imaginação  carnavalesca, espécie de São Sebastião gandhificado à espera das flechas que lhe serão desferidas em questão de segundos, e que o prostrarão para todo o sempre).
Matilde das Dores, pelo menos cinco centímetros a mais do que a estatura normal embora continue a usar simplória sandália de dedo sem salto, parece estar com os ombros mais largos e o rosto  vincado ligeiramente mais brilhante e mais luminoso.
O vestido verde-limão com decote em vê comprado em liquidação na Baixa dos Sapateiros por poucos dinheiros valoriza ainda mais a silhueta esbelta que lhe é peculiar e lhe empresta inesperado  ar de pequena grande dama prenhe de ira congelada prestes a se derreter e a imobilizar adversários.
(Talvez possa se ver nela, em adequado  exercício de imaginação carnavalesca, espécie de Joana D’arc vingadora, ávida por disparar flechas certeiras que prostrarão alguém para todo o sempre em questão de segundos.)
Ela (absoluta, resoluta): - Há algum tempo tenho algo para lhe contar, seu viado de merda, e acho que esse é o momento adequado para lhe dizer esse algo que tenho para lhe contar, seu viado de merda.
Ele (prostrado): - Perdão, Matilde, perdão, eu me deixei levar, perdão.
Ela (totalmente incisiva): - Se deixou levar? Sei. Então você não sabia o que estava lhe acontecendo enquanto aquela bicha paraguaia de fala enrolada lhe chupava o pau como se sorvesse suculento picolé de chocolate? Enquanto aquele bando de viados olhava o que vocês faziam e se masturbava? É isso que você quer dizer com ‘me deixei levar’, é, seu porra?
Ele (conciliador): - Bebi muito, me droguei muito. Perdi a consciência do que estava fazendo. Foi isso que quis dizer quando falei que me deixei levar.
Ela (categórica, peremptória): - Poderia até lhe perdoar por essa traição, mas não vou lhe perdoar, não vou lhe perdoar nunca, está me entendendo? O que você acha que uma mulher sente ao flagrar o marido que trata com tanto carinho, que lhe faz cocada preta com gosto do corpo dela, com o gosto das partes azedas dela, se deixando chupar por traveca paraguaia de ponta de rua, de quinta categoria, hein, me diga? Devo ficar feliz? Devo comemorar? Devo festejar, seu viado de merda?
Ele (à beira do choro sincero, sem querer reconhecer naquela mulher que o machucava tanto, aquela outra carinhosa, dulcíssima, que em noites inspiradas lambuza-lhe os testículos com sobras dos doces maravilhosos que faz, de lelê, de quindim, e depois os chupa como se chupasse cacho de uvas maduras): - Você sabe que amo você, não sabe? Que você é a mulher da minha vida, não sabe?
(O pau murcho de Jorge dos Prazeres despencado sobre a cueca vermelha, sempre vermelha, nunca usou nem usará cueca de outra cor,  continua lá, congelado, pateticamente congelado).
Ela (sem se abalar): - Não sei e nem quero saber, seu viado de merda!
Ele (entregando-se totalmente nas mãos dela): - Tenha piedade de mim. Tudo o que quero mais desejo na vida neste momento é voltar pra aquela nossa cama quentinha e dormir nos seus braços....
Ela (interrompendo-o, sem fazer questão nenhuma de ouvir o que o interlocutor continuará a dizer): - Como você reagiria, seu viado de merda, se me flagrasse encostada na porta principal de ferro dobrável do Cine Tamoio sendo chupada por sapatão paraguaia de fala enrolada e cercada por batalhão de lésbicas que enfiavam os dedos nas suas respectivas vaginas e se masturbavam vendo essa bela cena, hein? Como você reagiria, seu canalha? Eu simplesmente reagirei exatamente do mesmo modo que vocês homens reagiriam se encontrassem suas mulheres em situações vexatórias como essa na qual acabei de lhe flagrar. Entendeu?
Ele (totalmente dominado): - Entendi.
Ela (preparando-se enfim para dar a estocada final no touro já semimorto): - Mas o que quero mesmo lhe contar, mas o que quero mesmo lhe dizer é outra coisa. Lembra daquele filho que lhe falei que estava esperando de você e que estaria dentro de minha barriga há coisa de  dois meses?
Ele (tentando injetar-se de algum laivo de vida) : - Você perdeu esse filho e não me falou? É isso?Ela (desferindo estocada final no touro e mexendo a ferida que se abre no touro como se mexesse a panela com que prepara o lelê, o quindim e a cocada preta diariamente, com enorme prazer): - Não perdi esse filho, seu viado de merda, ele está se formando aqui na minha barriga há coisa de dois meses, seu viado de merda. Quem perdeu esse filho, esse filho que está se formando aqui na minha barriga há coisa de dois meses foi você, seu viado de merda!
Ele (sinceramente zonzo, perdido, tonto): - Como assim?
Ela (prolongando ainda mais o prazer que a arrebata e mexendo a ferida do touro abatido ainda mais): - Este filho que está se formando aqui na minha barriga não é filho seu. Eu disse que era, mas não é. É filho de outro Jorge, o Jorge Alencar,  aquele mulato forte,  espadaúdo,  e gostoso que mora bem pertinho de nós, ali na Ladeira dos Galés, e que trabalha em oficina na Rua Djalma Dutra. Lembra dele, seu viado de merda?
Ele (não querendo compreender o óbvio, tentando, pateticamente adiar o final da tragédia): - Você está zoando de mim, tirando sarro da minha cara, esse filho que você está esperando é meu, sim.
Ela (em quase orgasmo): - Não é não. Quem disse que um viado de merda como você pode ser pai de um filho meu, hein? Quem?
Ele (ainda, resgatando-lhe as últimas forças, tentando demonstrar alguma firmeza): - Posso e sou o pai dessa criança.
Ela (enfim mergulhada no mais intenso e formidável orgasmo, boca imersa em profundo mar de saliva): - Você nunca foi o pai dessa criança, ô palhaço. Disse que você era o pai porque senti pena de lhe dizer a verdade, e a verdade é que eu e Jorge Alencar somos amantes desde antes de eu e você nos casarmos. Ele sim é homem com H, e ele que é o pai desse filho que carrego na minha barriga há coisa de dois  meses, seu viado de merda.
Matilde das Dores, em golpe de absoluto e definitivo xeque-mate, desconstrói aquele simulacro de São Sebastião que se cristalizara no corpo de Jorge dos Prazeres naquele antro obscuro de  praça Castro Alves que continua em frenética efervescência: sem sutileza alguma, como se, com a ponta dos dedos, expulsasse formiguinha que teima em entrar numa xícara de café, empurra o pau murcho de Jorge dos Prazeres de volta para dentro da cueca e abaixa a roupa branca de Filho de Gandhy que estacionara há algum tempo na altura do tórax.
Ato final, Matilde das Dores arremata, possessa, absoluta, massacrante: - E tem mais: suma da minha vida. Desapareça. Desinfete. Morra. É isso aí, morra! Jogarei pela janela lá de casa todos os seus teréns. Se quiser pegar alguma coisa desse lixo, mande alguém lá catar os seus cacos na Ladeira do Pepino, está certo, seu viado de merda? Está certo?
A esposa traída, e irada, começa a se afastar em direção à multidão que continua freneticamente mergulhada no mais absoluto êxtase, totalmente alheia, pelo menos até a dali algumas horas, a qualquer possibilidade de dor humana.
