domingo, 19 de fevereiro de 2012

A MORTE E A MORTE DO FILHO DE GANDHY DESGARRADO (OU O VACILO DE SANTA BÁRBARA)


Parte 2
Forma-se então pequena clareira no meio daquela selva de gente que, a essa altura do meio da madrugada de quarta-feira de cinzas, ainda saracoteia altaneira como se a farra estivesse apenas começando. O pipoqueiro e a baiana sonolenta continuam suas rotineiras azáfamas, como se nada tivessem visto, como se nada tivesse acontecido ou estivesse por acontecer em seguida: eram apenas paisagens – e paisagens  inúteis – absolutamente inúteis.
No proscênio dessa pequena clareira surgida no meio dessa selva de gentes que ainda saracoteiam serelepes, estão agora em cena apenas dois  solitários personagens.
De um lado resplandece Matilde das Dores. Vigorosa e altiva, ronda o agora objeto do seu mais absoluto desprezo como o toureiro ronda o touro à beira de lhe dar a estocada fatal. De outro, fera ferida, pisada, amolecida, e entorpecida pelo exaustivo e dilacerante dia-noite, apaga-se, fenece, soçobra o agora destroçado Jorge dos Prazeres.
Ele quer sumir. Desaparecer da face da terra. Configura-se, e percebe-se, mais lúcido do que nunca. Como se aquela súbita tempestade de azeite-de-dendê fervente o acordasse do transe, o desintoxicasse da overdose de álcool, ácido, maconha e éter na qual surfou durante as últimas horas, e o fizesse perceber: algo se desconjuntara nele, algo se partira nele, e o fizera desconfiar, com inteira razão, que tudo estava irremediavelmente perdido.
Ela quer fulgurar. Projetar-se sobre o vazio e sobre o êxtase que a evacuação do mar de lama e de lava vulcânica quente que se materializara havia pouco na frente dela estava lhe proporcionando. Como se, redentora, pudesse impedir que traições dessa natureza não mais existissem; que traidores, como o marido, soçobrassem sob o peso de mulheres corajosas e vingativas como a mulher que a habita nesse  momento, mergulhada na mais funda vontade de machucar, de ferir, de pisar, de denegrir, de destruir.
Jorge dos Prazeres, mãos e braços imóveis ainda esticados para cima, como se petrificados e congelados, encosta-se, entorpecido e anestesiado, na porta central de ferro dobrável do Cine Tamoio. O turbante desconjuntado ainda tenta lhe emprestar alguma dignidade, mas o pau murcho, despencado para fora da cueca, lhe impossibilita qualquer possibilidade de redenção.
O traje de Filho Gandhy, antes imaculadamente branco e agora mais próximo do marrom e do ocre, ainda está puxado para cima até a altura do tórax, exatamente como Ferdinando Loy o deixara.
(Talvez possa se ver em Jorge dos Prazeres, nesse Jorge dos Prazeres absolutamente desconstruído e desconjuntado, em adequado exercício de imaginação  carnavalesca, espécie de São Sebastião gandhificado à espera das flechas que lhe serão desferidas em questão de segundos, e que o prostrarão para todo o sempre).
Matilde das Dores, pelo menos cinco centímetros a mais do que a estatura normal embora continue a usar simplória sandália de dedo sem salto, parece estar com os ombros mais largos e o rosto  vincado ligeiramente mais brilhante e mais luminoso.
O vestido verde-limão com decote em vê comprado em liquidação na Baixa dos Sapateiros por poucos dinheiros valoriza ainda mais a silhueta esbelta que lhe é peculiar e lhe empresta inesperado  ar de pequena grande dama prenhe de ira congelada prestes a se derreter e a imobilizar adversários.
(Talvez possa se ver nela, em adequado  exercício de imaginação carnavalesca, espécie de Joana D’arc vingadora, ávida por disparar flechas certeiras que prostrarão alguém para todo o sempre em questão de segundos.)
Ela (absoluta, resoluta): - Há algum tempo tenho algo para lhe contar, seu viado de merda, e acho que esse é o momento adequado para lhe dizer esse algo que tenho para lhe contar, seu viado de merda.
Ele (prostrado): - Perdão, Matilde, perdão, eu me deixei levar, perdão.
