domingo, 12 de fevereiro de 2012

AGONIA E ÊXTASE DE UM FILHO DE GANDHY DESGARRADO (OU QUANDO A BAÍA ERA COM H)


PARTE 1

A vida tem dessas coisas inexplicáveis, dessas coisas que não dão para entender por mais que matutemos – você sabe exatamente do que estou falando, caro leitor. Ninguém sabe determinar exatamente o motivo que levou o marceneiro Jorge dos Prazeres a se desgarrar do Afoxé Filhos de Gandhy nessa tarde de terça-feira de carnaval. O mulato de olhos cor de mel e corpo magistral esculpido na lida braçal e diária de criar peças em madeira se deixou levar. Mergulhou por outros caminhos, caminhos que não fazia a mais remota idéia de onde iam dar. Talvez o destino misterioso e inexorável, ou seja lá que diabo fosse, o tenha puxado pela mão e o tenha levado a percorrer a trilha que percorrerá nesse fatídico dia-noite de fevereiro. Talvez.
Jorge dos Prazeres saíra da casa número 65 da Ladeira do Pepino por volta do meio-dia. Despedira-se da esposa, geniosa mas loucamente apaixonada, Matilde das Dores (Até mais tarde, minha querida. A gente se encontra por volta das 8 horas da noite naquela barraca que vende aquela passarinha que você tanto aprecia, que fica logo ao lado do Cine Tamoio. Certo meu amor? De lá a gente vai para a farra e dorme em algum hotel barato perto da Barroquinha. Combinado?).
Em trôpega mas cadenciada seqüência, borboleteou por diversas biroscas do caminho (Mercado das Sete Portas; Mercado de Santa Bárbara; Bar do Seu-Messias; Bar Vermelho; Bar Redondo; Amarelinho; Beirute; e onde houvesse cachaça para se encharcar e para se chafurdar) até chegar ao Terreiro de Jesus. Lá  deveria aguardar o afoxé Filhos de Gandhy  sair. Lá deveria também reencontrar os amigos de fé, irmãos, camaradas, Nelson Suave, Rufino Trindade e Dodô da Dedé. Deveria. Mas não aguardou. Deveria. Mas não reencontrou.
Jorge dos Prazeres se afogara em goles vorazes de cachaça pura e, já completamente embriagado, partira para o que dizia ser a sobremesa apetitosa: talagadas de cravinho sorvidas em goles gulosos em boteco mais-sórdido-impossível da Ladeira da Praça. Sobremesa porque era docinha e – já começando a enrolar a língua, trocando segredos com desconhecido que acabara de descobrir em pleno ato de embebedar-se – e apetitosa porque tem gosto parecido com o da cocada preta que minha mulher faz pra mim, e só pra mim, e que tempera especialmente com o cheiro dela. Não sei bem como faz, mas o gosto do corpo dela, das partes azedas dela, me vem à boca quando como os pedaços da cocada preta  que faz pra mim.
Então Jorge dos Prazeres afundou-se no gosto da cachaça. No gosto do cravinho, que tinha o gosto da cocada preta que a mulher Matilde das Dores fazia e que tinha o gosto do corpo e das partes azedas da mulher amada. Ouviu de muitas bocas alheias é hoje só, amanhã não tem mais. Não  teve alternativa a não ser gozar, gozar e gozar. Relaxou, e aproveitou.

Entrega-se então, definitivamente, sem mais resistência alguma, a  onírico e idílico éter no qual navega entre a consciência e a inconsciência, entre o ser e o não-ser, entre o estar e o não-estar. Os amigos Nelson, Rufino e Dodô que se fodessem, que-se-fo-des-sem!  O afoxé Filhos de Gandhy também, que se fodesse, que se fo-des-se! 
De vez em quando capta, por réstia de olho que ainda lhe sobrara, que ainda não naufragara completamente no álcool, a figura de alguém de branco igual a ele, branco e radiante feito ele, desfilando com garbo e esplendor como ele deveria desfilar, logo ali, ou logo acolá, ou logo além. Não distingue rostos, mas imagina o belo rosto dele projetado naqueles belos rostos alheios que encimam fantasias iguais às dele. Resta-lhe então a miragem de se afundar no transe de que todos os filhos de Gandhy têm a cara dele, o rosto dele, o pênis dele, o jeito dele.
O rosto de Jorge dos Prazeres, no transe de Jorge dos Prazeres, não é mais um só. São centenas. E essas centenas de rostos pipocam aqui, acolá e além. Espargem gotas de seiva de alfazema  e de saliva em bocas que parecem vaginas de tão vorazes e em seios fartos de mulheres zonzas de desejo de serem possuídas pelo maior número possível de Jorges-dos-Prazeres  nesse último dia de carnaval.

