segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A VIDA É CAMINHÃO SEM FREIO DESCENDO LADEIRA ABAIXO (OU A GARÇA E O RATO E O HOMEM)


Primeiro ato: O Rato e a Garça

Às margens da baía de Guanabara, naquela curva de terra e de mar e de ar que marca a fronteira entre os bairros do Flamengo e do Botafogo, ouve-se guinchado abafado e frágil, mas aterrorizante (ab-so-lu-ta-men-te aterrorizante). Imagino: talvez seja alguém que reaja ao ataque de assaltante carnívoro, ou de vampiro ávido por sangue e adrenalina – enfim, alguma ocorrência dessa natureza e desse pathos.

Viro então a cabeça na direção de onde vem o guinchado abafado e frágil, mas aterrorizante: então flagro bela e esbelta e altaneira garça que acaba de bicar com fúria titânica pequenino rato (tão pequeno que posso presumir: trata-se de rato-ainda-quase-bebê) – e tenta engolir esse rato-ainda-quase-bebê gulosamente, vorazmente – como se não houvesse amanhã, nem depois de amanhã, nem ano que vem, nem século que vem, nada, nada além.

Mesmo à distância, percebo: o rato-ainda-quase-bebê luta com todas as pequenas forças que lhe restam para não mergulhar no túnel que o levará à caverna escura dessa garça gulosa da qual nunca sairá. Tenta bravamente se livrar  desse pesadelo, e, tal e qual os desenhos animados à la Walt Disney de antanho, correr de volta para os braços cálidos da mamãe-rato.

Desacelero o passo, mas não o cérebro. Imagino: cenas assim (de pura e inoxidável natureza selvagem, de puro e inexorável terror, disponíveis em vários canais de tevê cabo) seriam completamente banais, extraordinariamente comuns desde que o mundo é mundo; desde que o homem é homem; desde que as garças são garças; desde que os ratos-ainda-quase-bebês são ratos-ainda-quase-bebês – mas isso, merda, não me alivia.

Não estou só nesse pasmo e nesse não alívio diante dessa rotineira tragédia do mundo animal. Duas ou três senhorinhas também diminuem o ritmo da caminhada, viram os pescoços em direção a essa  inesperada ocorrência, e murmuram dois ou três ‘ohs’ sinceros. (Surge em cena até mesmo rapaz com cara de parvo que registra todo o episódio com a câmera do celular).

Em desvairado delírio romântico, tudo em mim passa a torcer desesperadamente para que o rato-ainda-quase-bebê escape do bico afiado dessa garça tirana, se enfie novamente nas pedras que margeiam o mar da baía da Guanabara e, à la Walt Disney, corra para os braços cálidos da mamãe-rato.

Torço em vão: meu próximo olhar, dois passos adiante, já flagra pequeno volume, do tamanho exato de rato-ainda-quase-bebê, a descer devagar, e aos sacolejos, pelo pescoço fino da garça tirana – donde posso, tristemente, concluir, com um travo amargo se espalhando pelo céu da boca: aquele rato-ainda-quase-bebê acaba de entrar no túnel que o levará diretamente ao inferno. Sem escalas.

Segundo ato: O homem e a garça

O cearense Cícero, a bordo de detonado furgão azul-anil, vende água de coco na fronteira sul do Flamengo, quase Botafogo, desde sempre. É homem de bom coração. Vende-me, às vezes, fiado o precioso líquido que comercializa quando esqueço os três reais necessários para a compra em casa, ou em lugar nenhum. Mas, sujeito probo que tento ser, sempre lhe pago o que devo.

Fiado ou à vista, sou freguês desse cearense baixote, que, estranhamente, gerou o galalau Wellington, o filho de quase 1,90 cms de altura, e que o ajuda na faina diária.

Cícero e eu conversamos sobre assuntos triviais, tipo:
1) os ladrões de bicicleta, ou a pé, que assaltam turistas e nativos diariamente;
2) os agentes da prefeitura que, em todo começo de ano, o ameaçam de tirá-lo do local onde trabalha, e no qual tem a melhor vista do Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar e a boca banguela da baía de Guanabara emoldurando tudo; mas, estamos no Brasil, tudo acaba em pizza: em troca de alguns dinheiros, os deixam em paz – pelo menos até o ano seguinte;
3) dúvidas pueris; dia desses ganhou uma fruta, que afirmava desconhecer, de certo freguês abastado, que o encantou, mas que não sabia como diabos se chamava aquela bendita fruta; ao abordá-lo para lhe pedir a santa água de coco de cada dia, Cícero sacou saquinho pardo e amassado do fundo do furgão azul, abriu-o, e me arguiu: - Que fruta é essa? O senhor conhece? Era trivial ameixa, mas ele nunca vira antes ameixa in natura, e lhe disse peremptoriamente: - É uma ameixa! Ele estranhou: - Ameixa? Mas ameixa não é aquela fruta preta, seca e enrugada, enfiada naquelas latas que vendem em supermercados de gente fina? Quase sorri da observação arguta, mas ingênua, do meu amigo circunstancial, e lhe revelei: - Antes de virarem aquelas frutas secas e enrugadas que são trancadas em latas e vendidas em supermercados de gente fina, como você diz, elas, as ameixas, são assim, vermelhas ou pretas, tenras e suculentas, sem nenhuma ruga, e, melhor de tudo, deliciosas.

O pai de Wellinton sorriu desconfiado, agradeceu a informação, e parti de volta para casa feliz: adoro socializar informação.