Ela (totalmente incisiva): - Se deixou levar? Sei. Então você não sabia o que estava lhe acontecendo enquanto aquela bicha paraguaia de fala enrolada lhe chupava o pau como se sorvesse suculento picolé de chocolate? Enquanto aquele bando de viados olhava o que vocês faziam e se masturbava? É isso que você quer dizer com ‘me deixei levar’, é, seu porra?
Ele (conciliador): - Bebi muito, me droguei muito. Perdi a consciência do que estava fazendo. Foi isso que quis dizer quando falei que me deixei levar.
Ela (categórica, peremptória): - Poderia até lhe perdoar por essa traição, mas não vou lhe perdoar, não vou lhe perdoar nunca, está me entendendo? O que você acha que uma mulher sente ao flagrar o marido que trata com tanto carinho, que lhe faz cocada preta com gosto do corpo dela, com o gosto das partes azedas dela, se deixando chupar por traveca paraguaia de ponta de rua, de quinta categoria, hein, me diga? Devo ficar feliz? Devo comemorar? Devo festejar, seu viado de merda?
Ele (à beira do choro sincero, sem querer reconhecer naquela mulher que o machucava tanto, aquela outra carinhosa, dulcíssima, que em noites inspiradas lambuza-lhe os testículos com sobras dos doces maravilhosos que faz, de lelê, de quindim, e depois os chupa como se chupasse cacho de uvas maduras): - Você sabe que amo você, não sabe? Que você é a mulher da minha vida, não sabe?
(O pau murcho de Jorge dos Prazeres despencado sobre a cueca vermelha, sempre vermelha, nunca usou nem usará cueca de outra cor,  continua lá, congelado, pateticamente congelado).
Ela (sem se abalar): - Não sei e nem quero saber, seu viado de merda!
Ele (entregando-se totalmente nas mãos dela): - Tenha piedade de mim. Tudo o que quero mais desejo na vida neste momento é voltar pra aquela nossa cama quentinha e dormir nos seus braços....
Ela (interrompendo-o, sem fazer questão nenhuma de ouvir o que o interlocutor continuará a dizer): - Como você reagiria, seu viado de merda, se me flagrasse encostada na porta principal de ferro dobrável do Cine Tamoio sendo chupada por sapatão paraguaia de fala enrolada e cercada por batalhão de lésbicas que enfiavam os dedos nas suas respectivas vaginas e se masturbavam vendo essa bela cena, hein? Como você reagiria, seu canalha? Eu simplesmente reagirei exatamente do mesmo modo que vocês homens reagiriam se encontrassem suas mulheres em situações vexatórias como essa na qual acabei de lhe flagrar. Entendeu?
Ele (totalmente dominado): - Entendi.
Ela (preparando-se enfim para dar a estocada final no touro já semimorto): - Mas o que quero mesmo lhe contar, mas o que quero mesmo lhe dizer é outra coisa. Lembra daquele filho que lhe falei que estava esperando de você e que estaria dentro de minha barriga há coisa de  dois meses?
Ele (tentando injetar-se de algum laivo de vida) : - Você perdeu esse filho e não me falou? É isso?Ela (desferindo estocada final no touro e mexendo a ferida que se abre no touro como se mexesse a panela com que prepara o lelê, o quindim e a cocada preta diariamente, com enorme prazer): - Não perdi esse filho, seu viado de merda, ele está se formando aqui na minha barriga há coisa de dois meses, seu viado de merda. Quem perdeu esse filho, esse filho que está se formando aqui na minha barriga há coisa de dois meses foi você, seu viado de merda!
Ele (sinceramente zonzo, perdido, tonto): - Como assim?
Ela (prolongando ainda mais o prazer que a arrebata e mexendo a ferida do touro abatido ainda mais): - Este filho que está se formando aqui na minha barriga não é filho seu. Eu disse que era, mas não é. É filho de outro Jorge, o Jorge Alencar,  aquele mulato forte,  espadaúdo,  e gostoso que mora bem pertinho de nós, ali na Ladeira dos Galés, e que trabalha em oficina na Rua Djalma Dutra. Lembra dele, seu viado de merda?
Ele (não querendo compreender o óbvio, tentando, pateticamente adiar o final da tragédia): - Você está zoando de mim, tirando sarro da minha cara, esse filho que você está esperando é meu, sim.