Desgarra-se de novo do resto da manada. No ritmo lento e lúdico da  embriaguez profunda, mergulha o cérebro, já com a consistência das esponjas, no desejo soberano de não querer pertencer a nada. De não querer pertencer a ninguém. A porra nenhuma. A manada nenhuma.  Reage com indiferença, e eventualmente raiva, às mulheres que lhe imploram que lhes jogue seivas de alfazema, ou que, ladras vorazes, lhe roubam à revelia gulosos beijos de língua.
Jorge dos Prazeres não sabe, não tem a mais remota noção, de onde vêm essas mãos e essas bocas gulosas. Simplesmente parecem surgir do nada, de lugares nenhuns. Materializam-se em apalpadelas fortuitas no seu baixo ventre, nos seus glúteos bem fornidos, em frases que lhe celebram a beleza: - Meu Senhor do Bonfim, esse Filho de Gandhy é gostoso demais. Eu quero dar procê! Eu quero dar procê! - (esbraveja quarentona sapeca de corpo flácido e seminu que, para o já etéreo e nauseado Jorge dos Prazeres, tem a consistência das gelatinas,  e das assombrações).
De repente, também surgida do meio do nada, boca negra feminina,  fescenina, se gruda à boca dele, e nela derrama algum líquido não identificável de imediato. Poderia ser qualquer tipo de beberagem. Uísque. Vodca. Talvez vômito. Ou simplesmente saliva misturada a doses residuais de álcoois e líquidos seminais diversos. Empurra a invasora com ojeriza, com violência, mas ainda tem tempo de ouvir: - Eta Gandhy gostoso! Queria ter um desses lá em casa!

Respira aliviado, ufa!, quando pequena, e bem-vinda, clareira surge em algum lugar parecido com a Praça da Sé (ou seria Praça Municipal?) e pode, enfim, sair do sufoco anterior por alguns instantes. Só por alguns fugazes instantes. Jorge dos Prazeres, com  experiência de muitos carnavais, sabe muito bem: clareiras no meio da multidão – que não sejam provocadas por brigas em que tamboretes cruzam os ares como se fossem toscos mísseis de madeira – são cada vez mais improváveis, no cada vez mais improvável carnaval de Salvador.

Fim da trégua. Perigo à vista. Do nada, tudo parece surgir do nada,  aparece grupo de mulheres em fúria, libidos em fúria, tudo em fúria. Quase totalmente encobertas por folgadas mortalhas pré-abadás, lhe amassam a genitália como se manipulassem massa de fazer abará. Pensa, se é que naquele estado de decomposição etílica, Jorge dos Prazeres poderá pensar alguma coisa, em dizer, em gritar o meu pau não é massa de fazer abará, caralho! Mas não. Deixa-se imolar. Cala-se. Deixa-se apalpar. Deixa-se amassar. Deixa-se sangrar. Deixa-se esporrar.

