domingo, 25 de março de 2012

A VISITA DE EU-AOS-TREZE-ANOS NUMA TARDE DE ANGÚSTIA (OU O IMPOSSÍVEL ACONTECE)

Pura rotina: o cronista se debate na angústia diária que lhe entra corpo adentro, sempre, sabe-se lá por que mistérios, entre uma e duas da tarde. Chega assim de mansinho, como quem não quer nada. Primeiro, um gosto amargo na boca que logo se transforma em náusea e desce esôfago abaixo, e, em poucos segundos, ocupa todos os seus espaços internos e externos.
Da mesma forma com que se infiltra nos meus rins e nos meus testículos, percebo-a deitada no sofá da sala; entre uma garrafa de suco de laranja e outro de maracujá na geladeira que ocupa a pequena cozinha; ou no rosto desolado do cachorrinho de gesso que amo tanto, comprado numa loja de  shopping vagabundo de Brasilia no fim do século passado.
Enfim, se algum desses institutos de pesquisa, desses que vivem se metendo na vida alheia, que vivem se metendo onde não são chamados, me ligar qualquer dia a essa altura da tarde, e me perguntar o meu estado civil, responderei: - Meu estado civil é angustiado. Vai encarar?
A mocinha, ou o rapazinho, do outro lado da linha, entrará em pane. As únicas respostas previstas no Manual de Instruções lá deles são solteiro, casado, divorciado e viúvo. Logo,  o rapazinho e a mocinha certamente nem saberão o que significa a palavra angustiado, entrarão em pane, e sucumbirão sobre a cadeira desconfortável na qual se assentam.
Haverá, claro, sempre mocinhas e mocinhos menos timoratos que insistirão: - Senhor, o senhor errou a resposta. Só existem quatro estados civis possíveis na vida social: solteiro, casado, divorciado e viúvo. Nosso manual de instruções não inclui a condição de angustiado. E, demonstrando certa agilidade mental, insistirão: - Claro, o senhor poderá ser um solteiro angustiado, um casado angustiado, um divorciado angustiado, ou um viúvo angustiado. Em qual dessas categorias o senhor se encaixa?
Mas a angústia que me arrebata me transforma num monstro misantropo. A ligação veio, merda, antes que pudesse tirar o pequeno comprimido de tarja preta da gaveta da cômoda do quarto, e tomá-lo – e, assim, sentir a angústia, esta marafona nada esquálida, descendo meu corpo abaixo como a água suja que escorre pelo ralo do banheiro durante o banho.
Logo, a minha angústia estava na potência máxima, e embora fosse, e seja, cidadão civilizado e adepto da gentileza máxima, e incapaz de matar uma barata se ela me cruzar o caminho numa viela insalubre do Rio de Janeiro, não titubeei, e atirei para matar: -  Porque você não vai tomar no olho do seu cu?  
Foi imerso neste estado de espírito que o interfone tocou. Pensei em não atender. Mas os porteiros do prédio onde moro sabem que estou em casa a esta hora da tarde, Então atendi. O seu Antonio Menezes, o simpático porteiro cearense que tem o mesmo nome e sobrenome que um dos meus tios paternos, falou num tom algo debochado: - Seu Rogério, tem um garoto aqui querendo falar com o senhor. É a sua cara. Parece até seu filho. Mas perguntei a ele se ele era filho do senhor, e ele disse que não. Ele disse que é o senhor em pessoa, que é o senhor quando o senhor tinha treze anos.
Diminuindo o tom de voz, na intenção, presumi, de que o garoto não o ouvisse, o seu Antonio Menezes acrescentou: - Deve ser maluco. Pensei até que fosse um menino de rua querendo lhe atazanar a vida, e nem mesmo lhe interfonar. Mas o garoto está bem vestido e se parece demais com o senhor. O senhor tem certeza de que não tem um filho por aí que o senhor não conhece?
Com a angústia me embolando cérebro, coração, estômago e instestinos, ainda tentei manter a calma: - Não, senhor Antonio Menezes. Sou tão pai de alguém quanto sou a reencarnação terrena de Santa Madalena.
