segunda-feira, 30 de julho de 2012

VOCÊ BOTA A MESA, EU COMO, EU COMO, EU COMO, EU COMO VOCÊ (OU QUESTÕES ANAIS E ANUAIS)


Escrever é muito perigoso.
Escrever esconde muitas armadilhas.
Escrever expõe nossas almas pelo avesso – e o bom e perspicaz leitor, além de ler os livros que escrevemos, lê também os homens que os escrevemos.
O poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994) tinha extremo cuidado com as palavras que escrevia.
Tive o privilégio de conhecê-lo e de entrevistá-lo em 1989 no hotel onde morava em Porto Alegre. Jogamos conversa fora durante horas, e, lá pelas tantas, ele me disse, quase como se me revelasse um segredo: - Sabe qual é a palavrinha mais diabólica da língua portuguesa?
Não, eu não sabia, não assim, de chofre, sem tempo para pensar, e Quintana foi contundente: - Essa palavrinha é a conjunção como...
Abestei-me: o que poderia haver de tão diabólico assim nessa aparentemente simples e inócua conjunção?
Mário Quintana acrescentou, peremptório: - Não a uso nunca. Essa palavra é um perigo. Imagine usá-la antes de algum nome de mulher: -  Como Elizabeth Taylor, Margot também tem olhos verdes. Ou então antes de algum nome de homem: - Como Joaquim, Pedro também é ótimo aluno´.
E daí? – eu lhe perguntei – e ele esbravejou com o bom-mau-humor que o marcava àquela altura da vida: - Escrever isso é uma barbaridade, meu filho. Poderá sugerir que tenho relações sexuais e/ou antropofágicas com a Elizabeth Taylor e também com o coitado do Joaquim.
Não consegui evitar o riso, mas logo o engoli: percebi a perspicácia do poeta e a maneira íntima e obcecada com que lidava com as palavras e com os perigos que as palavras representam.
À guisa de bula: como (e aqui a conjunção tem uso completamente assexuado) se sabe, (eu) como é a primeira pessoa do indicativo do verbo comer, que como se sabe é verbo de via dupla, designa o ato de ingerir alimentos, e, também, o ato de copular.
Claro, a conjunção como nem sempre pode ser confundida com a primeira pessoa do indicativo do verbo comer. Mas o poeta Mário Quintana não quis nem saber. Abolira a palavrinha diabólica de seu cardápio poético desde sempre.
(É possível que Mário Quintana e Belchior nunca tenham conversado, ou sequer se encontrado. Se não, o compositor cearense não teria coragem de criar a belíssima canção Como Nossos Pais, na qual a expressão é repetida à exaustão, numa, digamos, celebração inconsciente da nossa eterna e irresolúvel condição incestuosa).
Por conta dessa conversa com Mário Quintana, sempre penso muito bem onde enfiar a palavra como. É preciso saber onde enfiá-la. Ou, à Quintana, nunca enfiá-la em lugar algum.
Não sou genial como o Mário Quintana  (e aqui enfio o como propositalmente, só para sacaneá-lo), mas tenho os meus caprichos: para mim a palavra mais diabólica da língua portuguesa, a que mais me assusta quando escrevo algum texto ou quando leio o texto de outrem, é a aparentemente insuspeita anos.  
Tremo de pavor quando flagro em textos alheios, mea culpa, ou até mesmo textos meus, ninguém é perfeito, frases assim (às vezes escritos por sumidades de nossa língua pátria): 1. Anos atrás, quando estive em Nova York, vi o John Lennon no Central Park. 2. Anos depois de me formar em Medicina eu me casei com a Laura. 3. Os anos não passam para Gilda. 4. Os anos passam depressa demais para mim. 5. Passam-se os anos.
O (meu) xis do problema e que, talvez, o (meu) Freud explique: quando leio textos assim enxergo frases assim: 1. Ânus atrás, quando estive em Nova York, vi o John Lennon no Central Park. 2. Ânus depois de me formar em Medicina eu me casei com a Laura. 3. Os ânus passam depressa demais para mim. 4. Passam-se os ânus.
A frase 1 me soa redundante: os ânus serão, até segunda ordem, sempre atrás.
A frase 4, em especial, me remete a sequência repelente: grupos de homens e de mulheres que passam os respectivos ânus no, por exemplo, corrimão dourado da escada de grande casarão.
Chego a temer pela integridade física dessas criaturas que passam os anos-ânus em lugares talvez não exatamente adequados.
E se, tal e qual o sádico Fradinho, criação imortal de Henfil, alguém resolver enfiar giletes e outros objetos cortantes nesses lugares onde alguns teimam em passar os anos-ânus?
Mas, quer saber? Cada um vive e escreve como quer. Já dizia o meu saudoso pai, passarinho que come pedra sabe o ânus que tem.
Tenho dito.



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