Essas frenéticas mulheres em fúria que o atacam parecem querer mais, bem mais, do que simplesmente pegar no pau do Gandhy, como vociferara uma dessas excitadas e desvairadas mocetonas no início do estupro. A que parece ser chefe dessa quadrilha voraz de valentes amazonas alimentadas a abará e acarajé e a drogas não identificadas diversas, urra, uiva, berra, para as outras estupradoras que a seguem e a imitam: - A gente precisa ver o pau de Gandhy. A gente precisa chupar o pau de Gandhy. A gente precisa ser penetrada pelo pau de Gandhy!
Enquanto isso, estupradora que guarda sob a calcinha mamadeira cheia de bebida de origem desconhecida e de cor não exatamente definível (talvez mijo; talvez rum com coca-cola; talvez puro álcool zulu submetido a imersões de bagas de tamarindo), retira-a de improvisado cofre-calcinha. Cena seguinte: enfia-a, sem dó nem piedade, na boca do pobre, desvalido e estuprado Jorge dos Prazeres.
Indefeso, sem reação possível, a boca do pobre Jorge dos Prazeres deixa-se penetrar por aquela mamadeira evidentemente tardia;  evidentemente mal-intencionada; evidentemente fálica. Aquela dose a mais de álcool no sistema sanguíneo desse Filho de Gandhy desgarrado tem o mesmo impacto que se terá ao pincelarmos com tinta preta a superfície preta de alguma tela preta. Nada sobre nada. Tudo sobre tudo. Redundância absoluta. Apenas detalhe a mais. Só. Somente só.
A esse Jorge dos Prazeres desgarrado do resto da manada, armado do estoicismo dos santos, dos bêbados e dos drogados, só resta capitular à invasão-dessas-fêmeas-corpo-dele-adentro. Em algum canto escuro da Praça da Sé (ou seria da Praça Municipal?) que recende a mijo, a merda e a abará, essas famélicas amazonas derramam-lhe todas as doses de libido que as abarrotam até a tampa. Com habilidade magistral, como se fizessem aquilo desde criancinhas, desde os ventres maternos, esparramam-se em formidável banquete sexual que certamente contarão, orgulhosas e briosas, aos netos e netas em algum lugar do futuro. 
Após o lauto banquete essas libidinosas amazonas lambem os beiços, lavam as vaginas com os mesmos líquidos que as embriagam, e, insaciáveis, praticam as seguintes ações de rapinagem: 1) Arrancam-lhe os colares branco-azuis, as meias-um-dia-azuis, as sandálias de couro brancas, até mesmo a rosácea em tons de paetê azul que, à guisa de mirante, encima o turbante ghandyano. 2) Bebem  todo o vidro de seiva de alfazema que Jorge dos Prazeres carrega. – É bom pra curar azia – jura a mais amazona das amazonas. 3) Enfiam as mãos no embornal branco que Jorge dos Prazeres carrega a tiracolo, e dali arrancam aproximadamente trinta dinheiros.
Precavidas, supersticiosas, deixam-lhe incólume o turbante. Atendem ao pedido de uma dessas amazonas, que, inundada de repentina culpa,  sentencia: - Roubar turbante de Filho de Gandhy dá uruca. Não mexam nisso! Deixa queito! Satisfeitas e felizes, completamente saciadas, escapolem pela Ladeira da Praça e se esgueiram pelos becos e vielas laterais à Baixa dos Sapateiros. Escafedem-se.

Fosse outro homem, com menos, digamos, energia vital, o carnaval de Jorge dos Prazeres acabaria ali e naquela hora, pós-terremoto, pós-vendaval, pós-bacanal, pós-estupro, pós-apocalipse. Mas infelizmente o carnaval de Jorge dos Prazeres não acabará ali e naquela hora. Na verdade, o carnaval-inferno de Jorge dos Prazeres apenas se configura, apenas se origina no céu que desponta no horizonte, imerso em espetaculares tons de vermelho, rosa e azul, que se descortina por trás da Igreja da Misericórdia, ao pé da qual Jorge dos Prazeres tenta, embora não devesse, emergir das sombras, e prosseguir.
Antes que escape da sarjeta onde as amazonas ninfomaníacas o afundaram, lembra vagamente que talvez tenha mulher chamada Matilde das Dores (Ou seria Ângela das Dores? Ou Dalva das Dores? Ou Roberta das Dores? Ou Isaurinha das Dores? Ou Aracy das Dores? Ou Fernanda das Dores? Ou Bethânia das Dores? Ou Jussara das Dores? Ou Elizeth das Dores?), talvez grávida dele, e que talvez tenha marcado encontro com ele em algum lugar do centro da cidade que não tem a menor idéia de onde seja. Lembra também que talvez se chame Jorge dos Prazeres (Ou seria Nelson Suave? Ou Dodô de Dadá? Ou Rufino Trindade?), e que talvez  um dia tenha sido homem e não um rato, um rotundo e abjeto rato de esgoto.

A fuzarca não pára. Antes que outro grupo de mulheres insaciáveis que correm em direção dele o alcance, Jorge dos Prazeres muda de rota. Escapa pela Rua da Ajuda e pela Rua Rui Barbosa. Sempre como se flutuasse. Sempre como se fosse ectoplasma dele mesmo, e que, sem corpo e sem alma, levitasse sobre colossal e retumbante pântano. Não sabe para onde ir. Mas sabe: - Tenho de ir em frente. Está escrito.
Algo o empurra para o abismo. Algo o obceca. Algo o arrebata. Mas nem sequer desconfia o que esse algo possa significar. Mas vai. Vai. Vai. Tem de ir. É mais forte do que ele, e não é difícil ser mais forte do que esse pobre-diabo que se arrasta como pode entre esses homens e essas mulheres em catártica liberação de instintos.

