quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A VIDA NÃO É MAIS QUE NADA, SABÁ, SABÁ (OU DIVAGAÇÕES SOBRE VIVER E MORRER)


Fala-se muito em desapego como o suprassumo da busca da santidade e da ascese religiosa. Papo furado. Merda de touro. Não é virtude nem defeito. É apenas atitude que alguém eventualmente adota por motivos e desmotivos pessoais e intransferíveis. Desapegar-se ou apegar-se a bens de consumo, derniercris da moda, joias, tesouros, mil e hum pares de sapatos, e closets de 200 metros quadrados recheados de traquitanas diversas é tão trivial quanto políticos safados .
Não posso nem devo me jactar de ter me desapegado dos bens que um dia possuí. Bem da verdade, o único ser vivo a que fui obrigado a me desapegar, e me desapeguei com a mais profunda das dores, foi um santo gato chamado Ravic.
A essa altura da minha vida, posso afirmar sem medo de errar: esse felino abençoado que viveu apenas cinco anos foi o homem da minha vida, o homem que queria fosse o pai e a mãe dos meus filhos. Mas não deu: por enquanto, gatos e homens ainda não procriam. Minha profecia: um dia chegaremos lá.
Também não posso nem devo me jactar de ter me desapegado dos bens na verdade nada valiosos que um dia possuí, mas que dizia serem ´meus´ e ´de mais ninguém´. Numa reversão nada comum na ordem das coisas, foram esses bens nada valiosos, mas mezzo queridos, que, irreversivelmente, se desapegaram de mim, aos poucos, mas incisivamente – inclusive livros e discos que tanto amei, e amo – sinto especial ausência dos amados CDs de Chet Baker, o homem que cantava com o fígado, e de quem o nosso esperto João Gilberto bebeu-lhe (quase) todo o xarope.
Hoje sou um desapegado assumido: se o amanhã me levar a morar no Acre, ou no Sudão, ou embaixo de um banco da Praça Paris, na Glória, aqui no Rio de Janeiro, tudo que levarei caberá numa mala de couro forrada por Dona Canô. Eletrodomésticos avariados, mas ainda em funcionamento, e romances da grande literatura, cerca de quarenta, a quem ainda tenho, mea culpa, enorme apego serão doados a Associação dos Amigos da Infância com Câncer do Rio de Janeiro que fica bem aqui do lado de minha não-casa.
(A propósito: a existência de crianças com câncer – uma das maiores causas de morte infantil no planeta Terra – é uma prova cabal de que Deus, ou quem de direito, é tão sábio quanto o bigode se Stálin.)
Tresloucado com a borrasca financeira que se abateu sobre mim e sobre outros milhões de terráqueos a partir do começo do século XXI (e isso é mais motivo de lamento que de consolo), virei guerrilheiro em tempo integral para me manter não-morto, mas, também, não-vivo. Sobrevivi, e aprendi: também precisava me desapegar de cidades, de pessoas, de namorados, de amigos, de tudo que aprisionasse a algum lugar ou a alguém.
Só não me desapeguei, nem me desapegarei das minhas caminhadas diárias de vinte quilômetros, estivesse/esteja em Praga, na República Tcheca, ou em Irecê, na Bahia, ou pelas vias laterais da ponte Rio-Niterói. Não sem motivo:  é esse caminhar que me mantém vivo-morto, com a cabeça rigorosamente em cima do pescoço, e apenas razoavelmente insano – nem mais nem menos que os ditos humanoides que me cercam nos lugares pelos quais circulo no Rio de Janeiro e alhures.
Entre 31 de dezembro e 8 de janeiro resolvi mergulhar num período sabático. Era desejo antigo que finalmente se materializou. Nesse período senti enorme prazer em cagar e andar para coisas nefastas tipo réveillon, aniversário, jornais, internet, televisão, aparelhos celulares et caterva. E  basicamente, andar e rezar muito, rezar por tudo, por estar vivo, por estar morto, ou por estar vivo e morto ao mesmo tempo, como, de fato, me sinto.
(Ah, sim, nesse período li obra magistral: Marighella, escrita por Mário Magalhães. Mais  que  biografia, é retrato sem retoques da condição humana, o ser humano no osso, no cu do cu).   
Tal distanciamento da realidade abjeta na qual vivemos me provou momentos extáticos que certamente me garantirão alguns dias a mais de vida. Concluí: menos velho fosse me tornaria ermitão que viveria o resto da vida nos mais escondidos rincões da Terra em companhia de ursos polares bissexuais.
Nesse sabá improvisado, fiz algumas anotações que registram memórias, conclusões a respeito do mundo e certas impressões e insights advindas do meu inconsciente – e, como diziam os surrealistas,   a arte (e a vida, acrescente-se) é o inconsciente e nada mais quê.
I.                  O Deus do Velho Testamento é um psicopata.