Seu Antonio Menezes foi então direto ao ponto: - Então o que faço com o garoto? Mando subir, ou lhe aponto o caminho da rua?
Disse num átimo (resistir a uma provocação dessas numa angustiante tarde de meio de semana quem há de?): - Mande subir!
(Mas, diligentemente, quase em pânico, este cronista correu para o quarto, arrancou de dentro da gaveta da cômoda quatro pequenos comprimidos, os fez descer goela abaixo; quase engasgou; pegou um outro, sublingual, e enfiou embaixo da língua; engatou uma terceira em direção à cozinha, abriu a geladeira, sorveu meio litro de suco de maracujá light, e esperou a campainha da porta tocar. Tocou.)
Temi abrir a porta do apartamento como se temesse abrir a porta do inferno, e Cérbero me esperasse e me engolisse com sua bocarra de hálito fétido e cheia de dentes afiados. Mas abri (alguma coragem já me invadia; o comprimido sublingual tem efeito bem rápido) – e não era, meno male, Cérbero.
Era, pensei, o meu querido sobrinho (e afilhado) Gustavo, advogado, que mora em Salvador, e é filho de minha irmã Cecé.
Mas que diabos Gustavo viera fazer no Rio de Janeiro, sem avisar nem nada? E, mais grave ainda, como aquele galalau de quase 1,90 de altura e 28 anos de idade conseguira se enfiar dentro daquele corpinho de menino de não mais de 13 anos e que me olhava como se eu fosse o espelho dele?
Só me restou gaguejar: - Quem é você?
Ele: - Não me reconhece? Você mudou tanto assim? Eu sou você aos treze anos de idade.
Eu: - Quem mudou tanto assim foi você. Aos treze anos eu era muito mais gordo, os meus colegas tiravam onda de minha cara por causa disso. E você está magro demais para ser eu nos meus treze anos.
Ele: - Você se achava gordo. Na verdade, aos treze anos, você tinha exatamente este corpo que tenho agora.
Eu, completamente alucinado, tentei fechar a porta na cara daquele garoto maluco, mas não conseguia fechar a porta na cara daquele garoto maluco, e, entre um arfar de pânico e um grito sufocado, comecei a perceber: aquele garoto maluco tinha olhar extremamente familiar: é o olhar que eu vejo no espelho desde que me entendo por gente.
Mas não me entreguei, e disparei: - Você é um impostor. Deve ser algum bandidinho de favela que descobriu que se parecia comigo e quer me arrancar alguma grana. Tire o seu cavalinho da chuva quando a isso. Estou fodido, falido, quebrado, não tenho dinheiro algum. Como diria o meu pai, estou mais duro do que pau de tarado.
Ele: -  Você se lembra também o que ele dizia quando a gente estava numa situação confusa e complicada? Ele dizia que a gente estava mais perdido do que cego em tiroteio.
O garoto maluco parecia saber demais. Resolvi testá-lo. Com todos os medicamentos tomados já devidamente pulverizados nos meu cérebro, tomei-me de estado de espírito menos angustiado e menos persecutório, e me perguntei: - E se esse cara for realmente eu-aos-13 anos? A vida tem seus mistérios, pois não?
Deixei que ele entrasse. Mas não tranquei a porta, apenas encostei-a levemente. se eu-nos-meus-treze-anos tentasse me enfiar faca afiada na minha jugular, fugiria lepidamente, ou então me jogaria pela janela.
Já mais seguro (o que seria da humanidade sem a farmacologia antidepressiva?), lhe lancei um desafio: - Vou lhe fazer algumas perguntas a meu respeito. Se você responder a todas corretamente, talvez acredite que você seja eu-aos-treze-anos-de-idade. Combinado?
Ele sorriu ceticamente (e eu já tinha visto aquele sorriso cético antes milhares de vezes, porra!), pediu educadamente para sentar, e eu permiti. Disse que estava com muita sede. Perguntou: - Você tem guaraná Frattelli Vita ou gasosa de limão bem gelada? Ou Mirinda?