Até que, após se livrar de outras centenas de mãos e bocas que tentam abocanhar-lhe cabeça, tronco e membros, Jorge dos Prazeres se vê aos pés de casal, de homem e de mulher seminus. Levemente acima do peso, cristalizam-se em forma de estátua cinzenta ao pé do pedestal de outra estátua maior também cinzenta: sujeito cabeludo que estende a mão direita sobre a praça em transe, como se a abençoasse, em cuja base está escrito: - A Bahia a Castro Al...
Antes que leia o resto do sobrenome Alves, mão alheia invade-lhe a boca. Nela deposita ritualisticamente, como se fosse pepita de ouro resplandecente posta a brilhar no sol a pino de meio-dia da areia de Itapoã, pequena, quase imperceptível, pílula. Jorge dos Prazeres olha para trás, e se apavora um pouco com o que vê, mas não muito. Àquela altura o mais antinatural já lhe parece tão natural quanto o cachorro magro correr atrás do gato magro e o gato magro correr atrás do rato gordo. Pura rotina.
É assim, com colossal ar de tédio, como se aquilo tudo começasse a cansá-lo, mas a cansá-lo muito, mas não a ponto de impedi-lo de seguir em frente, dê no que der, é hoje só e amanhã não tem mais, que esse Filho de Gandhy desgarrado se vira e depara com belo rosto de homem que, a milímetros do rosto dele, sussurra-lhe: - Sempre quis enfiar ponto de ácido na boca de um Filho de Gandhy. Acabei de fazê-lo. Sempre sonhei em beijar na boca um Filho de Gandhy. Farei isso agora!
Minúsculas lascas de reflexão tentam se imiscuir nas cada vez mais lentas ondas cerebrais de Jorge dos Prazeres, nas quais neurônios vagarosos pulam de lugar para outro como se fossem vaga-lumes bêbados que perdem lentamente o poder de piscar. Pergunta-se, ou se esforça o máximo que pode para se perguntar em absoluto ritmo slow motion: - O que diaaaaaaabos me faaaaaaaaaalta ainda acontecer nesta terça-feira de carnavaaaaaaal?
A resposta, ao contrário, virá, rápida, ágil, vibrante, em forma de colossal e viril língua masculina que lhe é enfiada boca adentro, sem pedir licença, sem perguntar se tem ou não gente lá dentro, sem querer saber se será bem-vinda ou não, simplesmente invadindo tudo, arrebentando tudo. Nosso Filho de Gandhy desgarrado não tem como escolher entre a e b, entre x e y, entre Marlene e Emilinha, entre Bahia e Vitória, simplesmente se deixa levar, como um cego se deixa puxar pelo braço para atravessar a rua quando o sinal verde abre para os pedestres, seja o que Deus quisesse, seja o que tivesse de ser, seja para que caminho levasse, seja em que porra desse aquilo tudo, existisse ou não existisse amanhã. 
Esse apaixonado beijo aos pés da estátua de Castro Alves cercada por gentes de todos os sexos que se esvaem admiravelmente em notável celebração de prazeres não dura mais que meio minuto. Da mesma forma que entrou, sem pedir licença, sem bater, sem perguntar se tinha gente lá dentro, a língua desse homem de olhos azuis de não mais de 30 anos sai, sem vacilações, da boca de Jorge dos Prazeres.
Esse homem branco de olhos azuis de não mais de 30 anos retira a língua de onde recém-acabara de enfiar, lambe os beiços, e comenta, em tom inusitadamente profissional: - Foi ótimo beijar você. Como disse, tinha o sonho de beijar um Filho de Gandhy na boca. Realizei. Pronto. Estou feliz. Pleno. Realizado. Adeus!
O homem branco de olhos azuis de não mais de 30 anos se afasta e, sem sequer olhar para trás, mergulha na multidão que, olhos negros cruéis tentadores, balança o chão da praça, ô ô ô ô.

