domingo, 8 de abril de 2012

AS GARGALHADAS ÁSPERAS DE DEMENTE DO VENTO QUE LEVA TUDO (OU MORTE NO PALCO)

Fujo do vento, como o diabo foge da cruz.
Temo o vento.
O meu medo é que o vento me vergue, me quebre em dois, em três, em mil, e espalhe meus pedaços pelos ares, e esses pedaços sejam devorados pelos biguás que voam sobre a Baía de Guanabara.
A poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930) escreveu belo verso sobre a insaciabilidade desse ar-em-frenesi quando se agita e desse ar-em-frenesi quando enlouquece:
´O vento passa a rir, torna a passar
em gargalhadas ásperas de demente;
E esta minh´alma trágica e doente
Não sabe se há de rir/se há de chorar!´
(A chuva me aquieta). O vento me inquieta.
Esse temor talvez advenha das sentenças ameaçadoras que me bradavam na infância.
Ao congelar um ar zarolho de colega de escola.
Ao imitar um mendigo que mancava.
Ao macaquear o jeito de gaguejar da vizinha.
Ao matraquear palavras sem sentido como se fosse louco.
Ao fingir que morria e que caía espetaculosamente morto no chão.
Ao cometer qualquer uma dessas sandices, havia sempre voz superegoica de plantão que tonitruava, como se fosse a voz de Deus, mas era mesmo a voz de minha mãe, das duas irmãs, ou de algum pequeno amigo temente do vento:
- Para de fazer isso. Se o vento passar por aqui agora, você ficará zarolho pelo resto da vida. Se o vento passar por aqui agora você vai mancar pelo resto da vida. Se o vento passar por aqui agora você será gago pelo resto da vida. Se o vento passar por aqui agora você se tornará um louco de rua pelo resto da vida. Se o vento passar aqui agora você nunca mais voltará a viver.
Parava a brincadeira na hora. Cria piamente: se o vento passasse e me flagrasse nessas situações, o vento tinha o poder de me transformar, num piscar d´olhos, em zarolho, em aleijado, em gago, em louco, ou em morto.
O vento podia tudo. (O vento pode tudo)
Nas minhas caminhadas diárias pelas ruas do Rio de Janeiro nada me acabrunha, nada me abate, nada me imobiliza. Nem chuva. Nem ladrões-de-bicicleta-roubando-correntinas-e-celulares-no-Aterro-do-Flamengo. Nem relâmpagos. Nem trovões. Mas o vento, sim: quando a ventania bate forte, rezo dois pais-nossos, duas ave-marias, me apego a Santa Bárbara - e me enfio num abrigo qualquer até que o vento se amanse e vá embora, e eu possa voltar a respirar em paz.
Lembrei esse vento que tudo pode, e que transforma brincadeiras e representações em situações reais ao ler notícia no jornal de hoje: em Itararé, interior de São Paulo, o ator Thiago Klimeck se enforcou acidentalmente ao representar a cena do enforcamento de Judas Iscariotes num espetáculo da Paixão de Cristo.
O ator não corre risco de morte. Mas a morte passou por perto, a um nanomilímetro do pescoço do sujeito, certamente soprada pelo vento, esse vilão alado e que pode tudo e do qual fujo como o diabo foge da cruz.
Lembrei também outro evento ocorrido há algumas décadas, talvez começo dos anos 1980, em Salvador, Bahia.
Ok, o fato assustador aconteceu dentro de um teatro – a Sala do Coro do Teatro Castro Alves, durante a representação de uma peça cujo nome não me lembro mais – e ventos não costumam circular por salas de teatro de portas fechadas.
Mas quem sabe não houvesse imenso ventilador ligado para mitigar o calor do verão baiano, e esse vento emanado pelo ventilador tivesse gerado essa ocorrência bizarra?
A ocorrência bizarra: o personagem interpretado pelo ator Ed Ribeiro (jovem simpático e querido de cabelos encaracolados com quem tomei algumas cervejas geladas em botecos da Rua Carlos Gomes ou do Beco dos Artistas) morria em cena. Ressurgia alguns minutos depois, dentro de caixão, em velório cenográfico que marcava o final da peça.
Na hora dos aplausos, todos os atores se colocaram em posição de agradecimento ao público. Todos, menos Ed Ribeiro.
Pasme, caro leitor: o ator Ed Ribeiro teve ataque cardíaco fulminante, e morreu dentro do caixão, silenciosamente, em cena aberta, num mix de ficção e realidade que nem a mais rocambolesca literatura seria capaz de criar.
Não estava na Sala do Coro do Teatro Castro Alves nessa noite. Mas quando soube, pensei no vento, no poder de vida e de morte do vento, e em como fora bom que me avisassem sobre o poder de vida e de morte do vento nos meus tempos de criança.
PS1: Em 1982, durante as filmagens de No Limite da Realidade, filme em quatro episódios, dirigido por Steven Spielberg, John Landis e Joe Dante, a realidade ultrapassou todos os limites: em certa cena, o personagem interpretado por Vic Morrow (1929-1982) salvava duas crianças de algum destino cruel, e as transportava, de helicóptero, rumo a alguma eventual redenção.
O helicóptero, depois de pouco tempo de voo, caiu.
Ficou totalmente destruído.
O ator e as duas crianças-atores morreram.
PS2: Em 1993, o vento soprou novamente: durante as filmagens de O Corvo (The Crow) o ator Brandon Lee (1965-1993) foi, num assassinato de mentirinha, coisas da vida & da morte, assassinado de verdade por bala de fuzil disparada – acidentalmente? – por colega de cena.
A poeta Florbela Espanca tem razão:  o vento sempre ri, e ri com gargalhadas ásperas de demente – e talvez pelo fato de o vento ter rido dela com essas garras de demente, tenha soçobrado tão precocemente: numa terceira tentativa de suicídio, morreu aos 36 anos.
Quem quiser chamar o vento, como Dorival Caymmi o fez em belíssima canção (O Vento), que o chame. Eu não.

  

2 comentários:

  1. Você Rogério, sempre bom, cuidadoso, literato de de mãos vazias, porque tudo de bom em suas mãos, você coloca ou no papel ou na tela. E pra alegria da gente, sempre colocando outro punhado de belas palavras na mão e novamente coloca onde deve ser colocado e só posso colocar você no patamar dos amigos escritores inteligentes. Gostaria até, como presidente da Academia Itapetinguense de Letras, receber alguns exemplares seus. Abraços. AIL, rua marechal Floriano Peixoto, 46, centro Itapetinga,Ba.

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  2. Adorei o texto, Rogério. Reli hoje, logo depois de ter visto a notícia de que o ator da Paixão de Cristo, Thiago Klimeck, não resistiu. O "vento-vilão" fez mais uma vítima fatal.

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