quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O NATAL É UMA INVENÇÃO DE DEUS QUE O DIABO ABENÇOOU (OU HORRÔ! HORRÔ! HORRÔ!!!)


Tem  quem adore Natal. Eu o-de-io.  
Cada louco tem sua mania. Traumas meus. Pessoais. Intransferíveis, e que irão comigo até o bulezinho de prata que guardará minhas cinzas.
Quando petiz me fizeram crer na existência de Papai Noel. Mas logo aos cinco, seis, anos, comecei a achar essa história de Papai Noel que voava num trenó puxado por renas voadoras e entrava no meu lar-doce-lar pela chaminé da casa não tinha a mais remota chance de ser verdade. Mas caguei: a porra da verdade que fosse à prostituta que a gerou.
Queria ser enganado. Gostava de ser enganado. Todos nós gostamos de ser enganados. Todos nós gostamos de ser enganados até o fim de nossos dias. A isso chamamos ilusão. De faz de conta. De fantasia. A verdade dói mais que sete adagas enfiadas, ao mesmo tempo, no baixo ventre – uma,  de ponta mais afiada, no fulcro das nossas genitálias.
(Por essas e outras, vivemos fugindo da verdade como Lady Gaga foge de encarar espelhos sem make up a lhe esconder  a face, melhor não face, da mulher mais feia do universo, quiçá, de todas as galáxias).
Tal e qual Lady Gaga, fugi da verdade durante dois ou três anos. Até que, ao despertar de certo 25 de dezembro, meus bracinhos tenros e roliços se enfiaram por baixo da cama à procura do que Papai Noel, o qual já sabia ser conto da carochinha, havia deixado pra mim.
Nas vezes anteriores, bastava baixar o braço, e minha mão esbarrava em alguma caixa cada vez menor – mas caixa – e o meu coração batia mais que o batuque do Olodum. Mas dessa vez: não houve final feliz. Descobri, desolado (depois de escarafunchar todos os milímetros do chão de assoalho onde o meu leito se assentava), apenas duas ou três baratas mortas. Nada mais quê.
O meu mundinho caiu: Papai Noel já soubera que eu percebera que ele era uma fraude temerária, e me mandava às favas. Fim de jogo. Merda: como o filho da puta do Papai Noel descobrira que eu descobrira que ele era uma fraude temerária?
Na verdade, havia crucial elemento macroeconômico nessa revelação, o xis do problema:  minha família, classe média baixa do interior da Bahia nos anos 1960, decidira, convenientemente e sabiamente, pôr fim a essa farsa. Afinal papai-&-mamãe tinham despesas mais básicas e mais prioritárias para investir: fazer, por exemplo, com que não faltasse comida na mesa, tanto no café da manhã, quanto no almoço, quanto no jantar - e isso, devo ressaltar, nunca faltou.
(Parágrafos que atestam para os devidos fins o quão parcos eram os recursos financeiros da família Souza Menezes, no decorrer dos anos 1960: 1. a primeira geladeira que vi na vida, e pela qual me apaixonei à primeira vista, foi uma Gelomatic de quinta-ou-sexta-mão, a qual meu pai comprou em prestações, e que se transformou na Esfinge-de-Gizé-do-Antigo-Egito da casa velha e cheia de goteiras localizada à avenida Rio Branco, 817, Jequié-Bahia – meio assim uma réplica avant la lettre do lar da Família Adams.
2. Mas voltemos ao refrigerador recém-chegado: detonado, o tempo já acrescentara ao branco original (cor-base do eletrodoméstico) petit pois desconstruídos a estampá-la quase inteiramente;  e durante à noite ela roncava em altos decibéis, como se fosse um rinoceronte ou um hipopótamo protagonizando terríveis pesadelos ou deliciosos orgasmos.
3. Informação que não posso deixar de dar ao caro leitor: a maçaneta da porta, outrora toda prateada, era então menos trechos prateados e mais trechos cinza-escuros, nos quais a cada vez que, desavisados e distraídos, os tocávamos, levávamos tremendo choque elétrico. Ainda assim, eu, especialmente eu, a adorava, a idolatrava. Não sem motivos: ela resfriava os nossos calores sertanejos, tornava a água que bebíamos mais fresca, e, rotina diária, eu enchia cubas de gelo com sucos das frutas mais variadas, e, ao voltar da escola, mergulhava nessa orgia mezzo gastronômica até a língua se tornar picolé de língua, completamente anestesiada – e eu gostava de mordê-la com força e não sentir a menor dor, e acho que eu pensava que gostaria que a vida fosse sempre assim, sem a menor dor, para todo o sempre. [Bobinho!])