É possível que Jorge dos Prazeres tenha sentido irrefreável vontade de chamar esse homem de volta e de lhe pedir, até mesmo implorar, que o beijasse de novo, que lhe enfiasse a língua boca adentro de novo. Antes que essa vontade se materialize, o casal formado por  homem e mulher seminus, ambos levemente acima do peso, cristalizados em forma de estátua cinzenta ao pé do pedestal de outra estátua maior, descristaliza-se. Ato contínuo, puxa Jorge dos Prazeres para o colo de ambos, cobrem-no de vorazes beijos de língua, e o afagam com todas as mãos possíveis e imagináveis.
Ao mesmo tempo, Castro Alves, o poeta em pessoa, a estátua encarnada, descera do pedestal onde se instalara desde que Jorge dos Prazeres se entendia por gente e se dirige impávido em direção a ele, com inegável pitada de lascívia a lhe iluminar os olhos. Para a poucos centímetros do casal que acabara de se descristalizar, e lhes beija nas bocas com a avidez típica dos que passam muito tempo sem experimentar as delícias da carne, sem exercitar os delírios da carne.
Em seguida, ordena-lhes que lhe arreiem as calças (‘Rápido, rápido! Tenho pressa!). Calças lhe são arriadas (o que deixa à vista estrondoso membro viril em riste, emoldurado por testículos avantajados e pentelhos negros, anelados e fartos), mas ainda tem paletó, gravata e colete mantidos no lugar, o que dá ao poeta que acabara de se descristalizar aparência algo anedótica.
Jorge dos Prazeres quase sorri. Mas não tem tempo. Ouve então a seguinte ordem, dita em tom absolutamente imperial: - Meu caro senhor Jorge dos Prazeres. Espero que não tenham acrescido esse Dos-Prazeres ao seu nome impunemente, por mero acaso.  Sentir-me-ia profundamente lisonjeado se o senhor se dignasse a chupar-me, a chupar-me até os bagos. O senhor me faria essa gentileza, esse obséquio, essa delicadeza?
Jorge dos Prazeres percebe ainda: 1) Além das estranhas cores que marcam o anoitecer dessa última noite de carnaval, tons de verde-cítrico mesclam-se a nuvens ora vermelhas, ora amarelas, ora azuis. 2) O mar troca de lugar com o céu, o mar agora tem nuvens; o céu, ondas.  3) Os milhares de pessoas que balançam o chão da praça imploram-lhe, rogam-lhe, suplicam-lhe: - Chupa! Chupa! Chupa!
Jorge dos Prazeres, sem titubear, obedece a essas súplicas. Mergulha sem medo de ser feliz na barafunda dos anelados e negros caracóis dos pentelhos do poeta dos escravos.

Foi quando (quase) despertou do transe. Vê-se então puxado por homens e mulheres, que, ludicamente, como se brincassem de pega-pega,  tentam tirá-lo do alto daquele monumento  - (por quanto tempo Jorge dos Prazeres terá ficado ali abraçado àquela estátua com quem teimava em querer fornicar nunca se saberá; afinal de contas, ninguém era de ninguém naquela praça Castro Alves do final dos anos 70; ninguém dava a menor trela se o cara ao lado fazia sexo oral com aquele conhecido ator de novelas da Rede Globo; ou se o cara bem em frente esfregava cocaína na gengiva e, ao mesmo tempo, comia o rabo daquela célebre cantora da mpb que diziam ser lésbica; diante disso, quem estranharia o fato de algum maluco cismar em fazer sexo oral com a estátua do poeta, quem, me diga caro leitor, quem?)
Lá do alto Jorge dos Prazeres se vê e quase se reconhece: tem a roupa de Filho de Gandhy suspensa até a altura do peito e as cuecas vermelhas abaixadas até o tornozelo (o que deixa à vista estrondoso membro viril em riste, emoldurado por testículos avantajados e pentelhos negros, anelados e fartos) e abraça com volúpia a estátua do poeta Castro Alves como se abraçasse a mais lúbrica de todas as criaturas do universo.
Simulacro de operação-resgate materializado, simpaticamente submetido por seus salvadores a ritual de fumaça que se compunha do consumo coletivo de cigarros de maconha de vários calibres, Jorge dos Prazeres anda por entre as pessoas, todas tão ou mais drogadas que ele, como se atravessasse espectros.

