domingo, 8 de julho de 2012

MEU DIA DE IRMÃ DE CINDERELA (OU O PRIMEIRO MOCASSIM A GENTE NUNCA ESQUECE)


Era talvez a nona ou décima vez que tentava fazer o mocassim número 33 que minha irmã Luíza me trouxera do Rio de Janeiro de presente – a meu pedido. Mocassins eram o dernier cri da moda em meados dos anos 1960 e eu, aos seis ou sete anos de idade, queria ter mocassim para chamar de meu, custasse o que custasse – e era talvez a nona ou décima vez que percebia, acabrunhado, abatido, frustrado, a última das crianças de todo os sertão da Bahia: o mocassim número 33 não cabia no meu pé tamanho 33 nem que todas as vacas do mundo tossissem ao mesmo tempo – e eu orei contritamente para que todas as vacas do mundo tossissem ao mesmo tempo, e, magicamente, o meu lindo mocassim marrom, do jeito exato que eu sonhara, entrasse no meu pé, mas a porra do mocassim não entrava.
Todas as mulheres da casa foram chamadas para tentar enfiar o cobiçado mocassim no meu pé: minha mãe Águida; minhas irmãs Cecé e Luíza; as empregadas. Nada feito. Ninguém conseguiu. O sapato empacava não no calcanhar, e sim no alto do pé, mais alto e menos pé do que deveria ser.
Alguém, talvez  vizinha convocada às pressas para me enfiar o mocassim no pé, disse que eu tinha pé de bailarino, que bailarino era quem tinha pé assim, e eu quase mandei essa vizinha prestativa à merda, eu não queria ser porra de bailarino nenhum, queria mesmo era que aquela porra daquele mocassim entrasse no meu pé. Não entrou.
Último recurso, última tentativa, minha mãe raspou sabonete Eucalol, ensopou com água as raspas, e esfregou aquele creme cheiroso no peito do meu pé. A ideia era fazer diminuir o atrito entre o alto do meu pé e a parte frontal do mocassim, e, enfim, adentrar meu pé gorducho de bailarino sertanejo naquele mocassim trazido especialmente do Rio de Janeiro, e no qual eu queria enfiar o meu pé custasse o que custasse - e devidamente calçado, desfilar pelas ruas de Jequié a bordo daquela novidade que nenhum dos meus amigos, mesmo os mais ricos, possuíam.
(Gastaram-se dois sabonetes Eucalol inteiros e a porra do meu pé de gorducho bailarino sertanejo não entrou no mocassim recém-chegado do Rio de Janeiro,  e que tinha couro cheiroso, perfumoso, que ainda hoje minhas narinas, proustianamente, serão capazes de identificá-lo com aguda ponta de saudade e de melancolia).  
Minha irmã Luiza falou em pedir a alguém que fosse ao Rio de Janeiro para trocar o meu mocassim recém-presenteado por um número maior. Protestei. Não havia ninguém que fosse ao Rio de Janeiro por aqueles dias, e mais: já havia me apegado ao mocassim que não me coubera no pé. Não me cabia no pé, mas já era meu e ninguém o arrancaria de mim.  
A noite ia alta, e minhas irmãs desistiram: foram dormir.
Eu não. Obcecado, obsessão que me persegue, para o bem e para o mal até hoje, cinco décadas depois, tranquei-me no quarto pouco usado da casa onde se guardava velhas tralhas familiares, e continuei a tentar o impossível: fazer a porra daquele mocassim caber na porra do meu pé. Não coube.
Senti-me a irmã invejosa de Cinderela. Aquela cujo pé não coube no sapatinho que certo guapo e belo príncipe achara em algum lugar e colocara na cabeça, outro obcecado: casar-se-ia com a mulher cujo pé coubesse naquele sapatinho.
A irmã de Cinderela chegou a pensar em cortar naco do calcanhar para caber naquele sapatinho e conquistar o amor daquele príncipe encantado. Eu também pensei. Não o calcanhar. Não era o calcanhar que me impedia meu pé de caber naquele mocassim, do qual, pensava, nunca mais queria me separar. Era a porra do peito do meu pé.
Então pensei em ir até à cozinha, pegar o ralador de coco com o qual minha mãe preparava receitas deliciosas, e ralar o peito de pé, tirar-lhe o excesso: talvez se o peito de meu pé tivesse meio centímetro a menos, o mocassim entrasse.
Então fui até à cozinha. Peguei o ralador de coco. Voltei ao quarto – e comecei a ralar o peito do meu pé como se ralasse o coco para minha mãe preparar algum bolo de coco.
Na primeira tentativa a dor foi insuportável, e, resultado imediato, filete de sangue desceu por entre os dedos do pé e o tornozelo, e eu chorei, e chorei, e chorei  copiosamente: misturava dor física, frustração e pena de mim mesmo, garoto sem sorte, garoto de merda, que não tivera o direito de usufruir  o presente tão ansiosamente aguardado trazido do Rio de Janeiro pela irmã amada.
Sacolejado por essa equação escalafobética, adormeci. Ao acordar, no chão duro do quarto da casa quase nunca usado e no qual se guardava velhas tralhas familiares, avistei: 1. O par de mocassins emborcados, macambúzios, um longe do outro, como se tivessem acabado de enfrentar uma guerra, e, tristeza, serem derrotados. 2. O ralador de coco de minha mãe, com manchas vermelhas de sangue, se escondia embaixo de velha cama que cheirava a mofo. 3. O meu pé direito, doído e machucado, com filetes de sangue coagulados que se espalhavam grosseiramente enfileirados pelos meus dedos e meu tornozelo.
A dor continuava.
Primeiro aprendizado: todas as dores continuam, o sono nunca acaba com as dores, apenas se propõe a adiá-las por algumas horas.
Segundo aprendizado (o mocassim continuava a não caber no meu pé de peito alto, e nunca caberia): nem tudo o que se deseja é alcançável.
Depois que o meu pé sarou, voltei a tentar enfiar o mocassim no meu pé. Ene tentativas. Ene fracassos.
Até que desisti. Resolvi colocar o par de mocassins ao lado da minha cama, e contemplá-los sempre que pudesse. Tão perto e tão longe: ao alcance da mão, mas não podia calçá-los. Às vezes pegava-os, trazia-os à altura do meu peito, cheirava-os, e esse cheiro me inebriava. Abraçava-os, e dormia com esses sapatinhos de sonho embaixo do pescoço.
Os mocassins que nunca consegui calçar ficaram algum tempo ao meu lado. Talvez um ano. Talvez dois.
Até que um dia, triste, mas determinado, voltei a encaixotá-los,  e os abandonei, solitários, no quarto da casa quase nunca usado e onde a família costumava guardar as tralhas familiares não mais utilizadas, mas que talvez um dia voltassem a ser – nunca se sabe.
Nunca mais voltei a vê-los.

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