O motivo pelo qual o Papai Noel fora defenestrado de minha casa: meus pais tinham despesas mais prioritárias do que manter essa fantasia otária do filho caçula. Mas eu registrei o golpe: (puro teatro, noblesse oblige). Passei o resto da manhã completamente macambúzio. Fiz queixas ao resto do clã sobre o fato de PN não ter me visitado na noite anterior. Recusei-me a tomar café da manhã, mas roubei uma rabanada escondido, na verdade, duas.
O meu tour-de-force deu certo: lá pelas onze da manhã, percebi certo rebuliço num dos quartos da casa. Minha mãe Águida, e minhas irmãs Luiza e Cecé, catavam moedas em diversas gavetas, e, presumi: tinham a intenção expressa de ir  até a algum armarinho milagrosamente aberto da Rua Sete de Setembro (a nossa tosca e naïf versão da Avenida Paulista de antanho), e tentarem tornar o meu o Natal menos aziago.
Presumido, e materializado: meia-hora depois, minha irmã Luiza me abordou no varandão da casa velha [e protagonizamos o seguinte e ridículo sketch]:
Luiza: - Roge [era, e é, esse o apelido com que minha família me chama até hoje], Roge, acho que você não olhou direito o que havia embaixo da sua cama!
[Como não havia olhado direito o que havia embaixo de minha cama, cara-pálida?  Chegara mesmo a guardar as duas baratas mortas em caixas de fósforos – (vá ver não descobriria um jeito de brincar com elas?), e não encontrara nada, absolutamente nada!]
 Luiza insistiu: - Vá lá agora ver. Estava meio escuro à hora em que você olhou. Agora é quase meio-dia, o sol está pegando fogo em todas as janelas do seu quarto! [o qual eu dividia com o meu irmão sete anos mais velho, José Crispim, que já não acreditava em Papai Noel e em Telecatch Montilla havia anos].
Fiz-me de tonto, voltei ao quarto, e, mais exatamente, a olhar o espaço vazio abaixo de minha cama. Então realmente havia um pacote quadrangular enrolado em papel de presente. Puxei-o, enquanto Luiza  escapava rapidamente do quarto. [Provavelmente temendo ver o meu olhar de frustração diante do singelo presente que os tostões encontrados nas gavetas permitiram comprar.]
O pacote era leve. A embalagem, ordinária. Mas o abri com rapidez: imaginei que ali se abrigassem todos os soldadinhos de chumbo do mundo – ou um jogo de pingue-pongue. Não abrigavam. O que os meus olhos viram foi um pequeno carrossel amarelo, no qual cavalos toscos de plásticos coloridos se dependuravam precariamente. A graça do brinquedo: rodava-se o cume do carrossel e os cavalinhos toscos rodavam. Ou seja: graça nenhuma.
[Fim do sketch.]
Fiquei por uns minutos me culpando por ter deixado de acreditar em Papai em Noel – e também o culpando por não mais imaginar que um garoto de oito anos ainda mereceria – mesmo que não acreditasse mais  na existência dele – algum mimo que me fizesse crer – e eu queria muito acreditar nisso: a vida seria ad infinitum uma chuva de presentes.
A decepção foi acachapante. Meu mundinho caiu novamente. Cria e queria crer: a vida seria uma eterna chuva de presentes. E se não fosse? O que seria de mim, gordo e tímido e cheio de medos?
Senti raiva do carrossel com seus cavalinhos de plásticos, e pensei em jogá-los fora.
(O que não demorou a acontecer; duas semanas depois, alguém, que não consigo ou não quero lembrar quem tenha sido, pisou, sem querer, ou com querer, no meu último  ´presente´ de Papai Noel – e eu naveguei por algumas horas entre a alegria e a tristeza. Depois dei de ombros: não tinha gostado mesmo daquele meu ´último´ presente de Papai Noel, ´aquele velho gagá´, pensei).
Enquanto pensava, e pensava corretamente (descobri depois a ferro e fogo), que a vida não seria eterna chuva de presentes, ouvi a voz bem-vinda e reconfortante de minha mãe. Chamava-me para almoçar. Entrei na cena da ceia do dia seguinte com cara de paisagem. Alguém perguntou, sei lá mais quem: - Gostou do presente de Papai Noel? Pensei: - Não, mil vezes não. Mas menti, e menti descaradamente: - A-do-rei!
(Não era a primeira vez que mentia. Nem seria a última. A mentira – descobri com o passar do tempo – é, usada com zelo, moderação, e sabedoria, bálsamo sempre necessário.)
O mundo girou, e gira muito mais que nós: décadas depois, Natal de 2012, Ilha do Governador, Rio de Janeiro: os Souza Menezes não têm mais os chefes do clã: Águida e Crispim morreram há décadas. Em compensação, entraram em cena netas, genros, e, o melhor que há: bisnetos.
