domingo, 20 de novembro de 2011

ANJOS DO INFERNO IRROMPEM A MADRUGADA (OU SONHO DE UMA NOITE DE SOLIDÃO)


Houve um tempo no qual – romanticamente, assim de uma hora para outra no meio da noite – a luz ia embora – e, também romanticamente, assim de uma hora para outra no meio da noite, a luz voltava.  Hoje se diz, sem romantismo algum – quando de uma hora para outra no meio da noite a luz dá lugar às trevas: faltou energia elétrica.

Verdade que, já nessa época, certo locutor de rádio – tirado do ar de uma hora para outra no meio da noite pelo fato de a luz ter dado lugar às trevas – dizia, quando voltava a respirar e a falar, com a solenidade de porteiro de mausoléu:  ‘Estivemos fora do ar por alguns instantes devido à falta de energia elétrica nos nossos estúdios’.

Falta de energia elétrica, o cacete. Na cabeça de pudim desse meninote fascinado com esse jogo de luz e de trevas, esse locutor de rádio – que tirava todo o romantismo do fato de a luz ir e voltar quando bem entendesse e quisesse – era pusilânime idiota.

O que intrigava a cabeça de pudim desse meninote, com o que de fato a cabeça de pudim desse meninote queria se intrigar, era o fato aparentemente inexplicável de que a luz fosse embora e que logo depois a luz voltasse, assim como se tivesse ido ao cabeleireiro, à padaria comprar pão, ao cinema para assistir Mary Poppins, com a chatíssima  Julie Andrews.

Afundava-me em caraminholas: o que a luz estaria fazendo naqueles minutos nos quais ia embora, enquanto nós, para não soçobrarmos nas trevas, acendíamos velas e candeeiros – e rezávamos para que aquela escuridão não durasse para todo o sempre?

Havia até mesmo certo tio-bastardo-muitíssimo-querido (filho de avô paterno com certa mulher-da-vida) que aproveitava esses momentos em que a luz ia embora e, saído das sombras onde morava nas cercanias, nos contava mil & uma histórias. Todas assustadoras. Todas escabrosas. Almas penadas saíam das brenhas e se materializavam embaixo de nossas camas. Mulas-sem-cabeça aproveitavam a escuridão para entrar por baixo de nossas portas e esfregar seus rabos imundos nos nossos narizes.

Era como se quando a luz fosse embora, o mundo parasse por algum tempo – ou morrêssemos por algum tempo – e, mortos por algum tempo e com tudo ao redor parado por algum tempo, deparássemos com esse tio-bastardo-muitíssimo-querido de olhos incrivelmente verdes e de cabelos incrivelmente negros que nos escancarava a porta do inferno – e na cabeça de pudim desse meninote assustado, mas fascinado, a luz ia embora em todos os cantos da Terra e em todos os cantos da Terra tios-bastardos-muitíssimo-queridos também saíam das sombras para nos escancarar todas as portas do inferno.

Ah, mas quando a luz voltava, ah, mas quando a luz voltava, como era verde o nosso vale, era a nossa redenção: eu, pais, irmãos, vizinhos, e – presumia – todos os habitantes  da Terra urrávamos e gritávamos e berrávamos e quase explodíamos de alegria – celebrávamos o fim das trevas.  

Essas algazarras humanas absolutamente carnavalescas e dionisíacas que celebravam o fim das trevas e atestavam para os devidos fins que a luz voltara (embora todos soubéssemos que a luz ia embora outra vez quando menos esperássemos) seriam alguns dos momentos  mais sublimes de toda a minha infância.

Oops!  Tudo escurece de repente neste meio-de-noite-quase-fria-de-novembro no Rio de Janeiro, que, mergulhada em abissal escuridão, some do mapa. A única coisa que reluz na sala escura é o teclado do computador onde escrevo estas palavras – e, pela janela, avisto grupo foliões-fora-de-hora (ainda não é carnaval; ou é?) fantasiados de anjos, com asas, mas com chifres. Esses, digamos, anjos do inferno, cantarolam os seguintes versos: ´Rio de Janeiro/Cidade que me seduz/De dia falta água/De noite falta luz.´ (*)  

Vou à janela e cantarolo animadamente a marchinha carnavalesca com o grupo de foliões-fora-de-hora – mas não consigo controlar o meu pensamento – e pergunta que não queria calar me arrebatou: faltou energia elétrica nos nossos estúdios, caro leitor, ou a luz foi embora – mas logo voltará?

E, de fato, a luz foi embora – mas logo voltou. A sala escura se ilumina novamente. São duas da manhã, mas é mais forte do que eu: vou até a janela novamente, mas os anjos do inferno não cantam mais marchinha carnavalesca alguma. Sumiram. Escafederam-se. Mas avisto o Cristo Redentor novamente iluminado, e, a bordo de alegria que não consigo controlar, que preciso extravasar, grito e urro e berro para todo o Baixo Botafogo acordar.

O interfone toca. Ouço a voz familiar de Francisco, o porteiro da noite: ‘Está tudo bem, senhor Geraldo?’

Esbravejo, indignado: ‘Geraldo, o cacete, mas que Geraldo porra? O  meu nome é...’

Merda! (olho ao redor e vejo a cama vazia): acordei – e todas as luzes da casa estão acesas.

(*) Versos da marchinha carnavalesca Vagalume, de Vitor Simon e Fernando Martins, grande sucesso do Carnaval de 1954, nas vozes do grupo Anjos do Inferno.







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