II.               A gente começa a se foder e a acaber de se foder inexoravelmente quando põe no outro a razão e o motivo de nossa (in)felicidade.

III.           O inferno somos nós – Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, inclusive.

IV.           Eu escrevo com as pernas, e com os pés.
          
V.               Ser ou não ser, o caralho! A pergunta básica de nossa existência é matar ou morrer? – e viva Marighella!

VI.           Pedrinho, 17, não era alegre. Nem triste. Nem poeta. Simplesmente não gostava do filme a que o obrigavam a assistir. Inspirava-lhe náusea, e vivia vomitando dia sim dia não. Ponto. De repente, o telefone tocou. Era para ele. Tinha certeza. Atendeu. Ouviu: - É a morte quem fala! Pedrinho explodiu de júbilo: - Putaquepariu. Por que você demorou tanto, caralho? A morte-anjo esbravejou: - A gente sempre surge na hora certa, pirralho! Chegou a sua hora. Pule pela janela, já! Pedrinho, louco de alegria, pulou e gritou o mesmo grito primal que Janet Leigh gritava em Psicose, de Alfred Hitchcock. A mãe de Pedrinho, dona Hilda, se não me falha a memória, continuou a assistir, enfeitiçada, a mais um capítulo de O Sheik de Agadir. Sequer  tirou os olhos da tela. Simplesmente urrou: - Porra! Cala a boca, Pedrinho!

VII.        Eu tinha sete ou oito anos. A professora de português, ruiva e sardenta e descabelada, talvez nervosa por algo que lhe acontecera, ou que lhe aconteceria  -  (e aconteceu, de fato: morreria atropelada por caminhão FNM na porta de casa ao voltar das aulas desse dia), tentava explicar, com certa dificuldade, a trinta e poucos garotos razoavelmente obtusos de uma escola primária de Jequié-Bahia o que era substantivo concreto e o que era substantivo abstrato. Em certo ponto, as mãos tremelicando, os olhos esbugalhando, decretou: - Substantivo concreto é tudo que tem existência corpórea. O abstrato é aquele que não tem existência corpórea! Olhamo-nos, burraldinos todos, e pensamos em silencioso coral: - Que merda de existência corpórea é essa? Mas o segundo melhor aluno da classe, o primeiro era eu, adiantou-se, omitiu educadamente a palavra merda, e arguiu: - O que é existência corpórea, querida mestra? Ela se assustou com a pergunta. Demonstrou nervosismo. Os cabelos ruivos encaracolaram-se ainda mais. As sardas pulavam-lhe da face redonda como pulgas rubras. As mãos tremiam. Mas, de repente, a luz se fez na face da professora Magali Noel (como se alguém lhe soprasse no ouvido a resposta que deveria dar aos alunos), e ela disse,  peremptória, entusiástica, flamejante:  - Substantivo concreto é tudo aquilo que se pode pegar, que se consegue apalpar. E, em entusiasmo incontido, provocou: - Agora quem de vocês não será capaz de dar um exemplo de um substantivo concreto? A resposta foi uma série de bocarras escancaradas que gritavam cadeira, carro, avião, bule, prato, panela e até mesmo bunda. Ela vibrou, e prosseguiu: - Agora então vamos falar dos substantivos abstratos. Substantivo abstrato é tudo que existe mas não podemos vê-los ou pegá-los. Quem se arrisca a dar um exemplo? Um pulha que me chamava de cu de ferro que eu odiava, um idiota de dar dó, se manifestou: - Um ferro de passar roupa bem quente, professora! É substantivo abstrato. Ninguém pega, se pegar se queima. A professora riu sem malícia – mas todo o meu pequeno ser vibrou com a besteira que aquela anta de tênis falara, e acrescentou: - Não só não podemos pegar, também não podemos ver, como se pode ver, por exemplo, na mesa da cozinha de casa uma caixa de Maizena. Vou dar um exemplo de substantivo abstrato para vocês entenderem melhor: felicidade. Todo mundo sabe que a felicidade existe – [pensei então com meus precoces botões existencialistas: em termos, querida mestra, em termos!], mas ninguém consegue pegá-la ou vê-la. Quis exemplificar outro substantivo abstrato, e falei tempo. Mas a campainha tocou, as crianças saíram em desabrida corrida para o recreio. Meno male: a professora Magali Noel veio até a mim, e exortou-me: - Meu querido, o tempo talvez o seja mais abstrato dos substantivos. Nunca ninguém conseguirá vê-lo passar e, muito menos, pegá-lo como se fosse um algodão-doce. Fui para o recreio feliz. Comi uma banana-real com fanta uva, e pensei em como eu seria quando o tempo passasse mesmo que eu nunca o visse e mesmo que nunca conseguisse agarrá-lo. Lembrei essa história, no final do ano passado olhei para o espelho do banheiro na hora de fazer a barba, e avistei um quase-velho.