De repente estanca, volta-se e repete, como se fosse letal bordão, última estocada no touro, derradeira flecha disparada no tórax de São Sebastião: - Quero que você morra, Jorge dos Prazeres! Quero que você desapareça da face da terra, Jorge dos Prazeres!
Agora sim, Matilde das Dores, esguia, guapa, alma lavada, desopilada, catarse realizada com sucesso, vai embora. Mergulha decidida na massa humana que regurgita ao redor. Some. Sem sequer olhar para trás.
Jorge dos Prazeres despenca sobre o solo coberto de dejetos e chora com todas as (poucas) forças que lhe restam. Urra. Berra. Uiva. Mas não acorda a baiana sonolenta que parece nunca desistir de vender os acarajés murchos que lhe restam. Nem poderia acordá-la. Os  urros e berros e uivos emitidos em tons do mais profundo desespero são apenas pequenos detalhes sonoros a mais na panacéia de sons que se ouve na Praça Castro Alves.
Esvai-se em lágrimas. Desespera-se. Imagina-se enfiado na goela-esgoto aberta ao lado, de onde dois ratos gordos o espreitam.
É então que surge certa luz na mente difusa e dispersa de Jorge dos Prazeres. Pensa contritamente em Iansã/Santa Bárbara. Passa a invocá-la, a buscá-la, a acessá-la. Pede socorro. Pede socorro. Pede socorro. Em vão. Ninguém, absolutamente ninguém, nem Ela, que nunca o abandonara até então, aparece para desanuviar-lhe o cérebro e apontar-lhe caminhos. Mas talvez não haja mais caminhos. Mas talvez não haja mais saídas. Mas talvez não haja mais caminhos. Mas talvez não haja mais saídas. Mas talvez não haja mais caminhos. Mas talvez não haja mais saídas.
Em seguida, o mas  e o talvez desaparecem. A frase se torna então mais afirmativa, mais contundente, mais convincente: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Essas duas frases, como se fossem mantras recorrentes, se replicam, se enfiam por mil e um becos no cérebro difuso de Jorge dos Prazeres, e bimbalham mil e uma vezes entre os neurônios bêbados e drogados de Jorge dos Prazeres. Jorge dos Prazeres também vê essas frases escritas no céu azul escuro sem nuvem nenhuma a lhe macular: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Na abóbada colossal de todas as cores que cobre a Baía de Todos os Santos letreiro macabro pisca e pisca e pisca freneticamente: Não há mais saídas. Não há mais caminhos.
Ouve ainda essas frases serem repetidas à exaustão no refrão de música que aquele cantor popular que tanto gosta toca. Até mesmo a boca da baiana sonolenta sai do torpor em que mergulhava e ela, bocarra escancarada e banguela como se quisesse devorá-lo, decreta: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Jorge dos Prazeres – acuado, pisado, ferido, perdido, sem caminhos, sem saídas – chafurda-se em delírios soturnos seqüenciados.
Dois ratos gordos que até havia pouco apenas o espreitavam, agora escapam, cheios de más intenções e de desejos cruentos, daquela goela-esgoto na qual pensara em se enfiar e se aproximam dos seus pés nus e imundos. Também inclementes, disparam-lhe o mesmo mantra que todos os foliões-sobreviventes da Praça Castro Alves àquela altura também  repetem: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Jorge dos Prazeres retruca: - Há sim, há sim, seus ratos gordos de merda. O caminho, a saída, seus ratos gordos de merda, é o patíbulo, a morte. Ele se repete mil e uma vezes.
Tenta desesperadamente se convencer de que esse caminho, a morte, o patíbulo,  será o caminho que deverá seguir, ser-lhe-á redenção.
Cochicha no ouvido da baiana que voltou a dormir: - A saída, o caminho, baiana xexelenta, é o patíbulo, é a morte.
Em seguida, ao perceber que agora toda a praça Castro Alves é sacudida por milhares de ratos gordos que pulam freneticamente, Jorge dos Prazeres sobe na escada lateral do prédio onde outrora funcionou o jornal A Tarde, e discursa, no mesmo e frenético ritmo da multidão de ratos gordos que se extasiam e transem ao redor: - A saída, o caminho, seus ratos gordos de merda, é o patíbulo, é a morte.
Por mais alto que berre, em vã tentativa de ser ouvido e, quiçá, sacudido, acarinhado, convencido (de que talvez valha a pena continuar vivendo) e amado, nenhum daqueles milhares de ratos gordos que ululam ao redor emite qualquer reação, qualquer sinal de contato, de retorno. É como se Jorge dos Prazeres não estivesse ali. É como se Jorge dos Prazeres já tivesse morrido.
Apalpa-se. Toca-se. Urina-se. Percebe-se. Misto de alívio, de aflição e de repulsa, descobre-se ainda vivo, e que, merda, porra, caralho, talvez ame estar vivo, ame continuar vivo.
Por um momento pensa em apagar, mandar à merda, aquele mantra que continua a se repetir por todas as bocas e que continua estampado no céu estupidamente azul da Baía de Todos os Santos, e pagar pra ver o que o futuro poderá lhe reservar.
Como se adivinhasse o pensamento ligeiramente otimista que assanha poucos neurônios de Jorge dos Prazeres ainda na ativa, os milhares de ratos gordos animados por aquele compositor popular que tanto ama  retumbam e retumbam, de maneira ainda mais intensa que das vezes anteriores:  - Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Jorge dos Prazeres então finalmente capitula. Apruma-se do jeito que pode. Levanta-se tropegamente. Compra dose dupla de pinga na barraca mais próxima. Toma-o de uma só talagada. Parte. Segue em direção à Rua Chile.
Exatamente às margens da escada do Edifício Martins Catharino depara com o que à primeira vista parece ser gigantesca e multicolorida almofada cercada por dois cães famélicos, que a farejam com indisfarçável cobiça.Avança em passos tortos, mas decididos.
Aos poucos, aquela almofada gigantesca e multicolorida ganha contornos mais definidos e talvez mais humanos. Então percebe: o que está estendido naquela sarjeta imunda é o corpo inerte de Ferdinando Loy. Talvez esteja morto. Ou desmaiado. Ou, simplesmente, mergulhado em sono profundo. Dá de ombros. Foda-se. Tenta seguir em frente.
Algo, Jorge dos Prazeres não sabe exatamente o quê, o puxa para aquele corpo estendido no chão. Estará vivo? Morto? Que porra isso importa agora? Todos morreremos um dia não morreremos?
Enfim deixa-se puxar de volta até àquele corpo estendido no chão. Observa-o melhor. Enxerga aquele rosto disforme e casualmente enfeitado por dantesca máscara facial que mistura suores, espermas, maquiagens esmaecidas, e algum sangue.
Pensa em descobrir se ainda há alguma vida a habitar-lhe. Abaixa-se sobre o corpo e tenta perceber se ainda bate algum coração naquela almofada humana multicolorida que ali jaz.
Da mesma forma que antes algo o puxou, Jorge dos Prazeres não sabe exatamente o quê, agora algo o impede de tocar naquele corpo estendido no chão. Ao aproximar a mão do peito de Ferdinando Loy, os dois cães,  incomodados com a presença de terceiro elemento com quem teriam de disputar nacos daquela cobiçada caça, rosnam, e rosnam raivosamente, obstinadamente.
Um desses cães chega a morder o pulso de Jorge dos Prazeres  que, assustado, recua. Então percebe que nada mais poderá fazer. Na verdade, nada mais quererá fazer.
