quarta-feira, 20 de junho de 2012

A PELEJA ENTRE A MORTE E O VELHO QUE NÃO QUER MORRER (OU PEQUENO GRANDE HOMEM)

Nunca esqueço a primeira vez que o vi. Andava com passos curtos, mas firmes. Usava chapéu de cor indefinida cuja parte frontal da aba cobria-lhe parcialmente a testa. Os óculos pousados sobre o meio do nariz deixavam-lhe escapulir olhos azuis ainda belos, mas meio vítreos como se fossem quebrar a qualquer momento. Vestia bermudas: as pernas finas e curtas me passavam a impressão de que iriam bambear e desmoronar a qualquer momento. Vinha em minha direção na Enseada de Botafogo, trôpego, meio cambaleante, com a mão direita tremendo como se estivesse tiritando de frio, ou louca para fugir-lhe para sabe-se lá onde, talvez cansada de pertencer a um mesmo homem há tanto tempo. Era um velho.
Talvez tivesse oitenta anos. Talvez tivesse oitenta e alguns anos. Talvez tivesse noventa anos. Temi que fosse cair. Por um momento imaginei-o se desintegrando no segundo seguinte. Ou a mão direita dele lhe escapando do braço direito, atravessando a pista cheia de carros velozes, e sendo atropelada por um ônibus.  E se os olhos azuis dele de fato se quebrassem? Ou, pior, se lhe escapassem das órbitas e imergisse nas areias tépidas da praia? Se isso acontecesse talvez  tivesse de ser eu que procurasse os olhos em fuga dele, já que ele ficara sem olhos, logo, totalmente cego. Nada disso aconteceu. Continuou a vir em minha direção na Enseada de Botafogo, e passou velozmente ao meu lado, sólido como uma rocha sacudida por tremor de terra, e, delirei, me olhou com raiva o velho.
Nas outras vezes que revi o velho, e o revi e revejo o velho sempre, percebi: não era olhar de raiva coisa nenhuma. Era apenas o jeito arrevesado e pessoal de ele olhar o resto do mundo. Àquela altura da vida tinha o direito de olhar o resto do mundo do jeito que bem quisesse e entendesse. Andava intrepidamente, e sempre pensei em tentar ajudá-lo a manter o equilíbrio, a lhe dar o meu braço para apoiar-se. Mas sabia que odiaria isso. Ele podia saber que não duraria muito,  que tinha mal de Parkinson, que não enxergava muito bem, que as perninhas curtas poderiam bambear e desmoronar a qualquer momento, mas sempre continuava a vir em minha direção na Enseada de Botafogo, e passava velozmente por mim como uma rocha sacudida por forte tremor de terra, e sempre me olhava com raiva que não era raiva, era apenas o jeito de ele olhar os outros e o resto do mundo.
Estava sempre sozinho, e tão convencido dessa solidão, que pensei que fosse sozinho, que não tivesse nenhum parente, que já nascera assim: velho e só. Até que um dia ele sumiu. Pensei que tivesse morrido e que a mão direita tivesse sido obrigada a parar de desejar fugir. Passaram-se semanas, talvez um mês, e nada de o velho vir novamente em minha direção na Enseada do Botafogo. Senti saudades do velho. Percebi-me como se eu me tornasse ele daqui a vinte ou trinta anos, e gostaria de me tornar aos oitenta, ou oitenta e alguns anos, um ele assim, ágil, serelepe, fugindo da morte mesmo que a morte sacudisse minha mão direita como se sacudisse o rabo do diabo.
Até que um dia o velho reapareceu. Acompanhava-lhe, cerca de trinta ou quarenta centímetros atrás, homem bem mais jovem. Talvez filho. Neto. Empregado. Enfermeiro. Namorado. Raramente trocavam palavras. Nunca o velho deixava o acompanhante ultrapassar-lhe, e o acompanhante sabia que não deveria nunca ultrapassar-lhe. Parecia pas-de-deux rigidamente marcado, sem a mínima chance de algum passo em falso ou fora da marca imposta pelo coreógrafo.
Acostumei a vê-los diariamente, no mesmo diapasão, no mesmo ritmo, na mesma coreografia. A mão direita do velho parecia tremer cada vez mais. Os olhos do velho revelavam terror contido cada vez mais contido. As pernas curtas e rápidas do velho, pensava, se partiriam antes que eles passassem por mim, mas eles passavam por mim e as pernas curtas e rápidas do velho pareciam inquebrantáveis, e eu desejei ardentemente ter pernas assim quando eu me tornasse ele. 
Há dois meses o velho voltou a sumir. Não tive dúvidas: o velho finalmente morrera. Pensei de imediato na mão do velho finalmente descansada, imóvel, sem ter de se mexer três a quatro vezes por segundo, o que certamente a deixava exausta. Avistei o velho enfiado em pequeno caixão, trajando paletó preto, gravata branca e sapatos de verniz pretos, mas com os olhos azuis ainda abertos como se continuasse a ter aquele olhar arrevesado sobre o mundo mesmo depois de morto. Imaginei o velho puto da vida por não poder ele mesmo fechar o próprio caixão, se ele pudesse fecharia o próprio caixão o velho.
Não pude evitar: senti saudade do velho.
Há duas semanas o velho ressuscitou: ele e a mão que quer fugir da mão do velho vieram em minha direção na Enseada do Botafogo. Continuavam acompanhados. Mas havia elemento novo no pas-de-deux que antes parecia rigidamente coreografado. O velho agora permitia ser amparado pelo homem mais jovem que o acompanhava, e que lhe segurava o braço esquerdo com força, como se ele tivesse agora o medo que sempre tive: que o velho poderia se desintegrar a qualquer momento.
De lá para cá, o pas-de-deux se repete, no mesmo ritmo, no mesmo diapasão, e certa impressão me perpassa a mente: o velho, valente, parece que nunca se desintegrará.
Então imagino a seguinte cena: o velho, que mora aqui bem ao lado, é visitado pela morte toda santa noite. A morte bate no quarto do velho, uma, duas, três vezes, e o velho nunca acorda, nunca abre a porta, e a morte desiste e volta na noite seguinte quando tudo se repete.
O velho quer que a morte desista.



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