Há música alucinante explodindo ao redor, pode perceber isso agora, e aquelas milhares de cabeças que pulam goticamente em direção ao céu poderão ser explicadas por certo som extático de guitarras-elétricas  e de vozes que repetem versos sem aparentemente sentido algum, como se fossem índios a celebrar mítica e diáfana dança-da-chuva no seco, árido e inóspito deserto americano. Na visão distorcida pelo álcool, pelo ácido e pela maconha, nada, nem ninguém, parece ser ainda capaz de chocar Jorge dos Prazeres àquela altura do apocalipse. Nada.
Mas ninguém nunca saberá o que acontecerá no dia de amanhã, sequer no  minuto seguinte. No minuto seguinte Jorge dos Prazeres depara, em lisérgico périplo pelas imediações da escadaria do Palácio dos Desportos, com súbita aparição que parece versão gay de Cérbero, o cão de três cabeças que protege as portas do inferno. Tem - Jorge dos Prazeres não pode deixar de sentir, a súbita aparição está a milímetros de seu aquilino e apolíneo nariz – hálito capaz de derrubar exércitos e de aterrar gigantes. Nele misturam-se, podem-se captar, altas doses de lança-perfume; néctares residuais provenientes do consumo ávido de maconha e cocaína; e certo aroma fétido  que provavelmente remete aos muitos pênis mal lavados que teria abocanhado nas últimas horas.  
A súbita aparição usa, com a pompa típica possível de imperatriz da Pérsia que acabasse de ser atropelada por dois caminhões carregados de batatas, beterrabas e repolhos: a) Bata de desbotada inspiração asiática, em cuja parte frontal pode ser vista efígie de Che Guevara que ostenta inusitado chapéu à Greta Garbo, e lábios carnudos ressaltados por generosa dose de batom carmim. b) Botas vermelhas de saltos altos e canos longos que  lhe vão até o meio das pernas. c) Tiara amarfanhada e algo disforme em tons dourados que teima em fixar-se em cocuruto absolutamente ovóide que emoldura olhos lilases que lhe fogem das órbitas, descarrilados e tortos. d) Longos colares compostos por objetos diversos que variam de afiados dentes de tigre a figas douradas, e até mesmo prateada estrela-de-Davi coberta de paetês coloridos. e) Maquiagem distorcida que lhe aplica estranhezas tipo sombra verde-limão em uma pálpebra e sombra amarelo-ouro na outra pálpebra etc, etc, etc.
Ao pé da escadaria do Palácio dos Desportos, atulhada de toneladas de gays fantasiados ou apenas completamente nus, essa estranha, e súbita, aparição ensopa a bata de desbotada e vaga inspiração asiática com fugazes jatos de lança-perfume. Em seguida oferece a mancha ainda úmida aos narizes vorazes dos que se amontoam à sua volta como zumbis no cio – e, em questão de segundos, esses zumbis no cio lhe deixam a bata de desbotada e vaga inspiração asiática absolutamente seca.

A súbita aparição se dirige a Jorge dos Prazeres em idioma não facilmente  identificável. Provoca-o em labiríntica mistura de péssimo espanhol e português ainda pior: - Jo soy mix de Che Guevara e Sarita Montiel. E tu, guapo Gandhy, quien és? Non quieres cheirar mi bata indiana ensopada de lanza-perfume e depois me  enrabar, enfiar-me a verga dura e longa que tiene entre tus  pernas no meu culo? Mi nombre es Ferdinando Loy, e tu como te chamas?
Jorge dos Prazeres não entende exatamente o que acabara de ouvir. Ou melhor, não tivera tempo de entender o que ouvira. Antes que qualquer sentimento de culpa ou de nojo o invada, Ferdinando Loy, que certo jornalista baiano apelidara nas páginas de jornal local de a pomba-gira portenha, puxa-o pelo único colar-branco-azul-de-Gandhy  que lhe restara, e o obriga  a, intrepidamente e temerariamente, atravessar a Praça Castro Alves em direção ao cine Tamoio.
No meio do caminho havia menino que era puxada pela mão da mãe, e que entortara perigosamente o pescoço em direção àquela bizarra entidade que se movia com a languidez das gatas e das putas. Ferdinando Loy capta esse olhar infantil, e capricha na performance para continuar a atrair esse olhar infantil. Vira-se de costas. Segura com mão esquerda o colar-branco-azul-de-Gandhy com o qual puxa a caça mais recente. Suspende com a mão direita todos os panos que o cobrem. Isso mesmo, caro leitor: escancara ao olhar cada vez mais fascinado do garoto ancas glacialmente brancas e roliças, e barrocas camadas de gordura.
Não satisfeito, Ferdinando Loy, sem nunca deixar de puxar pela coleira improvisada a caça recém-abatida, olha com lascívia e desvario para aquele garoto que funde fascinação e medo naquela tez morena e cálida, e que certamente nunca esquecerá essa cena absolutamente felliniana, e lhe dispara: - Nunca em toda su vida verás culo tão lindo quanto o culo de papito. Nunca!
Foi a senha para a mãe zelosa arrastar o filho, com súbita  e desesperada diligência, daquela orgia desenfreada que parecia finalmente chegar aos píncaros mais absolutos. Puxa o rebento em direção ao Palace Hotel, aos berros: - Vamos embora daqui, Misael. Isso aqui é o refúgio de Satanás. Vade retro! Vade retro!
Diante dessa apocalíptica conclusão, Ferdinando Loy, ainda expondo a bunda alva e carnuda e as barrocas camadas de gorduras,   reage à altura: - Aqui és de fato o refúgio de satã. Per supuesto, jo soy satã, jo soy satã! JO SOY SATÃ!