Pensa: Se já não tiver morrido, não demorará a morrer, devorado por esses cães famintos. Dá de ombros.  Diz foda-se novamente. Tenta, mais uma vez, seguir em frente. Antes de tentar seguir em frente, Jorge dos Prazeres percebe-se invadido por avassaladora vontade de vomitar.
Rios de vômito lhe atravessam o esôfago, a goela e a boca - e explodem em vulcânicos jatos de líquido viscoso, asqueroso, fétido, rançoso que  assustam até mesmo os dois famélicos e ferozes cães, que, levemente temerosos,  param por um momento de farejar as partes do corpo inerte de Ferdinando Loy e lhe olham com raiva e desprezo profundos.
Após esse caudaloso vômito, Jorge dos Prazeres se sente   mais leve. Como se deixasse naquela esquina da Rua Chile algo que não devesse levar para onde partiria, embora não soubesse exatamente para onde partiria depois de fazer o que imaginava fazer. Mas gosta da sensação de ter se livrado de algo incômodo que não gostaria de levar em alguma longa viagem da qual jamais voltaremos.
Cruza com as primeiras multidões cansadas que parecem manadas voltando para o matadouro. Voltam para casa depois de mais um carnaval que acaba. Olha-as com imenso tédio e alguma piedade e alguma compaixão.
Tem certa pena desse povo exaurido pela farra que daí a pouco terá de voltar à vida real e enfrentar a vida de merda de todos os dias. Jorge dos Prazeres chega enfim à Praça Municipal.
Vê-se então frente a frente com aquele fascinante, quase pornográfico de tão fascinante, Elevador Lacerda. Ao avistá-lo pela primeira vez, ainda criança, puxada por senhora negra que carregava Bíblia sebosa entre as mãos, percebeu, intuiu: aquele ícone indelével da cidade de Salvador ser-lhe-ia um dia palco fundamental na vida.Era aquela a hora. Era aquele o lugar. Era naquele ícone indelével da cidade de Salvador onde Jorge dos Prazeres encenaria o epílogo, o desfecho, o final, o the end dos filmes de faroeste.
Decide: não haverá arrependimentos nem autocomiserações. Céus e terras se irmanam de novo naquelas faixas inesperadas surgidas sobre o mar, e naqueles milhares de vozes que lhe repetem, exaustivamente, que o tempo destinado para Jorge dos Prazeres viver sobre a terra está próximo de se esgotar: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Pensa em Matilde das Dores. Pensa no filho-que-não-era-filho que pulsa na barriga da mulher que de fato amara, e que, merda, ainda ama. Pensa em Nelson Suave, Rufino Trindade e Dodô da Dedé, os amigos dos quais se perdeu naquele dia inusitado. Lembra das raias que empinou com eles nas margens do Dique do Tororó em tempos idos.
Sobe em mesa da Sorveteria Cubana, ao redor da qual milhares devem ter se sentado e saboreado deliciosos sorvetes e bebido encorpados copos de coco-espumante. Usa-a, à guisa de escada, para galgar a parede lateral do Elevador Lacerda.
Imagina-se subindo em alguma árvore frondosa dos tempos da infância em São Tomé de Paripe, talvez mangueira de onde sempre descera carregado de  mangas maduras que comia com casca e tudo.
Em cima da marquise que se projeta sobre a Praça Municipal Jorge dos Prazeres se acocora por instantes. Assiste, com alguma nostalgia, a batucadas tardias que ainda puxa pequenas e já-nem-tão-frenéticas multidões-manadas, e a foliões-bois insaciáveis que tentam desesperadamente adiar o fim do transe.
Gosta da idéia de que não terá  mais de enfrentar, no ano seguinte, aquele doloroso momento de transição entre o desvario e a realidade que as manadas-bois têm de atravessar todos os anos.
Não haverá mais carnavais. Não haverá mais Matildes-das-Dores. Não haverá mais filhos-que-não-eram-dele-na-barriga-da-mulher-que-amava-e-que-merda-ainda-ama. Não haverá mais quartas-feiras-de-cinzas. Não haverá mais noites de domingo afogadas em tédio profundo. Não haverá mais madames que devolvem o móvel encomendado e feito exatamente do jeito que a madame havia pedido. Não haverá mais choro nem vela.
Prático assim. Simples assim. Por que não pensara nisso antes? Avista um Filho de Gandhy igualmente desgarrado que nunca vira antes, mas que parece conhecê-lo.
Do início da Rua da Misericórdia, abraçado a mulata pra de boa, acena-lhe e saúda-lhe: - Até ano que vem, meu irmão. Ajayô! Ajayô!
Também não haverá ano que vem. Também não haverá mais acenos de mão como aquele. Também não haverá mais ajayôs. Também não haverá mais nada, não haverá mais porra nenhuma.
Com a agilidade do garoto que andava pelos telhados de casas de Paripe, destelhando-as especificamente na área dos banheiros para, assim, flagrar as vizinhas nuas e se masturbar vendo ao longe a plácida praia de São Tomé, caminha pelas laterais do Elevador Lacerda.
Galga em seguida outra parede lateral. Mais uma. Mais outra. E outra mais. Enfim chega na testa, na cabeça da máquina, do Elevador Lacerda.
Não pode impedir: grito de prazer e júbilo lhe escapa dos grossos lábios.
Olha de cima: enxerga pessoinhas que se arrastam como se fossem formiguinhas preguiçosas. Ou boizinhos preguiçosos. Sente-se na proa do mundo. Não durará muito, pensa, mas a sensação de estar nesse lugar é indescritível.
Respira fundo. Olha para o céu azul, de azul cada vez mais claro, mais luminoso, à procura de alguma nuvem que o aconchegue. Mas não há nuvem alguma no céu. Não pode se impedir de pensar, e pensa: Iansã, que habita densas nuvens de chumbo, deverá estar por outras paragens nesse início de quarta-feira de cinzas, 8 de fevereiro de 1978, e não quer abrir suas aconchegantes asas sobre mim, ai de mim.
Ainda assim (onde estiver, Ela me ouvirá), Jorge dos Prazeres reza: Ó Santa Bárbara que sois mais forte que as torres das fortalezas e que a  violência dos furacões fazei com que os raios não me atinjam os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abale a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que eu possa enfrentar todas as tempestadesde fronte erguida e rosto serenopara que, vencedor de todas as lutascom a consciência do dever cumprido possa agradecer a vós, minha protetorae render graças a Deus este Deus que tem poder de dominar o futuro das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Santa Bárbara, rogai por nós.
Em seguida Jorge dos Prazeres abraça-se. Repete várias vezes: Ficai  sempre ao meu lado, minha Santa Bárbara!
Olha os telhados toscos e as casas que nem telhados toscos têm da Ladeira da Montanha. Avista com ternura os pequenos barcos atracados na Praça Cayru. (Quem sabe aquele boizinho lá longe dentro daquele barquinho lá longe não seja o seu Pedro Suave, pai do amigo Nelson Suave, partindo para mais um dia de pesca?).
Procura de novo alguma nuvem de chumbo onde possa divisar a figura amistosa e querida de Iansã/Santa Bárbara.
(Mas o céu continua implacavelmente azul).
Então Jorge dos Prazeres abre os braçosem cruz.
(Não pode deixar de lembrar o que professora de português, que o amava muito, do curso primário que talvez se chamasse Isaurinha costumava lhe dizer sempre: - Nós todos carregamos nossa própria cruz).
Grita Eparrei, Iansã.
(Joga-se no vazio).
(Antes de se esfarelar no solo, Jorge dos Prazeres cruza com casal de gaivotas, que o olham sem entender nada. Absolutamente nada.).