Além de vender água de coco, Cícero é homem que ama os animais e, principalmente, as garças que fazem ponto diuturnamente nas pedras que margeiam a baía de Guanabara, entre a enseada de Botafogo e o Aterro do Flamengo. Para passar o tempo nos dias de menor movimento, ou até mesmo nos de grande movimento, enfia  vara de pescar entre as pedras onde o Oceano Atlântico arrebenta e espera que algum peixe lhe bique o anzol.

Os peixes que pega são invariavelmente pequenos – e, noblesse oblige, não os leva para casa (para fazer boa fritada e comer com farofa de banana). Os peixes pequenos que Cícero pega têm outro destino: alimentar as garças, que, acostumadas e encantadas com esses mimos, fazem fila sobre as pedras das cercanias, com único intuito: abrir o enorme bico para acolher sofregamente o petisco que ele acabou de pescar. Ordeiramente, assim que cada garça abocanha o pequeno peixe pescado pelo, digamos, bom-samaritano-delas, voa rapidamente, ainda digerindo a iguaria recém-presenteada, e cede a vez à próxima garça faminta.

Sempre que vejo esse ritual incomum, e benfazejo, imagino: uma dessas garças teria sido aquela garça-vilã do primeiro ato; aquela que, sem dó nem piedade, abocanhou aquele ratinho-quase-bebê, e o devorou. Pode ser que sim. Pode ser que não. As garças parecem todas iguais; não há como saber se, entre aquelas belas garças que agora esperam ordeiramente a iguaria que o bom Cícero lhes destinará, esteja aqueloutra, a vilã, a tirana, a pérfida do primeiro ato.

E se estiver, caro leitor? Garças se alimentam basicamente de pequenos peixes que – antes de Cícero existir, ou quando Cícero não aparece para vender água de coco e pescar peixe para as suas garças queridas – são simplesmente bicadas em voos rasantes sobre a superfície do mar da Baía de Guanabara. Simples assim.

A questão é: trapaças da sorte, esses voos rasantes podem resultar em nada, e, sem Cíceros por perto, as garças têm de ser criativas para mitigar a fome que as devora. E, certamente, a garça do primeiro ato, era garça que vivia situação assim: limite. Não devorara  o rato-quase-bebê por maldade, mas por não encontrar o peixe que a alimentaria, ou seja, por falta absoluta de opção.

Moral desses dois atos, aparentemente antípodas, mas exemplarmente complementares: ao contrário de nós, seres humanos ditos civilizados, os animais, ditos não humanos e não civilizados, não matam pelo prazer de matar – como nós humanos o fazemos desde que o mundo e o mundo; e, pelo andar da carruagem, o faremos até o fim dos dias – e sim pela imperiosa necessidade de continuarem vivos.

Epílogo – O rato, a garça, o vendedor de
cocos e um homem que sonha

No céu cor de fogo-que-se-apaga-lentamente da baía de Guanabara (a noite começa a escapulir), ratazana gigante, tão grande quanto o Pão de Açúcar bem ali ao lado, emerge do fundo do mar. Tem a bocarra escancarada e faminta e ávida.

Abocanha tudo que encontra pelo caminho:
a) barco com dois pescadores, e um garoto loiro que carrega pequeno cachorro vira-lata no colo;
b) senhora visivelmente septuagenária que, com largas braçadas, nada da praia do Flamengo até a enseada do Botafogo;
c) uma garça maior, beeeeeem maior do que as que Cícero alimenta – e essa garça beeeeeem maior que as que Cícero alimenta desce a goela imensa da ratazana como se descesse tobogã do Parque Nicolândia, em Brasília;
d) Cícero e Welllington; o pai puxa do cinto o facão com que corta cocos, e, em vão, ameaça a ratazana gigante, e cada vez mais gulosa, mas é devorado implacavelmente, com filho, facão e tudo;
e) pai e filho devidamente deglutidos, a ratazana grande, e cada vez mais gulosa, vem, célere, o cão chupando manga, indócil, olhos esbugalhados que parecem arrancados da Maga Patalogika,  lambendo os beiços de prazer e de lascívia e de tesão em minha direção.

A ratazana gigante e gulosa e ávida está cada vez mais perto. Destemida, sem medo de abalroar os carros que  começam a circular a toda velocidade pelo local, atravessa as duas pistas de automóveis do Aterro do Flamengo.

A ratazana gigante e gulosa e ávida não se intimida: cruza velozmente as duas pistas de automóveis do Aterro do Flamengo, e devora, num piscar d´olhos, caminhão de mudanças da Lusitana, e Ford Ka púrpura, dirigido por mulher, que, apavorada, clama por todos os seus santos de devoção (e consigo ouvir os clamores por São Judas Tadeu, Santa Bárbara, São Miguel Arcanjo, Santo Expe...)

Em vão. Nenhum santo ajuda. O carro que dirige desce a goela abaixo da ratazana agora cada vez mais gigantesca.

Fim de jogo: agora não há mais nada a nos separar. Entre mim e a ratazana superlativa apenas o vazio. Ela tenta me puxar com a língua: sinto o cheiro fétido que vem de dentro dela, e sinto que começo a atravessar o umbral do inferno...

De repente, tudo some. A primeira coisa que enxergo é a grande cortina estampada da grande janela, que lembra os teatrinhos dos circos mambembes da minha infância; depois diviso a estante de livros, e decifro, feliz, a lombada de um deles, onde flameja o número 2666; em seguida, ouço o cantos dos pássaros. Eles pulam, serelepes e radiantes, pelos galhos frondosas da mangueira que viceja sem parar a dois metros do meu quarto, às margens plácidas da Praça Mauro Duarte, no Baixo Botafogo.

Amanhece no Rio de Janeiro, caro leitor. (Bom dia!).    








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