Ela (em quase orgasmo): - Não é não. Quem disse que um viado de merda como você pode ser pai de um filho meu, hein? Quem?
Ele (ainda, resgatando-lhe as últimas forças, tentando demonstrar alguma firmeza): - Posso e sou o pai dessa criança.
Ela (enfim mergulhada no mais intenso e formidável orgasmo, boca imersa em profundo mar de saliva): - Você nunca foi o pai dessa criança, ô palhaço. Disse que você era o pai porque senti pena de lhe dizer a verdade, e a verdade é que eu e Jorge Alencar somos amantes desde antes de eu e você nos casarmos. Ele sim é homem com H, e ele que é o pai desse filho que carrego na minha barriga há coisa de dois  meses, seu viado de merda.
Matilde das Dores, em golpe de absoluto e definitivo xeque-mate, desconstrói aquele simulacro de São Sebastião que se cristalizara no corpo de Jorge dos Prazeres naquele antro obscuro de  praça Castro Alves que continua em frenética efervescência: sem sutileza alguma, como se, com a ponta dos dedos, expulsasse formiguinha que teima em entrar numa xícara de café, empurra o pau murcho de Jorge dos Prazeres de volta para dentro da cueca e abaixa a roupa branca de Filho de Gandhy que estacionara há algum tempo na altura do tórax.
Ato final, Matilde das Dores arremata, possessa, absoluta, massacrante: - E tem mais: suma da minha vida. Desapareça. Desinfete. Morra. É isso aí, morra! Jogarei pela janela lá de casa todos os seus teréns. Se quiser pegar alguma coisa desse lixo, mande alguém lá catar os seus cacos na Ladeira do Pepino, está certo, seu viado de merda? Está certo?
A esposa traída, e irada, começa a se afastar em direção à multidão que continua freneticamente mergulhada no mais absoluto êxtase, totalmente alheia, pelo menos até a dali algumas horas, a qualquer possibilidade de dor humana.
De repente estanca, volta-se e repete, como se fosse letal bordão, última estocada no touro, derradeira flecha disparada no tórax de São Sebastião: - Quero que você morra, Jorge dos Prazeres! Quero que você desapareça da face da terra, Jorge dos Prazeres!
Agora sim, Matilde das Dores, esguia, guapa, alma lavada, desopilada, catarse realizada com sucesso, vai embora. Mergulha decidida na massa humana que regurgita ao redor. Some. Sem sequer olhar para trás.
Jorge dos Prazeres despenca sobre o solo coberto de dejetos e chora com todas as (poucas) forças que lhe restam. Urra. Berra. Uiva. Mas não acorda a baiana sonolenta que parece nunca desistir de vender os acarajés murchos que lhe restam. Nem poderia acordá-la. Os  urros e berros e uivos emitidos em tons do mais profundo desespero são apenas pequenos detalhes sonoros a mais na panacéia de sons que se ouve na Praça Castro Alves.
Esvai-se em lágrimas. Desespera-se. Imagina-se enfiado na goela-esgoto aberta ao lado, de onde dois ratos gordos o espreitam.
É então que surge certa luz na mente difusa e dispersa de Jorge dos Prazeres. Pensa contritamente em Iansã/Santa Bárbara. Passa a invocá-la, a buscá-la, a acessá-la. Pede socorro. Pede socorro. Pede socorro. Em vão. Ninguém, absolutamente ninguém, nem Ela, que nunca o abandonara até então, aparece para desanuviar-lhe o cérebro e apontar-lhe caminhos. Mas talvez não haja mais caminhos. Mas talvez não haja mais saídas. Mas talvez não haja mais caminhos. Mas talvez não haja mais saídas. Mas talvez não haja mais caminhos. Mas talvez não haja mais saídas.
Em seguida, o mas  e o talvez desaparecem. A frase se torna então mais afirmativa, mais contundente, mais convincente: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Essas duas frases, como se fossem mantras recorrentes, se replicam, se enfiam por mil e um becos no cérebro difuso de Jorge dos Prazeres, e bimbalham mil e uma vezes entre os neurônios bêbados e drogados de Jorge dos Prazeres. Jorge dos Prazeres também vê essas frases escritas no céu azul escuro sem nuvem nenhuma a lhe macular: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Na abóbada colossal de todas as cores que cobre a Baía de Todos os Santos letreiro macabro pisca e pisca e pisca freneticamente: Não há mais saídas. Não há mais caminhos.