domingo, 12 de fevereiro de 2012

AGONIA E ÊXTASE DE UM FILHO DE GANDHY DESGARRADO (OU QUANDO A BAÍA ERA COM H)


PARTE 1

A vida tem dessas coisas inexplicáveis, dessas coisas que não dão para entender por mais que matutemos – você sabe exatamente do que estou falando, caro leitor. Ninguém sabe determinar exatamente o motivo que levou o marceneiro Jorge dos Prazeres a se desgarrar do Afoxé Filhos de Gandhy nessa tarde de terça-feira de carnaval. O mulato de olhos cor de mel e corpo magistral esculpido na lida braçal e diária de criar peças em madeira se deixou levar. Mergulhou por outros caminhos, caminhos que não fazia a mais remota idéia de onde iam dar. Talvez o destino misterioso e inexorável, ou seja lá que diabo fosse, o tenha puxado pela mão e o tenha levado a percorrer a trilha que percorrerá nesse fatídico dia-noite de fevereiro. Talvez.
Jorge dos Prazeres saíra da casa número 65 da Ladeira do Pepino por volta do meio-dia. Despedira-se da esposa, geniosa mas loucamente apaixonada, Matilde das Dores (Até mais tarde, minha querida. A gente se encontra por volta das 8 horas da noite naquela barraca que vende aquela passarinha que você tanto aprecia, que fica logo ao lado do Cine Tamoio. Certo meu amor? De lá a gente vai para a farra e dorme em algum hotel barato perto da Barroquinha. Combinado?).
Em trôpega mas cadenciada seqüência, borboleteou por diversas biroscas do caminho (Mercado das Sete Portas; Mercado de Santa Bárbara; Bar do Seu-Messias; Bar Vermelho; Bar Redondo; Amarelinho; Beirute; e onde houvesse cachaça para se encharcar e para se chafurdar) até chegar ao Terreiro de Jesus. Lá  deveria aguardar o afoxé Filhos de Gandhy  sair. Lá deveria também reencontrar os amigos de fé, irmãos, camaradas, Nelson Suave, Rufino Trindade e Dodô da Dedé. Deveria. Mas não aguardou. Deveria. Mas não reencontrou.
Jorge dos Prazeres se afogara em goles vorazes de cachaça pura e, já completamente embriagado, partira para o que dizia ser a sobremesa apetitosa: talagadas de cravinho sorvidas em goles gulosos em boteco mais-sórdido-impossível da Ladeira da Praça. Sobremesa porque era docinha e – já começando a enrolar a língua, trocando segredos com desconhecido que acabara de descobrir em pleno ato de embebedar-se – e apetitosa porque tem gosto parecido com o da cocada preta que minha mulher faz pra mim, e só pra mim, e que tempera especialmente com o cheiro dela. Não sei bem como faz, mas o gosto do corpo dela, das partes azedas dela, me vem à boca quando como os pedaços da cocada preta  que faz pra mim.
Então Jorge dos Prazeres afundou-se no gosto da cachaça. No gosto do cravinho, que tinha o gosto da cocada preta que a mulher Matilde das Dores fazia e que tinha o gosto do corpo e das partes azedas da mulher amada. Ouviu de muitas bocas alheias é hoje só, amanhã não tem mais. Não  teve alternativa a não ser gozar, gozar e gozar. Relaxou, e aproveitou.

Entrega-se então, definitivamente, sem mais resistência alguma, a  onírico e idílico éter no qual navega entre a consciência e a inconsciência, entre o ser e o não-ser, entre o estar e o não-estar. Os amigos Nelson, Rufino e Dodô que se fodessem, que-se-fo-des-sem!  O afoxé Filhos de Gandhy também, que se fodesse, que se fo-des-se! 
De vez em quando capta, por réstia de olho que ainda lhe sobrara, que ainda não naufragara completamente no álcool, a figura de alguém de branco igual a ele, branco e radiante feito ele, desfilando com garbo e esplendor como ele deveria desfilar, logo ali, ou logo acolá, ou logo além. Não distingue rostos, mas imagina o belo rosto dele projetado naqueles belos rostos alheios que encimam fantasias iguais às dele. Resta-lhe então a miragem de se afundar no transe de que todos os filhos de Gandhy têm a cara dele, o rosto dele, o pênis dele, o jeito dele.
O rosto de Jorge dos Prazeres, no transe de Jorge dos Prazeres, não é mais um só. São centenas. E essas centenas de rostos pipocam aqui, acolá e além. Espargem gotas de seiva de alfazema  e de saliva em bocas que parecem vaginas de tão vorazes e em seios fartos de mulheres zonzas de desejo de serem possuídas pelo maior número possível de Jorges-dos-Prazeres  nesse último dia de carnaval.

Desgarra-se de novo do resto da manada. No ritmo lento e lúdico da  embriaguez profunda, mergulha o cérebro, já com a consistência das esponjas, no desejo soberano de não querer pertencer a nada. De não querer pertencer a ninguém. A porra nenhuma. A manada nenhuma.  Reage com indiferença, e eventualmente raiva, às mulheres que lhe imploram que lhes jogue seivas de alfazema, ou que, ladras vorazes, lhe roubam à revelia gulosos beijos de língua.
Jorge dos Prazeres não sabe, não tem a mais remota noção, de onde vêm essas mãos e essas bocas gulosas. Simplesmente parecem surgir do nada, de lugares nenhuns. Materializam-se em apalpadelas fortuitas no seu baixo ventre, nos seus glúteos bem fornidos, em frases que lhe celebram a beleza: - Meu Senhor do Bonfim, esse Filho de Gandhy é gostoso demais. Eu quero dar procê! Eu quero dar procê! - (esbraveja quarentona sapeca de corpo flácido e seminu que, para o já etéreo e nauseado Jorge dos Prazeres, tem a consistência das gelatinas,  e das assombrações).
De repente, também surgida do meio do nada, boca negra feminina,  fescenina, se gruda à boca dele, e nela derrama algum líquido não identificável de imediato. Poderia ser qualquer tipo de beberagem. Uísque. Vodca. Talvez vômito. Ou simplesmente saliva misturada a doses residuais de álcoois e líquidos seminais diversos. Empurra a invasora com ojeriza, com violência, mas ainda tem tempo de ouvir: - Eta Gandhy gostoso! Queria ter um desses lá em casa!