Mesmo que ame os meus sobrinhos-netos (Beatriz, Augusto, Davi, Luana e Marina; os daqui do Rio de Janeiro; e Pietro, Dimitri e Marvin, os que moram em Jequié na Bahia; além de todas as pessoas que integram minha família), continuo achando o Natal festa tão cristã quanto um gato seja um rato e um rato seja um leão-marinho.
O Natal é orgia gastronômica e megacapitalista perdulária, selvagem, hipócrita, nelsonrodriguiana em essência – gentes que se amam-odeiam em eternos ires e vires que, de uma para outra, trocam de personagens – gentes que guardam ódios e mágoas no fígado e que, de uma hora para outra, fingem ser todos amigos e irmãos, pelo menos até o raiar do dia 26 de dezembro.
Bem, depois (por favor, tirem as crianças da sala) voltamos a ser o que realmente somos: a escória da raça, com as honrosas exceções de praxe.
natalistas ferrenhos que defendem o evento como um rito de passagem fundamental para as crianças. Bull shit. O Natal é festa que serve para bimbalhar, e bimbalhar estrepitosamente, o capital, o dinheiro, a exploração do homem pelo homem (apud o vintage ideário socialista). Sempre foi assim. Sempre será assim.
O cristianismo, religião que, em essência, prega o igualitarismo social entre os seres humanos [Karl Marx e Jesus Cristo teriam muito que conversar caso de encontrassem, ocasionalmente, num pub de Londres, ou num boteco de Madureira], está hoje tão distante do chamado espírito natalino quanto o ponto zero de todas as nossas galáxias está do ponto infinito de todas as nossas galáxias. 
Admito: sinto-me feliz nas festas de Natal de minha família. Mesmo com os azedumes costumeiros. As tensões contidas. As raivas guardadas temporariamente no fígado. Os sorrisos eventualmente forçados. Tudo isso emoldurado, por uma vontade sincera (a de nossa família) de que mais uma noite de Natal possa melhorar este mundo caótico no qual habitamos. Mas também fingimos (e é compreensível que finjamos) que uma noite de Natal a mais ou a menos possa nos mudar e, por tabela, mudar o mundo, mas também sabemos desde sempre, embora nunca queiramos acreditar: Natais não mudam merda nenhuma, e a miséria que perpassa o mundo não diminuirá milímetro sequer se os Natais deixarem de existir.
Mas voltemos às crianças, por causa de quem o mundo ainda tem algum sentido em se perpetuar: é por causa delas que o Natal é ainda festa que me interessa e me mobiliza, em termos.
Interessa-me por ser um ritual de passagem no qual em algum momento a criança deixará de crer que papais noeis existem – e, por tabela, em médio prazo, começarão a perceber: a vida, o rumo que imprimimos às nossas vidas é de responsabilidade apenas minha, sua e nossa – exclusivamente minha, sua e nossa, sem que papais noeis, papais, mamães, painhos, mainhas, tios-dindos queridos, avós e avôs abnegados e amorosíssimos possamos, embora queiramos, embora façamos e devamos fazer a nossa parte – e nunca deixaremos de fazê-lo.  
Nesse último Natal, o meu sobrinho-neto Augusto, 6 anos, presenciou o seguinte fato, da varanda do apartamento onde mora, e onde nos reunimos para a ceia: o papai-de-noel-de-aluguel - tão consumidos em períodos natalinos quando as calóricas rabanadas: aparentemente um homem comum que, de fato, era desceu do carro trajando roupa vermelha, e, em plena rua, terminou de fantasiar-se: pôs gorro, barbas brancas, caprichou no blush vermelho-carmim, enfiou travesseiro sobre a barriga, empunhou o cajado cravejado de strass e purpurinas, e subiu até o apartamento no qual ceávamos.
Feito eu, há 50 anos, Augusto talvez continue querendo crer que papais noeis existam e, que, deixando de crer na existência deles, os presentes natalinos desapareçam nos próximos natais.
A ótima notícia: na cabeça do menino de seis anos algumas sinapses começarão a se conectar a partir dessa visão inesperada. O que poderá significar que, a partir de agora, aos poucos, Augusto começará a perceber: não serão papais noeis, papai-&-mamãe, tios dindos, tias-dindas, avós abnegados e  amorosíssimos quem resolverão, de fato, a vida dele.
Tenho de informá-lo, é dever de seu velho tio-avô lhe dizer: a bola, meu querido e amado sobrinho-neto Augusto, está com você. Nós, familiares que lhe amamos com paixão imorredoura, continuaremos a fazer tudo que estiver ao nosso alcance para ajudar você atingir  os seus objetivos – e assim o faremos. Amém.
Mas a vida, no frigir dos ovos e do pipocar das vicissitudes,  é sua, meu querido Augusto. A vitória, também. Amém again.


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