Ouve ainda essas frases serem repetidas à exaustão no refrão de música que aquele cantor popular que tanto gosta toca. Até mesmo a boca da baiana sonolenta sai do torpor em que mergulhava e ela, bocarra escancarada e banguela como se quisesse devorá-lo, decreta: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Jorge dos Prazeres – acuado, pisado, ferido, perdido, sem caminhos, sem saídas – chafurda-se em delírios soturnos seqüenciados.
Dois ratos gordos que até havia pouco apenas o espreitavam, agora escapam, cheios de más intenções e de desejos cruentos, daquela goela-esgoto na qual pensara em se enfiar e se aproximam dos seus pés nus e imundos. Também inclementes, disparam-lhe o mesmo mantra que todos os foliões-sobreviventes da Praça Castro Alves àquela altura também  repetem: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Jorge dos Prazeres retruca: - Há sim, há sim, seus ratos gordos de merda. O caminho, a saída, seus ratos gordos de merda, é o patíbulo, a morte. Ele se repete mil e uma vezes.
Tenta desesperadamente se convencer de que esse caminho, a morte, o patíbulo,  será o caminho que deverá seguir, ser-lhe-á redenção.
Cochicha no ouvido da baiana que voltou a dormir: - A saída, o caminho, baiana xexelenta, é o patíbulo, é a morte.
Em seguida, ao perceber que agora toda a praça Castro Alves é sacudida por milhares de ratos gordos que pulam freneticamente, Jorge dos Prazeres sobe na escada lateral do prédio onde outrora funcionou o jornal A Tarde, e discursa, no mesmo e frenético ritmo da multidão de ratos gordos que se extasiam e transem ao redor: - A saída, o caminho, seus ratos gordos de merda, é o patíbulo, é a morte.
Por mais alto que berre, em vã tentativa de ser ouvido e, quiçá, sacudido, acarinhado, convencido (de que talvez valha a pena continuar vivendo) e amado, nenhum daqueles milhares de ratos gordos que ululam ao redor emite qualquer reação, qualquer sinal de contato, de retorno. É como se Jorge dos Prazeres não estivesse ali. É como se Jorge dos Prazeres já tivesse morrido.
Apalpa-se. Toca-se. Urina-se. Percebe-se. Misto de alívio, de aflição e de repulsa, descobre-se ainda vivo, e que, merda, porra, caralho, talvez ame estar vivo, ame continuar vivo.
Por um momento pensa em apagar, mandar à merda, aquele mantra que continua a se repetir por todas as bocas e que continua estampado no céu estupidamente azul da Baía de Todos os Santos, e pagar pra ver o que o futuro poderá lhe reservar.
Como se adivinhasse o pensamento ligeiramente otimista que assanha poucos neurônios de Jorge dos Prazeres ainda na ativa, os milhares de ratos gordos animados por aquele compositor popular que tanto ama  retumbam e retumbam, de maneira ainda mais intensa que das vezes anteriores:  - Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Jorge dos Prazeres então finalmente capitula. Apruma-se do jeito que pode. Levanta-se tropegamente. Compra dose dupla de pinga na barraca mais próxima. Toma-o de uma só talagada. Parte. Segue em direção à Rua Chile.
Exatamente às margens da escada do Edifício Martins Catharino depara com o que à primeira vista parece ser gigantesca e multicolorida almofada cercada por dois cães famélicos, que a farejam com indisfarçável cobiça.Avança em passos tortos, mas decididos.
Aos poucos, aquela almofada gigantesca e multicolorida ganha contornos mais definidos e talvez mais humanos. Então percebe: o que está estendido naquela sarjeta imunda é o corpo inerte de Ferdinando Loy. Talvez esteja morto. Ou desmaiado. Ou, simplesmente, mergulhado em sono profundo. Dá de ombros. Foda-se. Tenta seguir em frente.
Algo, Jorge dos Prazeres não sabe exatamente o quê, o puxa para aquele corpo estendido no chão. Estará vivo? Morto? Que porra isso importa agora? Todos morreremos um dia não morreremos?
Enfim deixa-se puxar de volta até àquele corpo estendido no chão. Observa-o melhor. Enxerga aquele rosto disforme e casualmente enfeitado por dantesca máscara facial que mistura suores, espermas, maquiagens esmaecidas, e algum sangue.