Respira aliviado, ufa!, quando pequena, e bem-vinda, clareira surge em algum lugar parecido com a Praça da Sé (ou seria Praça Municipal?) e pode, enfim, sair do sufoco anterior por alguns instantes. Só por alguns fugazes instantes. Jorge dos Prazeres, com  experiência de muitos carnavais, sabe muito bem: clareiras no meio da multidão – que não sejam provocadas por brigas em que tamboretes cruzam os ares como se fossem toscos mísseis de madeira – são cada vez mais improváveis, no cada vez mais improvável carnaval de Salvador.

Fim da trégua. Perigo à vista. Do nada, tudo parece surgir do nada,  aparece grupo de mulheres em fúria, libidos em fúria, tudo em fúria. Quase totalmente encobertas por folgadas mortalhas pré-abadás, lhe amassam a genitália como se manipulassem massa de fazer abará. Pensa, se é que naquele estado de decomposição etílica, Jorge dos Prazeres poderá pensar alguma coisa, em dizer, em gritar o meu pau não é massa de fazer abará, caralho! Mas não. Deixa-se imolar. Cala-se. Deixa-se apalpar. Deixa-se amassar. Deixa-se sangrar. Deixa-se esporrar.

Essas frenéticas mulheres em fúria que o atacam parecem querer mais, bem mais, do que simplesmente pegar no pau do Gandhy, como vociferara uma dessas excitadas e desvairadas mocetonas no início do estupro. A que parece ser chefe dessa quadrilha voraz de valentes amazonas alimentadas a abará e acarajé e a drogas não identificadas diversas, urra, uiva, berra, para as outras estupradoras que a seguem e a imitam: - A gente precisa ver o pau de Gandhy. A gente precisa chupar o pau de Gandhy. A gente precisa ser penetrada pelo pau de Gandhy!
Enquanto isso, estupradora que guarda sob a calcinha mamadeira cheia de bebida de origem desconhecida e de cor não exatamente definível (talvez mijo; talvez rum com coca-cola; talvez puro álcool zulu submetido a imersões de bagas de tamarindo), retira-a de improvisado cofre-calcinha. Cena seguinte: enfia-a, sem dó nem piedade, na boca do pobre, desvalido e estuprado Jorge dos Prazeres.
Indefeso, sem reação possível, a boca do pobre Jorge dos Prazeres deixa-se penetrar por aquela mamadeira evidentemente tardia;  evidentemente mal-intencionada; evidentemente fálica. Aquela dose a mais de álcool no sistema sanguíneo desse Filho de Gandhy desgarrado tem o mesmo impacto que se terá ao pincelarmos com tinta preta a superfície preta de alguma tela preta. Nada sobre nada. Tudo sobre tudo. Redundância absoluta. Apenas detalhe a mais. Só. Somente só.
A esse Jorge dos Prazeres desgarrado do resto da manada, armado do estoicismo dos santos, dos bêbados e dos drogados, só resta capitular à invasão-dessas-fêmeas-corpo-dele-adentro. Em algum canto escuro da Praça da Sé (ou seria da Praça Municipal?) que recende a mijo, a merda e a abará, essas famélicas amazonas derramam-lhe todas as doses de libido que as abarrotam até a tampa. Com habilidade magistral, como se fizessem aquilo desde criancinhas, desde os ventres maternos, esparramam-se em formidável banquete sexual que certamente contarão, orgulhosas e briosas, aos netos e netas em algum lugar do futuro. 
Após o lauto banquete essas libidinosas amazonas lambem os beiços, lavam as vaginas com os mesmos líquidos que as embriagam, e, insaciáveis, praticam as seguintes ações de rapinagem: 1) Arrancam-lhe os colares branco-azuis, as meias-um-dia-azuis, as sandálias de couro brancas, até mesmo a rosácea em tons de paetê azul que, à guisa de mirante, encima o turbante ghandyano. 2) Bebem  todo o vidro de seiva de alfazema que Jorge dos Prazeres carrega. – É bom pra curar azia – jura a mais amazona das amazonas. 3) Enfiam as mãos no embornal branco que Jorge dos Prazeres carrega a tiracolo, e dali arrancam aproximadamente trinta dinheiros.
Precavidas, supersticiosas, deixam-lhe incólume o turbante. Atendem ao pedido de uma dessas amazonas, que, inundada de repentina culpa,  sentencia: - Roubar turbante de Filho de Gandhy dá uruca. Não mexam nisso! Deixa queito! Satisfeitas e felizes, completamente saciadas, escapolem pela Ladeira da Praça e se esgueiram pelos becos e vielas laterais à Baixa dos Sapateiros. Escafedem-se.

Fosse outro homem, com menos, digamos, energia vital, o carnaval de Jorge dos Prazeres acabaria ali e naquela hora, pós-terremoto, pós-vendaval, pós-bacanal, pós-estupro, pós-apocalipse. Mas infelizmente o carnaval de Jorge dos Prazeres não acabará ali e naquela hora. Na verdade, o carnaval-inferno de Jorge dos Prazeres apenas se configura, apenas se origina no céu que desponta no horizonte, imerso em espetaculares tons de vermelho, rosa e azul, que se descortina por trás da Igreja da Misericórdia, ao pé da qual Jorge dos Prazeres tenta, embora não devesse, emergir das sombras, e prosseguir.
Antes que escape da sarjeta onde as amazonas ninfomaníacas o afundaram, lembra vagamente que talvez tenha mulher chamada Matilde das Dores (Ou seria Ângela das Dores? Ou Dalva das Dores? Ou Roberta das Dores? Ou Isaurinha das Dores? Ou Aracy das Dores? Ou Fernanda das Dores? Ou Bethânia das Dores? Ou Jussara das Dores? Ou Elizeth das Dores?), talvez grávida dele, e que talvez tenha marcado encontro com ele em algum lugar do centro da cidade que não tem a menor idéia de onde seja. Lembra também que talvez se chame Jorge dos Prazeres (Ou seria Nelson Suave? Ou Dodô de Dadá? Ou Rufino Trindade?), e que talvez  um dia tenha sido homem e não um rato, um rotundo e abjeto rato de esgoto.

A fuzarca não pára. Antes que outro grupo de mulheres insaciáveis que correm em direção dele o alcance, Jorge dos Prazeres muda de rota. Escapa pela Rua da Ajuda e pela Rua Rui Barbosa. Sempre como se flutuasse. Sempre como se fosse ectoplasma dele mesmo, e que, sem corpo e sem alma, levitasse sobre colossal e retumbante pântano. Não sabe para onde ir. Mas sabe: - Tenho de ir em frente. Está escrito.
Algo o empurra para o abismo. Algo o obceca. Algo o arrebata. Mas nem sequer desconfia o que esse algo possa significar. Mas vai. Vai. Vai. Tem de ir. É mais forte do que ele, e não é difícil ser mais forte do que esse pobre-diabo que se arrasta como pode entre esses homens e essas mulheres em catártica liberação de instintos.