Emoldurado por agora amassado e roto, mas ainda imponente, turbante, o rosto de Jorge dos Prazeres exibe olhar que parece imerso em profundo pânico. Mas também se pode perceber nesse  rosto espetacularmente belo desabrida avidez em descobrir onde tudo aquilo poderá levar-lhe ao se deixar puxar pela coleira-colar por essa pomba-gira portenha, como se fosse cãozinho de estimação de bicha coquete.
Ao chegar na outra margem da praça Castro Alves, sob a placa luminosa do cinema que anuncia a exibição da reprise de Aeroporto 77, com Jack Lemmon e Christopher Lee, Ferdinando Loy e Jorge dos Prazeres formam – mesmo em meio a toda aquele apoteótica fauna, em meio a todo aquele apoplético desbunde – inusitada e improvável dupla.
Dupla mais inusitada e improvável ainda pelo fato de a língua  voraz de Ferdinando Loy teimar em lamber nervosamente todos os poros e todas a concavidades e convexidades do corpo de Jorge dos Prazeres em cena aberta. O estranho casal, em plena troca de líquidos e carícias, se limita ao sul: por carrinho de pipoca que exibe pipoca de péssima aparência e fétido hálito; ao norte: por baiana-do-acarajé sonolenta que teima em querer vender, embora ninguém mais os compre àquela altura dos embalos orgíacos, abarás, acarajés e beijus requentados, tão recomendáveis de serem digeridos quanto os cadáveres que então superlotam as gavetas geladas dos necrotérios da cidade.

Jorge dos Prazeres parece ter abandonado qualquer resquício de vontade pessoal e qualquer resquício de dignidade. Deixa-se manipular como se fosse mamulengo manipulado por titereiro priápico e devasso. Na cabeça encimada por aquele turbante agora murcho e chocho submerge cérebro pastoso lentamente cozido ao longo do dia por drogas e emoções diversas dos mais variados e potentes calibres. (Não fosse a aparição de Ferdinando Loy que, nesse exato momento, alheio ao frenesi em volta, enfia a cabeça de cabelos longos mas ralos por baixo da roupa de Gandhy de Jorge dos Prazeres, talvez estivesse com a cara enfiada em sarjeta abjeta qualquer da Barroquinha ou da Ladeira da Praça,  deixando-se picar por ratos gordos e gulosos).
Olha para aquela estranha figura que se debate sob as suas vestes brancas – tentando desesperadamente, por meio de vigorosos movimentos de respiração boca-a-pênis, trazer-lhe de volta algum tipo de vida, qualquer tipo de vida que fosse – não com repulsa ou asco, sentimentos inconcebíveis no grau de desvario em que se atolara, mas com profundo distanciamento. Como se essa estranha figura sugasse  não o falo dele, mas o falo do cara ao lado que se masturba captando e pegando as sobras da cena em que Filho de Gandhy se deixa chupar por travesti paraguaio (conforme comenta essa estranha figura com alguém que igualmente se masturba e que igualmente lança para Jorge dos Prazeres seguidos e vorazes olhares de cobiça). 
Incansável, Ferdinando Loy obtém afinal algum sucesso com o frenético movimento de cabeça que faz sobre o pênis de Jorge dos Prazeres. O que inicialmente ocupou-lhe a boca como se fosse flácido e reciclável pedaço de carne agora lhe invade retumbantemente goela abaixo e parece lhe fazer cócegas nas paredes do esôfago.
Para comemorar, como se posasse para hipotética e pornográfica câmera fotográfica, Ferdinando Loy afasta um pouco o rosto do objeto que mastigara nos últimos minutos,  sorri para a agora pequena multidão de homens que se masturbam ao redor,  segura o pênis de Jorge dos Prazeres à guisa de troféu, e berra: - Biba Che Guevara! Biba Sarita Montiel. Biba  a Bahia!