Pensa em descobrir se ainda há alguma vida a habitar-lhe. Abaixa-se sobre o corpo e tenta perceber se ainda bate algum coração naquela almofada humana multicolorida que ali jaz.
Da mesma forma que antes algo o puxou, Jorge dos Prazeres não sabe exatamente o quê, agora algo o impede de tocar naquele corpo estendido no chão. Ao aproximar a mão do peito de Ferdinando Loy, os dois cães,  incomodados com a presença de terceiro elemento com quem teriam de disputar nacos daquela cobiçada caça, rosnam, e rosnam raivosamente, obstinadamente.
Um desses cães chega a morder o pulso de Jorge dos Prazeres  que, assustado, recua. Então percebe que nada mais poderá fazer. Na verdade, nada mais quererá fazer.
Pensa: Se já não tiver morrido, não demorará a morrer, devorado por esses cães famintos. Dá de ombros.  Diz foda-se novamente. Tenta, mais uma vez, seguir em frente. Antes de tentar seguir em frente, Jorge dos Prazeres percebe-se invadido por avassaladora vontade de vomitar.
Rios de vômito lhe atravessam o esôfago, a goela e a boca - e explodem em vulcânicos jatos de líquido viscoso, asqueroso, fétido, rançoso que  assustam até mesmo os dois famélicos e ferozes cães, que, levemente temerosos,  param por um momento de farejar as partes do corpo inerte de Ferdinando Loy e lhe olham com raiva e desprezo profundos.
Após esse caudaloso vômito, Jorge dos Prazeres se sente   mais leve. Como se deixasse naquela esquina da Rua Chile algo que não devesse levar para onde partiria, embora não soubesse exatamente para onde partiria depois de fazer o que imaginava fazer. Mas gosta da sensação de ter se livrado de algo incômodo que não gostaria de levar em alguma longa viagem da qual jamais voltaremos.
Cruza com as primeiras multidões cansadas que parecem manadas voltando para o matadouro. Voltam para casa depois de mais um carnaval que acaba. Olha-as com imenso tédio e alguma piedade e alguma compaixão.
Tem certa pena desse povo exaurido pela farra que daí a pouco terá de voltar à vida real e enfrentar a vida de merda de todos os dias. Jorge dos Prazeres chega enfim à Praça Municipal.
Vê-se então frente a frente com aquele fascinante, quase pornográfico de tão fascinante, Elevador Lacerda. Ao avistá-lo pela primeira vez, ainda criança, puxada por senhora negra que carregava Bíblia sebosa entre as mãos, percebeu, intuiu: aquele ícone indelével da cidade de Salvador ser-lhe-ia um dia palco fundamental na vida.Era aquela a hora. Era aquele o lugar. Era naquele ícone indelével da cidade de Salvador onde Jorge dos Prazeres encenaria o epílogo, o desfecho, o final, o the end dos filmes de faroeste.
Decide: não haverá arrependimentos nem autocomiserações. Céus e terras se irmanam de novo naquelas faixas inesperadas surgidas sobre o mar, e naqueles milhares de vozes que lhe repetem, exaustivamente, que o tempo destinado para Jorge dos Prazeres viver sobre a terra está próximo de se esgotar: Não há mais caminhos. Não há mais saídas.
Pensa em Matilde das Dores. Pensa no filho-que-não-era-filho que pulsa na barriga da mulher que de fato amara, e que, merda, ainda ama. Pensa em Nelson Suave, Rufino Trindade e Dodô da Dedé, os amigos dos quais se perdeu naquele dia inusitado. Lembra das raias que empinou com eles nas margens do Dique do Tororó em tempos idos.
Sobe em mesa da Sorveteria Cubana, ao redor da qual milhares devem ter se sentado e saboreado deliciosos sorvetes e bebido encorpados copos de coco-espumante. Usa-a, à guisa de escada, para galgar a parede lateral do Elevador Lacerda.
Imagina-se subindo em alguma árvore frondosa dos tempos da infância em São Tomé de Paripe, talvez mangueira de onde sempre descera carregado de  mangas maduras que comia com casca e tudo.
Em cima da marquise que se projeta sobre a Praça Municipal Jorge dos Prazeres se acocora por instantes. Assiste, com alguma nostalgia, a batucadas tardias que ainda puxa pequenas e já-nem-tão-frenéticas multidões-manadas, e a foliões-bois insaciáveis que tentam desesperadamente adiar o fim do transe.