Até que, após se livrar de outras centenas de mãos e bocas que tentam abocanhar-lhe cabeça, tronco e membros, Jorge dos Prazeres se vê aos pés de casal, de homem e de mulher seminus. Levemente acima do peso, cristalizam-se em forma de estátua cinzenta ao pé do pedestal de outra estátua maior também cinzenta: sujeito cabeludo que estende a mão direita sobre a praça em transe, como se a abençoasse, em cuja base está escrito: - A Bahia a Castro Al...
Antes que leia o resto do sobrenome Alves, mão alheia invade-lhe a boca. Nela deposita ritualisticamente, como se fosse pepita de ouro resplandecente posta a brilhar no sol a pino de meio-dia da areia de Itapoã, pequena, quase imperceptível, pílula. Jorge dos Prazeres olha para trás, e se apavora um pouco com o que vê, mas não muito. Àquela altura o mais antinatural já lhe parece tão natural quanto o cachorro magro correr atrás do gato magro e o gato magro correr atrás do rato gordo. Pura rotina.
É assim, com colossal ar de tédio, como se aquilo tudo começasse a cansá-lo, mas a cansá-lo muito, mas não a ponto de impedi-lo de seguir em frente, dê no que der, é hoje só e amanhã não tem mais, que esse Filho de Gandhy desgarrado se vira e depara com belo rosto de homem que, a milímetros do rosto dele, sussurra-lhe: - Sempre quis enfiar ponto de ácido na boca de um Filho de Gandhy. Acabei de fazê-lo. Sempre sonhei em beijar na boca um Filho de Gandhy. Farei isso agora!
Minúsculas lascas de reflexão tentam se imiscuir nas cada vez mais lentas ondas cerebrais de Jorge dos Prazeres, nas quais neurônios vagarosos pulam de lugar para outro como se fossem vaga-lumes bêbados que perdem lentamente o poder de piscar. Pergunta-se, ou se esforça o máximo que pode para se perguntar em absoluto ritmo slow motion: - O que diaaaaaaabos me faaaaaaaaaalta ainda acontecer nesta terça-feira de carnavaaaaaaal?
A resposta, ao contrário, virá, rápida, ágil, vibrante, em forma de colossal e viril língua masculina que lhe é enfiada boca adentro, sem pedir licença, sem perguntar se tem ou não gente lá dentro, sem querer saber se será bem-vinda ou não, simplesmente invadindo tudo, arrebentando tudo. Nosso Filho de Gandhy desgarrado não tem como escolher entre a e b, entre x e y, entre Marlene e Emilinha, entre Bahia e Vitória, simplesmente se deixa levar, como um cego se deixa puxar pelo braço para atravessar a rua quando o sinal verde abre para os pedestres, seja o que Deus quisesse, seja o que tivesse de ser, seja para que caminho levasse, seja em que porra desse aquilo tudo, existisse ou não existisse amanhã. 
Esse apaixonado beijo aos pés da estátua de Castro Alves cercada por gentes de todos os sexos que se esvaem admiravelmente em notável celebração de prazeres não dura mais que meio minuto. Da mesma forma que entrou, sem pedir licença, sem bater, sem perguntar se tinha gente lá dentro, a língua desse homem de olhos azuis de não mais de 30 anos sai, sem vacilações, da boca de Jorge dos Prazeres.
Esse homem branco de olhos azuis de não mais de 30 anos retira a língua de onde recém-acabara de enfiar, lambe os beiços, e comenta, em tom inusitadamente profissional: - Foi ótimo beijar você. Como disse, tinha o sonho de beijar um Filho de Gandhy na boca. Realizei. Pronto. Estou feliz. Pleno. Realizado. Adeus!
O homem branco de olhos azuis de não mais de 30 anos se afasta e, sem sequer olhar para trás, mergulha na multidão que, olhos negros cruéis tentadores, balança o chão da praça, ô ô ô ô.

É possível que Jorge dos Prazeres tenha sentido irrefreável vontade de chamar esse homem de volta e de lhe pedir, até mesmo implorar, que o beijasse de novo, que lhe enfiasse a língua boca adentro de novo. Antes que essa vontade se materialize, o casal formado por  homem e mulher seminus, ambos levemente acima do peso, cristalizados em forma de estátua cinzenta ao pé do pedestal de outra estátua maior, descristaliza-se. Ato contínuo, puxa Jorge dos Prazeres para o colo de ambos, cobrem-no de vorazes beijos de língua, e o afagam com todas as mãos possíveis e imagináveis.
Ao mesmo tempo, Castro Alves, o poeta em pessoa, a estátua encarnada, descera do pedestal onde se instalara desde que Jorge dos Prazeres se entendia por gente e se dirige impávido em direção a ele, com inegável pitada de lascívia a lhe iluminar os olhos. Para a poucos centímetros do casal que acabara de se descristalizar, e lhes beija nas bocas com a avidez típica dos que passam muito tempo sem experimentar as delícias da carne, sem exercitar os delírios da carne.
Em seguida, ordena-lhes que lhe arreiem as calças (‘Rápido, rápido! Tenho pressa!). Calças lhe são arriadas (o que deixa à vista estrondoso membro viril em riste, emoldurado por testículos avantajados e pentelhos negros, anelados e fartos), mas ainda tem paletó, gravata e colete mantidos no lugar, o que dá ao poeta que acabara de se descristalizar aparência algo anedótica.
Jorge dos Prazeres quase sorri. Mas não tem tempo. Ouve então a seguinte ordem, dita em tom absolutamente imperial: - Meu caro senhor Jorge dos Prazeres. Espero que não tenham acrescido esse Dos-Prazeres ao seu nome impunemente, por mero acaso.  Sentir-me-ia profundamente lisonjeado se o senhor se dignasse a chupar-me, a chupar-me até os bagos. O senhor me faria essa gentileza, esse obséquio, essa delicadeza?
Jorge dos Prazeres percebe ainda: 1) Além das estranhas cores que marcam o anoitecer dessa última noite de carnaval, tons de verde-cítrico mesclam-se a nuvens ora vermelhas, ora amarelas, ora azuis. 2) O mar troca de lugar com o céu, o mar agora tem nuvens; o céu, ondas.  3) Os milhares de pessoas que balançam o chão da praça imploram-lhe, rogam-lhe, suplicam-lhe: - Chupa! Chupa! Chupa!
Jorge dos Prazeres, sem titubear, obedece a essas súplicas. Mergulha sem medo de ser feliz na barafunda dos anelados e negros caracóis dos pentelhos do poeta dos escravos.

Foi quando (quase) despertou do transe. Vê-se então puxado por homens e mulheres, que, ludicamente, como se brincassem de pega-pega,  tentam tirá-lo do alto daquele monumento  - (por quanto tempo Jorge dos Prazeres terá ficado ali abraçado àquela estátua com quem teimava em querer fornicar nunca se saberá; afinal de contas, ninguém era de ninguém naquela praça Castro Alves do final dos anos 70; ninguém dava a menor trela se o cara ao lado fazia sexo oral com aquele conhecido ator de novelas da Rede Globo; ou se o cara bem em frente esfregava cocaína na gengiva e, ao mesmo tempo, comia o rabo daquela célebre cantora da mpb que diziam ser lésbica; diante disso, quem estranharia o fato de algum maluco cismar em fazer sexo oral com a estátua do poeta, quem, me diga caro leitor, quem?)
Lá do alto Jorge dos Prazeres se vê e quase se reconhece: tem a roupa de Filho de Gandhy suspensa até a altura do peito e as cuecas vermelhas abaixadas até o tornozelo (o que deixa à vista estrondoso membro viril em riste, emoldurado por testículos avantajados e pentelhos negros, anelados e fartos) e abraça com volúpia a estátua do poeta Castro Alves como se abraçasse a mais lúbrica de todas as criaturas do universo.
Simulacro de operação-resgate materializado, simpaticamente submetido por seus salvadores a ritual de fumaça que se compunha do consumo coletivo de cigarros de maconha de vários calibres, Jorge dos Prazeres anda por entre as pessoas, todas tão ou mais drogadas que ele, como se atravessasse espectros.

