segunda-feira, 4 de junho de 2012

INÚTIL E LONGA JORNADA SERTÃO ADENTRO (OU DECIFRAR-SE É DEVORAR-SE)


É um sertão longe de virar mar. Se é que virará mar algum dia.

Tomara que não.

Tomara que sim. 

O sertão sem mar é puro osso – sem gordura alguma. Afundo-me exatamente neste momento no olho do sertão; no ventre do sertão; no cerne do sertão; nas brenhas intestinas do sertão da Bahia. 

O sol inclemente torna tudo brasa ardente; e o osso fica ainda mais osso, e osso ardente. 

Atravesso o ar denso do sertão baiano a passos largos, a galope, a sete quilômetros por hora. Suo a camisa. Preciso suar a camisa.

Preciso me liquefazer. Preciso me transformar em água e me deixar afundar nessa água, e beber dessa água, e navegar nessa água. 

Exorcizo todos os diabos da civilização, seja que diabo de civilização for.  Preciso exorcizar os diabos da civilização, seja que diabo de civilização for. 

Preciso me tornar paisagem, me tornar a caatinga vigorosa que forra os morros que cercam a cidade que queima feito brasa ardente, feito osso ardente.

Atravesso a cidade sertaneja onde passei a infância. Lambo cada fiapo de memória que escapa de cada esquina; de cada cheiro; de cada bimbalhar dos sinos da igreja matriz, de cada ruga decifrada no rosto de algum amigo de infância.

Volto aos locais dos crimes. Localizo cada casa onde morei, e circulo pelas cercanias dessas casas onde morei como se circundasse todas as pessoas que fui e sou, e penetrasse em todas as frestas dessa pessoa que fui e sou.   

Penetro nas igrejas que me fizeram crer, e eu cri – mas já descri – que tudo dará certo para quem trilha o caminho do bem. Menos verdade. Melhor, mas desabsurdo,  crer: a terra, e não o sol, é o centro do universo. 

Teorema irrefutável: a vida é barco à deriva, no qual todos soçobraremos. Somos cabras marcados para morrer. Não adianta chorar. Não adianta se queixar ao bispo. Não adianta imprecar contra os caprichos do destino. 

Noblesse oblige, igrejas, principalmente as da minha infância, quando nossas terras eram mais garridas, me reconfortam: povoo-me de esperanças. Chego a crer, por alguns segundos: poderá haver alguma redenção no final do filme e, sabemos, e eventualmente brincamos de fingir que não sabemos: não haverá redenção nenhuma no final do filme.

Fazer o quê? Não somos de ferro ou de aço inoxidável. Precisamos nos autoenganar de quando em vez. (Ou sempre.) De preferência, na veia.

Farejo os botecos e as portas de botecos nos quais adolesci, e onde afogamos – eu, R., F., O., M., A. – e J.H., que morreu de Aids – mágoas  precoces abissais em jatos de cervejas e vômitos. 

(Devo confessar: esse cheiro memorial que mistura cerveja e vômito eventualmente me entorpece).

Atravesso a ponte alta da qual muita gente despencou por vontade própria rio abaixo – e vejo agora rio esquálido, outrora caudaloso, se arrastando lerdamente tal e qual serpente bêbada e famélica expulsa do paraíso a cacetadas – e vislumbro nesse movimento algo de mim. 

Escalo o ponto mais alto da cidade – e contemplo ruas e becos. São como me fossem cicatrizes. Ou traços do meu futuro desenhados nas palmas das minhas mãos. 
    
Nessas introspectivas incursões viceja certa intenção e certa vontade delirante de tentar armar quebra-cabeça de mim mesmo – melhor, mais prudente, mais possível, dançar can-can no fio de navalha afiada. 

Trata-se de quebra-cabeça impossível de armar; que, aliás, não carece ser armado nunca; que não deve ser armado nunca, sob pena de perdermos o viço, o vigor, o tônus, o pathos, e, devidamente, decifrado, só nos reste morrer.

Decifrar-se inteiramente é morrer, é deixar-se devorar pelo não mistério. 

Melhor,  ou menos pior,  é se deixar decifrar aos pouquinhos, sem pressa de chegar.

O sertão é o meu maior oráculo, mas é oráculo que visito com parcimônia, uma ou duas vezes por ano.

O sertão sempre tem, e sempre terá, muito a revelar a quem o busca como espelho. 
  
Enquanto isso a vida pulsa forte lá fora – e viver é navegar sem carta de navegação completamente desenhada, completamente definida.

Ou seja, nunca sabemos exatamente o que haverá logo depois da próxima curva. 

Oba!

  

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