Gosta da idéia de que não terá  mais de enfrentar, no ano seguinte, aquele doloroso momento de transição entre o desvario e a realidade que as manadas-bois têm de atravessar todos os anos.
Não haverá mais carnavais. Não haverá mais Matildes-das-Dores. Não haverá mais filhos-que-não-eram-dele-na-barriga-da-mulher-que-amava-e-que-merda-ainda-ama. Não haverá mais quartas-feiras-de-cinzas. Não haverá mais noites de domingo afogadas em tédio profundo. Não haverá mais madames que devolvem o móvel encomendado e feito exatamente do jeito que a madame havia pedido. Não haverá mais choro nem vela.
Prático assim. Simples assim. Por que não pensara nisso antes? Avista um Filho de Gandhy igualmente desgarrado que nunca vira antes, mas que parece conhecê-lo.
Do início da Rua da Misericórdia, abraçado a mulata pra de boa, acena-lhe e saúda-lhe: - Até ano que vem, meu irmão. Ajayô! Ajayô!
Também não haverá ano que vem. Também não haverá mais acenos de mão como aquele. Também não haverá mais ajayôs. Também não haverá mais nada, não haverá mais porra nenhuma.
Com a agilidade do garoto que andava pelos telhados de casas de Paripe, destelhando-as especificamente na área dos banheiros para, assim, flagrar as vizinhas nuas e se masturbar vendo ao longe a plácida praia de São Tomé, caminha pelas laterais do Elevador Lacerda.
Galga em seguida outra parede lateral. Mais uma. Mais outra. E outra mais. Enfim chega na testa, na cabeça da máquina, do Elevador Lacerda.
Não pode impedir: grito de prazer e júbilo lhe escapa dos grossos lábios.
Olha de cima: enxerga pessoinhas que se arrastam como se fossem formiguinhas preguiçosas. Ou boizinhos preguiçosos. Sente-se na proa do mundo. Não durará muito, pensa, mas a sensação de estar nesse lugar é indescritível.
Respira fundo. Olha para o céu azul, de azul cada vez mais claro, mais luminoso, à procura de alguma nuvem que o aconchegue. Mas não há nuvem alguma no céu. Não pode se impedir de pensar, e pensa: Iansã, que habita densas nuvens de chumbo, deverá estar por outras paragens nesse início de quarta-feira de cinzas, 8 de fevereiro de 1978, e não quer abrir suas aconchegantes asas sobre mim, ai de mim.
Ainda assim (onde estiver, Ela me ouvirá), Jorge dos Prazeres reza: Ó Santa Bárbara que sois mais forte que as torres das fortalezas e que a  violência dos furacões fazei com que os raios não me atinjam os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abale a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que eu possa enfrentar todas as tempestadesde fronte erguida e rosto serenopara que, vencedor de todas as lutascom a consciência do dever cumprido possa agradecer a vós, minha protetorae render graças a Deus este Deus que tem poder de dominar o futuro das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Santa Bárbara, rogai por nós.
Em seguida Jorge dos Prazeres abraça-se. Repete várias vezes: Ficai  sempre ao meu lado, minha Santa Bárbara!
Olha os telhados toscos e as casas que nem telhados toscos têm da Ladeira da Montanha. Avista com ternura os pequenos barcos atracados na Praça Cayru. (Quem sabe aquele boizinho lá longe dentro daquele barquinho lá longe não seja o seu Pedro Suave, pai do amigo Nelson Suave, partindo para mais um dia de pesca?).
Procura de novo alguma nuvem de chumbo onde possa divisar a figura amistosa e querida de Iansã/Santa Bárbara.
(Mas o céu continua implacavelmente azul).
Então Jorge dos Prazeres abre os braçosem cruz.
(Não pode deixar de lembrar o que professora de português, que o amava muito, do curso primário que talvez se chamasse Isaurinha costumava lhe dizer sempre: - Nós todos carregamos nossa própria cruz).
Grita Eparrei, Iansã.
(Joga-se no vazio).
(Antes de se esfarelar no solo, Jorge dos Prazeres cruza com casal de gaivotas, que o olham sem entender nada. Absolutamente nada.).

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