Há música alucinante explodindo ao redor, pode perceber isso agora, e aquelas milhares de cabeças que pulam goticamente em direção ao céu poderão ser explicadas por certo som extático de guitarras-elétricas  e de vozes que repetem versos sem aparentemente sentido algum, como se fossem índios a celebrar mítica e diáfana dança-da-chuva no seco, árido e inóspito deserto americano. Na visão distorcida pelo álcool, pelo ácido e pela maconha, nada, nem ninguém, parece ser ainda capaz de chocar Jorge dos Prazeres àquela altura do apocalipse. Nada.
Mas ninguém nunca saberá o que acontecerá no dia de amanhã, sequer no  minuto seguinte. No minuto seguinte Jorge dos Prazeres depara, em lisérgico périplo pelas imediações da escadaria do Palácio dos Desportos, com súbita aparição que parece versão gay de Cérbero, o cão de três cabeças que protege as portas do inferno. Tem - Jorge dos Prazeres não pode deixar de sentir, a súbita aparição está a milímetros de seu aquilino e apolíneo nariz – hálito capaz de derrubar exércitos e de aterrar gigantes. Nele misturam-se, podem-se captar, altas doses de lança-perfume; néctares residuais provenientes do consumo ávido de maconha e cocaína; e certo aroma fétido  que provavelmente remete aos muitos pênis mal lavados que teria abocanhado nas últimas horas.  
A súbita aparição usa, com a pompa típica possível de imperatriz da Pérsia que acabasse de ser atropelada por dois caminhões carregados de batatas, beterrabas e repolhos: a) Bata de desbotada inspiração asiática, em cuja parte frontal pode ser vista efígie de Che Guevara que ostenta inusitado chapéu à Greta Garbo, e lábios carnudos ressaltados por generosa dose de batom carmim. b) Botas vermelhas de saltos altos e canos longos que  lhe vão até o meio das pernas. c) Tiara amarfanhada e algo disforme em tons dourados que teima em fixar-se em cocuruto absolutamente ovóide que emoldura olhos lilases que lhe fogem das órbitas, descarrilados e tortos. d) Longos colares compostos por objetos diversos que variam de afiados dentes de tigre a figas douradas, e até mesmo prateada estrela-de-Davi coberta de paetês coloridos. e) Maquiagem distorcida que lhe aplica estranhezas tipo sombra verde-limão em uma pálpebra e sombra amarelo-ouro na outra pálpebra etc, etc, etc.
Ao pé da escadaria do Palácio dos Desportos, atulhada de toneladas de gays fantasiados ou apenas completamente nus, essa estranha, e súbita, aparição ensopa a bata de desbotada e vaga inspiração asiática com fugazes jatos de lança-perfume. Em seguida oferece a mancha ainda úmida aos narizes vorazes dos que se amontoam à sua volta como zumbis no cio – e, em questão de segundos, esses zumbis no cio lhe deixam a bata de desbotada e vaga inspiração asiática absolutamente seca.

A súbita aparição se dirige a Jorge dos Prazeres em idioma não facilmente  identificável. Provoca-o em labiríntica mistura de péssimo espanhol e português ainda pior: - Jo soy mix de Che Guevara e Sarita Montiel. E tu, guapo Gandhy, quien és? Non quieres cheirar mi bata indiana ensopada de lanza-perfume e depois me  enrabar, enfiar-me a verga dura e longa que tiene entre tus  pernas no meu culo? Mi nombre es Ferdinando Loy, e tu como te chamas?
Jorge dos Prazeres não entende exatamente o que acabara de ouvir. Ou melhor, não tivera tempo de entender o que ouvira. Antes que qualquer sentimento de culpa ou de nojo o invada, Ferdinando Loy, que certo jornalista baiano apelidara nas páginas de jornal local de a pomba-gira portenha, puxa-o pelo único colar-branco-azul-de-Gandhy  que lhe restara, e o obriga  a, intrepidamente e temerariamente, atravessar a Praça Castro Alves em direção ao cine Tamoio.
No meio do caminho havia menino que era puxada pela mão da mãe, e que entortara perigosamente o pescoço em direção àquela bizarra entidade que se movia com a languidez das gatas e das putas. Ferdinando Loy capta esse olhar infantil, e capricha na performance para continuar a atrair esse olhar infantil. Vira-se de costas. Segura com mão esquerda o colar-branco-azul-de-Gandhy com o qual puxa a caça mais recente. Suspende com a mão direita todos os panos que o cobrem. Isso mesmo, caro leitor: escancara ao olhar cada vez mais fascinado do garoto ancas glacialmente brancas e roliças, e barrocas camadas de gordura.
Não satisfeito, Ferdinando Loy, sem nunca deixar de puxar pela coleira improvisada a caça recém-abatida, olha com lascívia e desvario para aquele garoto que funde fascinação e medo naquela tez morena e cálida, e que certamente nunca esquecerá essa cena absolutamente felliniana, e lhe dispara: - Nunca em toda su vida verás culo tão lindo quanto o culo de papito. Nunca!
Foi a senha para a mãe zelosa arrastar o filho, com súbita  e desesperada diligência, daquela orgia desenfreada que parecia finalmente chegar aos píncaros mais absolutos. Puxa o rebento em direção ao Palace Hotel, aos berros: - Vamos embora daqui, Misael. Isso aqui é o refúgio de Satanás. Vade retro! Vade retro!
Diante dessa apocalíptica conclusão, Ferdinando Loy, ainda expondo a bunda alva e carnuda e as barrocas camadas de gorduras,   reage à altura: - Aqui és de fato o refúgio de satã. Per supuesto, jo soy satã, jo soy satã! JO SOY SATÃ!

Emoldurado por agora amassado e roto, mas ainda imponente, turbante, o rosto de Jorge dos Prazeres exibe olhar que parece imerso em profundo pânico. Mas também se pode perceber nesse  rosto espetacularmente belo desabrida avidez em descobrir onde tudo aquilo poderá levar-lhe ao se deixar puxar pela coleira-colar por essa pomba-gira portenha, como se fosse cãozinho de estimação de bicha coquete.
Ao chegar na outra margem da praça Castro Alves, sob a placa luminosa do cinema que anuncia a exibição da reprise de Aeroporto 77, com Jack Lemmon e Christopher Lee, Ferdinando Loy e Jorge dos Prazeres formam – mesmo em meio a toda aquele apoteótica fauna, em meio a todo aquele apoplético desbunde – inusitada e improvável dupla.
Dupla mais inusitada e improvável ainda pelo fato de a língua  voraz de Ferdinando Loy teimar em lamber nervosamente todos os poros e todas a concavidades e convexidades do corpo de Jorge dos Prazeres em cena aberta. O estranho casal, em plena troca de líquidos e carícias, se limita ao sul: por carrinho de pipoca que exibe pipoca de péssima aparência e fétido hálito; ao norte: por baiana-do-acarajé sonolenta que teima em querer vender, embora ninguém mais os compre àquela altura dos embalos orgíacos, abarás, acarajés e beijus requentados, tão recomendáveis de serem digeridos quanto os cadáveres que então superlotam as gavetas geladas dos necrotérios da cidade.

