quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

RATOS E RATOS (OU MODESTA FÁBULA EM MEMÓRIA DE JOHN STEINBECK*)


Era uma vez um rato chamado Aristeu. Perdera o olho esquerdo numa peleja sangrenta com um rival, o Aristides. Motivo: disputa por miligramas de crack nos intestinos da Lapa, em algum esgoto fétido entre a Rua Taylor e a Mem de Sá com a Frei Caneca. Siderado pela droga, o agredido vacilou, bambeou – e o agressor trespassou-lhe a íris esquerda com alfinete enferrujado que jazia na sarjeta. 
Aristeu, o rato de um olho só, intuitivamente estoico, passou a disparar a seguinte boutade quando jogava dominó com alguns ratos das redondezas: - Meno male. Agora vejo apenas metade da miséria do mundo.
Quando não se drogava, quando não fodia, ou quando não dormia drogado pelas entranhas do centro do Rio de Janeiro, Aristeu costumava flanar pelo Campo de Santana. Ideia fixa: catar sobras de alimentos e copos com restos de cerveja quente e choca nas beiradas das latas de lixo. 
Manhã cinzenta de 15 de janeiro de 2013: impulsionado pela larica que os restinhos de crack e bitucas diversas de marijuana  consumidos na madrugada anterior provocara, engolia tudo o que via pela frente: pontas de cigarros, pipocas pisadas, fezes de cotia, pedaços de casca de banana, o diabo a quatro.
De repente fez-se luz. Avistou copo de cerveja pela metade, ali abandonado por algum bêbado já pra-lá-de-Bagdá. O ´será-uma-miragem´ pensado por Aristeu não era miragem. Aproximou-se da lata de lixo cor de abóbora, e sentiu o cheiro acre da bebida, real, vívido. Ainda assim, calejado por falsas visões que as drogas eventualmente lhe proporcionam, esfregou o único olho que lhe restava: queria ter certeza de que não era algum episódio delirótico.  
Olhou de novo. Viu de novo: copo de cerveja pela metade, morna, azeda, fétida – exatamente do jeito que esse rato de rua adora.  
Sibilou tonitruante  puta-que-pariu que assustou um gato esquálido que ronronava por perto, e partiu célere em busca do tesouro. Empurrou-o com força, mas com cuidado, muuuuito cuidado, não queria gota sequer daquele precioso líquido se perdendo no chão enlameado.
Finamente, exausto,  mas feliz, abancou-se à margem de lagoa sempre imunda, no centro do Campo de Santana. Cruzou as pernas, assoviou sambinha safado do Dicró, e sorveu de canudinho, com a pressa dos lerdos, o líquido que o deixava em ascese alcoólica. Sentiu-se no nirvana, e bufou:- Melhor que isso só a bunda de Aristeia.  
Sorveu mais um pouco, e achou melhor ponderar: - Será que a bunda de Aristeia é mesmo melhor que isso?
O Nirvana se partiu quando Aristeu ouviu voz rouca de alguém – e, de imediato, sentiu raiva e nojo por essa voz rouca de alguém. Pior: essa voz rouca de alguém suplicava por ajuda: - Socorro, socorro! Estou me afogando. Não sei nadar.
Merda! – arfou Aristeu. Não parou de sorver o precioso líquido. Não queria nem ver a cara do sujeito que gritava por socorro. ´Que se fodesse´  - pensou. Mas os gritos aumentavam cada vez mais, estridentes, cortantes. Ele olhou, e viu (e fingiu que não viu): um rato se afogava, e gritava aflito, e implorava e suplicava e rogava que alguém o salvasse.  
Aristeu se fez de surdo, e de cego dos dois olhos. Concentrou-se no merdume doce-amargo-azedo que lhe descia as entranhas, e o deixava em transe. Pensou na bunda de Aristeia, na buceta de Aristeia, e não pensou mais em nada. Quando finalmente viu (pela metade) a paisagem ao redor, já não tinha mais rato algum pedindo socorro.
Havia apenas rato morto no fundo da lagoa imunda.
Aristeu nem sequer piscou o olho que lhe restou. Lambeu todo o copo, de fio a pavio, para aproveitar cada gotícula da cerveja fétida que restava. Quase engasgou. Recuperou o fôlego. Arrotou em alto e bom som. Em seguida, em trôpegos passos, voltou às entranhas da Lapa. Pelo caminho, deu de ombros, e resmungou:   Ah, vá se foder! Quem mandou não aprender a nadar!
(No esgoto imundo da esquina da Mem de Sá com a Rua do Senado, onde Aristeu mais se escondia que morava, rude golpe aguardava Aristeu: a amada Aristeia o traía, a bordo do furor uterino de uma Medeia, com Aristides, o cara que lhe furara o olho com alfinete enferrujado encontrado na sarjeta).
* O escritor americano Jonh Steibeck (1902-1968) é autor do romance Ratos e Homens, um dos retratos mais seminais da condição humana. 

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