Jorge dos Prazeres olha, mas não vê, esses olhares masculinos que se reviram de prazer e essas mãos rápidas que manipulam falos que lhes pipocam no meio das pernas como grandes inhames e grandes batatas baroas prestes a explodir de suas cascas. De repente, no meio desse espetacular e alucinado grand-guignol estrelado por fantoches absolutamente tantalizados e erotizados, parece ver rosto familiar.
Entre a cabeça de homem de rosto vincado por rugas e obscenamente obeso,  que se esforça para sacar o pênis do coldre de gordura que o encobre, e por aquele rapaz jovem que lhe lança vorazes olhares de cobiça, Jorge dos Prazeres parece ver, e logo em seguida vê de fato, o rosto impávido e irado e crispado de ninguém mais ninguém menos que Matilde das Dores, com quem combinara, alguma parte do cérebro dele aponta, em algum vago e distante momento do passado encontrar-se em algum lugar dessa longa noite em algum lugar dessa insana farra.
Parece ver também e, logo em seguida, vê de fato que esse rosto parecido com o de Matilde das Dores, que se destaca no meio desses rostos disformes, se deixa emoldurar por rosto, tronco e membros absolutamente transidos. Vê também que essa tríade composta por cabeça, tronco e membros transidos se dirige perigosamente em direção daquela bacia de azeite de dendê ainda fervente na qual aquela baiana sonolenta teimava em ressuscitar os acarajés murchos que algum desavisado e faminto folião talvez ainda comprasse.
Exatamente quando Ferdinando Loy volta, gloriosamente, a abrigar o pênis agora rutilante de Jorge dos Prazeres na boca, Matilde das Dores  (sim é de fato ela, sim, é de fato Matilde das Dores), tal e qual Medeia das Dores suburbana que emerge do meio do lodo, abarca a bacia fervente de azeite de dendê nas mãos magras e finas, à guisa de arma de fogo de amplo poder de abrasão, e entra em cena – magistralmente descontrolada, caminhão desgovernado descendo Ladeira do Pepino abaixo.
Matilde das Dores lança jatos quentes e caudalosos de azeite-de-dendê sobre aquela multidão extática, e destrói, sem deixar criatura sobre criatura, essa grotescamente sublime cena de grand-guignol. Asperge com fúria colossal aquele grosso caldo quente sobre as cabeças e troncos e membros dessa pequena multidão extática que se desfaz – zonza, tonta, caótica, cega, desesperada.
Essa inesperada caudalosa chuva de caldo quente atinge a extática multidão de surpresa. Alguns urram de dor. Gotas ferventes se abatem sobre mãos, braços, testas, e em glandes túmidas prestes a explodir em  jatos de esperma.
Em Ferdinando Loy os inesperados chuviscos atingem-lhe em cheio o rosto e os cabelos ralos agora manchados por lama negra e luzidia que parece petróleo. Mas não parece se abater: seus olhos em dilatação máxima de pomba-gira portenha parecem anunciar que essa guerra ainda não acabara.
Milagrosamente, nenhuma gota dessa inesperada chuva quente atinge Jorge dos Prazeres, o que exaspera ainda mais o ânimo de Matilde das Dores que, impelida por força que talvez fosse capaz de puxar dois caminhões por cordas presas aos cabelos grossos e ásperos, berra, urra, brada, grita, enfim explode – explode como mulher-bomba iraquiana que trocasse a bomba amarrada ao corpo por dor profunda amarrada ao corpo: - Filho da puta! Filho da Puta! Filho da Puta!.
Ferdinando Loy, que costuma nunca perder a pose mesmo nas grandes tragédias e essa, percebia, era grande tragédia, ainda tenta reagir, ainda tenta esboçar algum simulacro de reação, ainda ousa cuspir no rosto de Matilde das Dores e uivar algo parecido com tirem essa louca daqui. Mas, no meio do caminho dessa pretensa reação, bate de frente com  peremptória e bombástica contra-ordem: - SAIA DAQUI SUA  BICHA PARAGUAIA DE MERDA! SAIA. SUMA! DESAPAREÇA ANTES QUE EU ESCALPELE VOCÊ, SEU VIADO ORDINÁRIO!
Os outros participantes dessa patética performance abruptamente interrompida escafedem-se como podem. Alguns escabreados e murchos, machucados e chorosos, fogem para os braços reconfortantes de suas mulheres, mães e namoradas, que certamente os esperarão na volta para casa com mimos e massagens com pomadas curativas nas partes atingidas. Outros não. Para  esses, viciados em viver perigosamente, essa inesperada interrupção a golpes de azeite-de-dendê fervente inocula-lhes bem-vinda dosagem de adrenalina que tornará a farra até o alvorecer de quarta-feira de cinzas experiência ainda mais arrebatadora.

(Continua no próximo post, domingo que vem)

 











































































































































































































































































































































































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