Jorge dos Prazeres parece ter abandonado qualquer resquício de vontade pessoal e qualquer resquício de dignidade. Deixa-se manipular como se fosse mamulengo manipulado por titereiro priápico e devasso. Na cabeça encimada por aquele turbante agora murcho e chocho submerge cérebro pastoso lentamente cozido ao longo do dia por drogas e emoções diversas dos mais variados e potentes calibres. (Não fosse a aparição de Ferdinando Loy que, nesse exato momento, alheio ao frenesi em volta, enfia a cabeça de cabelos longos mas ralos por baixo da roupa de Gandhy de Jorge dos Prazeres, talvez estivesse com a cara enfiada em sarjeta abjeta qualquer da Barroquinha ou da Ladeira da Praça,  deixando-se picar por ratos gordos e gulosos).
Olha para aquela estranha figura que se debate sob as suas vestes brancas – tentando desesperadamente, por meio de vigorosos movimentos de respiração boca-a-pênis, trazer-lhe de volta algum tipo de vida, qualquer tipo de vida que fosse – não com repulsa ou asco, sentimentos inconcebíveis no grau de desvario em que se atolara, mas com profundo distanciamento. Como se essa estranha figura sugasse  não o falo dele, mas o falo do cara ao lado que se masturba captando e pegando as sobras da cena em que Filho de Gandhy se deixa chupar por travesti paraguaio (conforme comenta essa estranha figura com alguém que igualmente se masturba e que igualmente lança para Jorge dos Prazeres seguidos e vorazes olhares de cobiça). 
Incansável, Ferdinando Loy obtém afinal algum sucesso com o frenético movimento de cabeça que faz sobre o pênis de Jorge dos Prazeres. O que inicialmente ocupou-lhe a boca como se fosse flácido e reciclável pedaço de carne agora lhe invade retumbantemente goela abaixo e parece lhe fazer cócegas nas paredes do esôfago.
Para comemorar, como se posasse para hipotética e pornográfica câmera fotográfica, Ferdinando Loy afasta um pouco o rosto do objeto que mastigara nos últimos minutos,  sorri para a agora pequena multidão de homens que se masturbam ao redor,  segura o pênis de Jorge dos Prazeres à guisa de troféu, e berra: - Biba Che Guevara! Biba Sarita Montiel. Biba  a Bahia!

Jorge dos Prazeres olha, mas não vê, esses olhares masculinos que se reviram de prazer e essas mãos rápidas que manipulam falos que lhes pipocam no meio das pernas como grandes inhames e grandes batatas baroas prestes a explodir de suas cascas. De repente, no meio desse espetacular e alucinado grand-guignol estrelado por fantoches absolutamente tantalizados e erotizados, parece ver rosto familiar.
Entre a cabeça de homem de rosto vincado por rugas e obscenamente obeso,  que se esforça para sacar o pênis do coldre de gordura que o encobre, e por aquele rapaz jovem que lhe lança vorazes olhares de cobiça, Jorge dos Prazeres parece ver, e logo em seguida vê de fato, o rosto impávido e irado e crispado de ninguém mais ninguém menos que Matilde das Dores, com quem combinara, alguma parte do cérebro dele aponta, em algum vago e distante momento do passado encontrar-se em algum lugar dessa longa noite em algum lugar dessa insana farra.
Parece ver também e, logo em seguida, vê de fato que esse rosto parecido com o de Matilde das Dores, que se destaca no meio desses rostos disformes, se deixa emoldurar por rosto, tronco e membros absolutamente transidos. Vê também que essa tríade composta por cabeça, tronco e membros transidos se dirige perigosamente em direção daquela bacia de azeite de dendê ainda fervente na qual aquela baiana sonolenta teimava em ressuscitar os acarajés murchos que algum desavisado e faminto folião talvez ainda comprasse.
Exatamente quando Ferdinando Loy volta, gloriosamente, a abrigar o pênis agora rutilante de Jorge dos Prazeres na boca, Matilde das Dores  (sim é de fato ela, sim, é de fato Matilde das Dores), tal e qual Medeia das Dores suburbana que emerge do meio do lodo, abarca a bacia fervente de azeite de dendê nas mãos magras e finas, à guisa de arma de fogo de amplo poder de abrasão, e entra em cena – magistralmente descontrolada, caminhão desgovernado descendo Ladeira do Pepino abaixo.
Matilde das Dores lança jatos quentes e caudalosos de azeite-de-dendê sobre aquela multidão extática, e destrói, sem deixar criatura sobre criatura, essa grotescamente sublime cena de grand-guignol. Asperge com fúria colossal aquele grosso caldo quente sobre as cabeças e troncos e membros dessa pequena multidão extática que se desfaz – zonza, tonta, caótica, cega, desesperada.
Essa inesperada caudalosa chuva de caldo quente atinge a extática multidão de surpresa. Alguns urram de dor. Gotas ferventes se abatem sobre mãos, braços, testas, e em glandes túmidas prestes a explodir em  jatos de esperma.
Em Ferdinando Loy os inesperados chuviscos atingem-lhe em cheio o rosto e os cabelos ralos agora manchados por lama negra e luzidia que parece petróleo. Mas não parece se abater: seus olhos em dilatação máxima de pomba-gira portenha parecem anunciar que essa guerra ainda não acabara.
Milagrosamente, nenhuma gota dessa inesperada chuva quente atinge Jorge dos Prazeres, o que exaspera ainda mais o ânimo de Matilde das Dores que, impelida por força que talvez fosse capaz de puxar dois caminhões por cordas presas aos cabelos grossos e ásperos, berra, urra, brada, grita, enfim explode – explode como mulher-bomba iraquiana que trocasse a bomba amarrada ao corpo por dor profunda amarrada ao corpo: - Filho da puta! Filho da Puta! Filho da Puta!.
Ferdinando Loy, que costuma nunca perder a pose mesmo nas grandes tragédias e essa, percebia, era grande tragédia, ainda tenta reagir, ainda tenta esboçar algum simulacro de reação, ainda ousa cuspir no rosto de Matilde das Dores e uivar algo parecido com tirem essa louca daqui. Mas, no meio do caminho dessa pretensa reação, bate de frente com  peremptória e bombástica contra-ordem: - SAIA DAQUI SUA  BICHA PARAGUAIA DE MERDA! SAIA. SUMA! DESAPAREÇA ANTES QUE EU ESCALPELE VOCÊ, SEU VIADO ORDINÁRIO!
Os outros participantes dessa patética performance abruptamente interrompida escafedem-se como podem. Alguns escabreados e murchos, machucados e chorosos, fogem para os braços reconfortantes de suas mulheres, mães e namoradas, que certamente os esperarão na volta para casa com mimos e massagens com pomadas curativas nas partes atingidas. Outros não. Para  esses, viciados em viver perigosamente, essa inesperada interrupção a golpes de azeite-de-dendê fervente inocula-lhes bem-vinda dosagem de adrenalina que tornará a farra até o alvorecer de quarta-feira de cinzas experiência ainda mais arrebatadora.

(Continua no próximo post, domingo que vem)

 











































































































































































































































































































































































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