VIII.    No dia 6 de janeiro, domingo, colhi mais uma rosa no jardim da minha existência: agora já são 59 a florir no meu rosário. Quero declarar: `A velhice é uma merda que deve ser surfada com sabedoria, dignidade  e vigor.´

PSPS 1 (post-scriptum-pós-sabático): Na primeira hora da manhã após o meu período sabático, corri para comprar jornal. Tenho esse vício. O do porteiro-chefe do meu prédio é fumar. Sei que ambos fazem mal à saúde, provocam câncer, mas persisto no culto ao demônio. Nada, como sempre, digno de nota. Mas lá pelas tantas, algo me chama a atenção. Fala-se de certa menina carioca que morrera aos nove anos e que estaria sendo canonizada pela Santa Madre Igreja Católica pelos milagres que teria operado. O único milagre citado pelo articulista; teria atendido às preces da atriz Giovanna Antonelli e a colocou no papel de protagonista da novela O Clone, de Glória Perez. Por causa dessa graça, a atriz visitava com frequência o Cemitério de São João Batista, onde  a garota rica e bondosa que dava dinheiro aos pobres está enterrada, e, ajoelhada diante do túmulo da infanta, mergulhava em preces contritas e profundas de agradecimento, Quase me urinei de tanto rir. No meu tempo de guri, dizia-se que os santos curavam leprosos, reviviam mortos, faziam aleijados andarem, e coisas e ações mais transcendentais.  Mas fazer devota ganhar papel de protagonista em novela vagabunda de Glória Perez, eu nunca tinha ouvido falar.

(A propósito, Viva Santa Bárbara, e, por favor, não me consiga nenhum papel de protagonista em novela vagabunda de Glória Perez! Precisar, estou precisado, mas me coloque por outros caminhos. Eparrei Iansã!).

PSPS2: Boas surpresas acontecem. Ontem recebi simplório, mas singelo e delicado, cartão de feliz aniversário da Ótica Conceição, localizado na frenética Saara, no centro do Rio, onde sempre compro meus óculos de graus. Trecho do texto: ´Continue firme pelos caminhos da virilidade e das verdades. Continue trilhando pelos vales da vida, pois um dia encontrarás o mais belo jardim, o jardim que representará a realidade dos seus maiores dias.´  Amém, Ótica Conceição, amém.

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