segunda-feira, 11 de junho de 2012

O CACHORRO QUE É UM NEGRO GATO DE ARREPIAR (OU A REVOLUÇÃO DOS BICHOS)


O mar não está pra homem.
Os seres humanos dignos são espécie em extinção – são os dinossauros do século 22. Vide a canalhada de políticos, advogados, jornalistas, médicos,  et caterva, ordinários e escroques e safados que assolam o Brasil, de norte a sul, de leste a oeste.
Como diria o meu saudoso pai: se puséssemos chocalhos nos pescoços dos elementos vis e salafrários que nos cruzam os caminhos vida afora não dormiríamos em paz, tal a barulheira infame que essa corja provocaria – fosse na calada da noite, fosse no rumorejo do dia.
Não escondo meu asco pela raça humana – com raras e honrosas exceções – e minha paixão irrestrita pelos bichos, com os quais temos muito o que aprender – e com os quais tenho aprendido muito nos últimos dez anos – quando a porca torceu o rabo para o lado de cá – e quando a cobra fumou embaixo dos meus fundilhos - e quando dancei na ponta da rebimboca da parafuseta. Detalhe: sem cair do salto.
Na minha mais recente imersão sertão baiano adentro – afora os meus parentes queridos – com gloriosos destaques para o meu irmão amado, José Crispim, e minha cunhada amada Mary, e afora os meus amigos queridos de infância – com gloriosos destaques para o casal Renan e Ana Angélica –, caí-me de amores por dois cachorros e por uma galinha d´angola.
Conheci essas três apaixonantes criaturas na Fazenda Serra Verde, a 17 quilômetros de Jequié. O lugar pertence a meu irmão, esposa, filhas e netos. Trata-se de um dos lugares mais bonitos do mundo. Tem paisagem inebriante, com morros e vales que lembram o cenário de A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965, dirigido por Robert Wise, protagonizado por Julie Andrews). Abriga natureza tão prodigiosa que não nos resta outra saída: a não ser crermos que um Deus, seja qual Deus for, deu o pontapé inicial nessa bola de basquete gigante chamada Terra na qual habitamos e no qual viajamos à deriva por galáxias sem fim.
A galinha d´angola me encantou pela paixão imorredoura – provavelmente não correspondida - que nutre pela caminhonete Hi-Lux prateada que pertence a meu irmão. Assim que tal automóvel adentra a cancela da Fazenda Serra Verde, a bichinha se assanha de tal maneira, se excita de tal maneira, que corre em disparada ao lado do carro até o carro parar em frente à casa da fazenda. Nesse momento, a galinha d ´angola (ou cocá, ou sakué, como se chama a ave na região) estaciona, e, em seguida, permanece contrita e extasiada e petrificada diante do que a bichinha parece pensar ser a maior e a mais brilhante de todas as galinhas d ´angola que os olhinhos dela jamais viram.
Na cabecinha de vento dessa inusitada galinha d´angola a caminhonete Hi-Lux prateada de meu irmão parece se corporificar como a mais completa tradução de Deus que os olhinhos dela poderão contemplar. Cada um tem o Deus que precisa ter.
O êxtase da galinha d´angola diante do Deus-Hi-Lux só é interrompido quando o filhote de cão da raça Boiadeiro Australiano – (Australian Cattle Dog, como os gringos preferem chamar os integrantes dessa raça de cachorros) – que atende pelo nome de Xerife entra em cena e a põe para correr, apavoradamente.
A maior diversão desse cão que amaciou o meu endurecido coração de quase-velho: correr atrás das galinhas d ´angola ou não d´angola que sobem e descem às carreiras as serras e vales da Fazenda Serra Verde.
Xerife não gosta apenas de correr atrás de galinhas d ´angola ou não d ´angola. Adora se engalfinhar nas canelas dos seres humanos que o rodeiam – e esperar que alguém lhe faça cafuné. Torço para que se engalfinhe sempre, e unicamente, nas canelas dos seres humanos que não o machuquem ou o magoem ou o afastem e pontapés.  
Foi amor à primeira vista: ao se engalfinhar por minhas canelas de ser humano sequelado pelas diatribes da sorte, mas ainda minimamente pródigo e maximamente generoso, dei-lhe em troca afagos mil. Deu no que deu: um xodó que o fazia ganir lamentosamente quando me afastava da casa da fazenda e subia e descia as serras e vales das cercanias.
(Parti com o coração partido, e com um amigo a mais pendurado no lado esquerdo do peito – espero que o mesmo tenha ocorrido com o amado Xerife).