Fui categórico: - Deixei de beber refrigerante há anos. Você devia saber disso se realmente você fosse eu-aos-treze-anos. Tenho suco de laranja natural e suco de maracujá também natural, sem conservantes.
Ele: - Fazer o quê? Com a sede que estou eu bebo qualquer merda.
Servi-lhe do suco de maracujá, e ele bebeu, e ele fez uma careta horrível, e ele cuspiu tudo fora, sujando o meu tapete persa comprado a alguns tostões no Saara: - Tá azedo demais cara. Você está tão fodido assim que nem açúcar tem mais em casa?
Eu: - Não uso açúcar há anos. Só adoçante.
Ele: - Porra, cara, não era isso que eu queria ser quando crescesse. Você virou um chato, uma maricona que acha que trocando de veneno nunca morrerá. Não bebe mais refrigerante, não usa açúcar. Quantos anos você acha que vai viver mais por ter deixado de fazer essas coisas? Porra nenhuma. No próximo minuto você pode cair duro e preto no chão, como nosso pai dizia.
Resolvi interromper aquele papo que já começava a beirar o filosófico e o ontológico, e nem os tarjas pretas pareciam dar mais conta do absurdo da situação, e gritei: - Se quiser adoçante, tudo bem. Se não, vá se foder!
Ele: - Você acha que eu garoto de 13 anos tenho cara de tomar adoçante? Vá se foder, você, e trate de bater na porta de vizinha aí do lado, a Cida, que eu sei que fica em casa o dia todo, e tem um filho lindo chamado Bruno, e peça-lhe uma xícara de açúcar. Ou você acha que Cida, que tem cara de quem passou fome na infância no Nordeste, tem jeito de quem usa adoçante?
Deixei o rio fluir, os tarjas pretas me levaram a navegar em ondas de contos de fadas: fui bater na porta do apartamento vizinho. Cida meio desconfiada,  nunca antes batera na porta da casa dela, disse um simpático ´oi Bruno´ para o simpático Bruno, de dois anos e pouco de existência terrena, lhe estendi a xícara e pedi: - Você poderia me emprestar um pouco de açúcar? Só uso adoçante, e agora recebi uma visita que tem alergia a adoçante.
Cida sorriu. Bruno grunhiu alguma coisa incompreensível. Cida foi buscar o açúcar. Bruno me deu língua. Cida trouxe o açúcar. Bruno me deu tchau. Cida também. Agradeci. Voltei para casa.
Adocei então o suco de maracujá do garoto que dizia ser eu-aos-treze-anos. Ele bebeu. Pediu mais. Eu dei – e finalmente comecei o meu interrogatório.
Disse-lhe: - Se todas as respostas que você der forem corretas, eu deverei concluir que você é, de fato, eu-aos-treze-anos. Mas e daí? Você vai querer ficar morando comigo pelo resto da vida?
Ele: - Garotos de treze anos têm mais o que fazer do que conviver com velhos rabugentos como você. Vim apenas lhe fazer uma visita. Esse tipo de ocorrência, pessoas serem visitadas por elas mesmas em outros momentos da vida, não é incomum. Acontece sempre. O problema é que ninguém conta isso pra ninguém porque tem medo de ser chamado de louco. Uns babacas.
Eu: - Vamos às perguntas?
Ele: - Estou pronto.
Eu: - Qual o meu endereço residencial quanto eu tinha a sua idade?
Ele: - Avenida Rio Branco, 817, Jequié, Bahia. Confere?
Eu: - Quando comecei a falar, como eu chamava minha irmã Luíza?
Ele: - Guga.
Eu: - Qual o nome do meu primeiro grande amigo, o cara que no meio daquele bando de garotos pentelhos que me rodeavam me fez perceber que eu não era um rato, e sim um menino bacana e inteligente?
Ele: - Olival. Mas também teve o Renan. Não esqueça o Renan, gente finíssima. Lembra dele?
Eu: - Claro que lembro, e Renan é um amigo fiel até hoje. Mas quem pergunta aqui sou eu, porra! Como era o nome do meu melhor amigo na vida adulta, que morreu de câncer linfático em 2005?
Ele: - Manoel José Ferreira de Carvalho, arquiteto e livre pensandor.
Eu: - Quais os endereços residências que tive quando morei em São Paulo entre 1986 e 1997?