O amor mais, digamos, comprometedor foi com o rotweiller Hulk. Negro como as asas da graúna, é filhote ainda, mas capaz de, ao se levantar para me saudar e lamber minhas faces, ficar exatamente da minha altura (1,77cms). O meu irmão tem jeito próprio de espantá-lo e fugir do assédio carinhoso desse cão que tem fama de mau – (mas mau é o dono do rotweiller – nenhum bicho é mau, quem é mau é o homem que o cria à sua imagem e semelhança): tira o chapelão de couro da cabeça, e o agita em direção ao cachorro-negro-gato-de-arrepiar cheio de amor pra dar – e ele, brincalhonamente e desajeitadamente, foge.
Desavisado, sem saber do truque usado por meu irmão, deixei-me abraçar e me envolver pelo rotweiller Hulk, e quase fui ao chão, a nocaute  – e quase, eu e Hulk, nos beijamos na boca.
Aos poucos, aprendi a lidar com o desjeito do filhote típico de todos os cães filhotes, e nos entendemos maravilhosamente bem. Até demais. Em certo momento de enlevo mútuo, eu sentado em cadeira de lona daquelas de diretor de cinema na varanda da fazenda, e ele aos meus pés, arfando e semicerrando os olhos diante dos meus afagos caudalosos de ser humano carente, o inesperado se deu. Hulk se levantou lentamente, e fez xixi nas minhas canelas.
O que em linguagem canina significa: - Você é meu e de mais ninguém!
Ralhei com ele, urrei ´sai daí  Hulk´,  e lhe ameacei com o boné marrom que arranquei do meu cocuruto às pressas, e o cachorro-negro-gato-de-arrepiar saiu esbaforido, mas logo voltou – e eu gostei que ele tivesse logo voltado.
Até segunda ordem, sou bom sujeito, logo não quis despertar em Hulk sentimentos aos quais não poderia corresponder – dois dias depois voltaria para o Rio de Janeiro e não sabia exatamente quando o veria outra vez. Então estabelecemos certo código de relacionamento: quando queria afagar-lhe a cabeça bela e negra, o fazia como se estivesse acarinhando a face de Deus – se Deus tivesse alguma face. E ele deixava a língua descer-lhe sem rumo pela bocarra cheia de dentes afiados e os olhos transcenderem como só os olhos dos cachorros transcendem.
Ao encarar-lhe no fundo dos olhos, perguntava-lhe: - Há alguém aí? Há alguém aí?
(Perguntava-lhe, mas sabia a resposta: haverá sempre um homem ou uma mulher perdido, desencarnado, desnorteado, olhando pelos olhos de um cachorro; seja do rotweiller Hulk; seja do boiadeiro australiano Xerife; seja do golden retriever Martin – de quem, trapaças da sorte, fiquei órfão de cão vivo há pouco mais de um ano).
Hulk não respondia se havia alguém ali, mas os olhos dele se cravavam nos meus como se fossem duas estacas pontiagudas, mas que não feriam, mas que não faziam sangrar. Era como se estivéssemos namorando, sem namorar. Apenas troca de afetos e de carências.
Quando o queria à distância, Hulk sabia ouvir nãos. Ao se aproximar de mim, cheio de boas intenções tipo me lamber a face ou enfiar o rosto entre as minhas pernas para que eu a afagasse, eu punha as mãos para trás e dizia: - Não, não, não!
Desolado, entristecido, mortificado, Hulk se afastava, e se sentava a um metro de mim. Status quo: contemplativo, extático, embevecido – como se ele fosse a galinha d ´angola e eu fosse a Hi-Lux prateada de meu irmão.
Foi bom enquanto durou. Na hora da partida, Hulk me encarava com olhar  de profunda melancolia. Eu também o encarava com idêntico olhar e idêntico sentimento. Sabia, e sei, que demoraria, e demorará, para que alguém me olhe/olhasse, no Rio de Janeiro ou alhures, com esse olhar penetrante e transcendental,  cheio de boas e más intenções que só os olhares apaixonados emanam.
Ao fechar o portão da casa da fazenda, fiz-lhe quase derradeiro cafuné – e Hulk me olhou agradecido e talvez apaixonado.  Não resisti: fiz-lhe outro cafuné. Antes que chorasse, corri para a caminhonete Hi-Lux prateada de meu irmão, que já rugia como leão feroz, prestes a partir.
Finalmente partimos.
Ao olhar para trás, avistei:
1) Hulk correndo desesperadamente pelo cercado que margeia a casa da fazenda, parecendo louco para escapulir e vir embora comigo para o Rio de Janeiro.
2) A galinha d´angola apaixonada pela Hi-Lux prateada de meu irmão correndo rente à roda traseira, em transe, em êxtase, como se corresse atrás do Deus que lhe era possível.
3) O supersimpático Xerife correndo atrás da galinha d´angola; não que quisesse devorá-la; queria apenas brincar; queria apenas atestar para os devidos fins: os  cães são felizes.
De fato: temos muito o que aprender com os bichos.








  
  





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