Ele: - Avenida Angélica, 361, apto 801, onde você morou quatro anos, e Rua Conselheiro Brotero, 898, apartamento 804, pertinho da Avenida Pacaembu, onde você morou sete.
Eu (entusiasmando-me com os acertos do meu eu-aos-13-anos): - Como era o nome da professora primária que ensinava portugues e ao escrever na lousa...
Ele: - Que porra é lousa?
Eu: - Lousa era o que a gente chamava antigamente de quadro negro. Pois bem, como era o nome dessa professora que ao escrever no quadro-negro a palavra possessivo, de pronome possessivo, ressaltava com extremo fervor (como se aquela informação nos garantisse em algum lugar do futuro um lugar no céu) que a palavra possessivo se escrevia com quatro esses (ou quatro sis), e dizia assim: - Nunca esqueçam, soletrem comigo, pê-ó-si-si-é-si-si-i-vê-ó? Si-si-é-si-si-i. Certo? Ouviram?
(Nota do cronista: no alfabeto baiano de minha infância esse era si, erre era , efe era , era guê, jota era ji, ele era , eme era , e ene era ).
Ele (sem piscar): - Professora Glorita Valois, e era ruiva, e tinha as faces cheias de sardas.
Eu: - Agora uma resposta muito difícil, e depois você vai embora, que eu já perdi muito tempo com você. A pergunta é: aos oito anos de idade eu tive a minha primeira relação sexual com uma pessoa bem mais velha. Lembra disso? Quem era essa pessoa?
Eu-aos-treze-anos aproximou-se do meu ouvido, e, discretamente, cochichou a resposta certa.
Dei-lhe um beijo na face. Ele corou. Era realmente eu-aos-treze-anos quem estava ali na minha frente, naquela hora.
Ele disse que ia embora. Revelou cansaço: - Não se ofenda, mas sou o eu-aos-treze-anos de muitas pessoas, e ainda tenho hoje muitas visitas a fazer.
(E pediu para ir ao banheiro)
Essa não exclusividade – pensava que ele era um eu-aos-treze-anos apenas meu – me abalaria mais na hora da angústia do dia seguinte, quando todos os meus demônios resolveriam novamente dançar creu e vomitar ferrões em brasa sobre os meus testículos.
Mas já começou a me abalar ali mesmo, e naquela hora.
Cheguei a pensar em convidá-lo para ficar mais tempo e conversarmos sobre coisas que vivemos juntos. Mas segurei a vontade. Tive medo de ser rejeitado. Ser rejeitado por eu-mesmo-aos-treze-anos seria um desastre que dispenso com fervor a essa altura de minha vida, quando evito novos traumas como vampiros evitam a luz do sol.
Eu-aos-treze-anos saiu do banheiro. Elogiou o sabonete líquido sobre a pia (presente de minha sobrinha Guida no último Natal): - Que cheiro maravilhoso!
Pediu um pouco mais de suco de maracujá com açúcar.
Abraçou-me com força. Desejou-me felicidades.
Foi simpático e encorajador: - Tudo vai dar certo, você vai ver!
Apressei-me em abrir-lhe a porta, e afirmei: - É para que você volte sempre!
Ele sorriu. Eu sorri, e insisti: - Volte sempre que puder.
Ele respondeu: - Não sei se será possível. Meus horários são muito apertados.
Antes de fechar a porta e de ele desaparecer pelas escadas, fiz última e desesperada tentativa: - Você tem e-mail?
Eu-aos-treze-anos fez cara de interrogação: deve ter pensado que porra será e-mail? – e sumiu escada abaixo.
Já estamos (eu e minha angústia) com saudades.  
  


Um comentário:

  1. As visitas que os nossos "eus" nos fazem durante a vida são mais recorrentes do que gostaríamos de assumir. Mas, penso, podem sempre ser bastante proveitosas! São muito importantes, eu diria.

    Fez bem em ir levá-lo a porta para que volte, sempre que puder.

    Abraços.

    PS: Eu acho que conheço esse Renan, um dos seus amigos de infância, hein?! Rs...
    PPS: Ainda na Bahia se usa bastante o "si", "rê", "mê", "nê"... E, soube por uma educadora, essa é a melhor forma de se alfabetizar uma criança!

    ResponderExcluir