domingo, 11 de março de 2012

O HOMEM QUE PARECE SABER DEMAIS (OU NINGUÉM DE MUCUGÊ QUE NOS ACUDA!)

Tenho cara de paisagem. De qualquer paisagem. De paisagem noturna. De paisagem diurna. Sei lá que porra de olhar e de atitude emano que as pessoas, sejam daqui, sejam dali, sejam dacolá, sempre acham que eu sei de tudo a respeito do lugar no qual viro paisagem.
É algo tão corriqueiro que às vezes induzo: alguém escreveu na minha testa ao nascer (e só eu não consigo ler), nos mais variados idiomas, o seguinte letreiro, sempre a piscar em alucinantes e frenéticos néons vermelhos: ESTE HOMEM TEM TODAS AS INFORMAÇÕES.
A ponto de já ter concluído, após centenas de evidências: uma das minhas missões terrenas é prestar informações ao próximo, não importa nem a hora nem o lugar. Mais: mortifico-me quanto não sei a informação que querem de mim. Sinto-me frustrado.
Dia desses uma bela garota de bicicleta me parou no Aterro do Flamengo, e me perguntou onde ficava a rua Fulano de Tal, uma rua da qual nunca ouvira falar.
Tentei negociar: - Você não sabe o nome de  rua próxima a essa? Talvez eu saiba onde fica a rua próxima a essa, e possa lhe ajudar.
A bela garota da bicicleta disse que só sabia o nome dessa rua e de mais nenhuma outra. Tive de admitir que fracassara, pedi desculpas, contritamente, à menina por não ter podido ajudá-la. Segui minha caminhada com amargo gosto de derrota na boca, que nem a abençoada água de coco do cearense Cícero, a melhor água de coco do Flamengo, me adoçou.
Pior ainda me sinto quando dou a informação errada, por estar distraído, e me inquirindo, bestamente, sobre o sentido da vida, no geral, e a morte da bezerra, em particular. Domingo desses, casal de simpáticos jovens me abordou: - Senhor, senhor, onde fica o Monumento dos Pracinhas?
Disse, sem pestanejar apontando na direção sul do Flamengo: - Podem seguir nessa direção que, em menos de dez minutos, vocês estarão lá.
Dez minutos depois a minha ficha caiu: eu trocara as bolas. Confundira o Monumento dos Pracinhas (que fica na ponta norte do Flamengo, depois da Marina da Glória) com o Monumento a Estácio de Sá, que, de fato, fica na ponta sul do Flamengo. Quase me autoflagelei. Mas preferi saída menos dramática e menos dolorosa: mudei o rumo da caminhada e segui na direção que havia apontado ao simpático casal, para admitir o meu erro. Mas não os encontrei mais, e a culpa me corroeu por algumas horas.
Certo final de ano dos anos 1990 viajei com grupo de amigos para Mucugê, nas brenhas profundas da Bahia, flor no pântano, um dos lugares mais bonitos do mundo.
No primeiro dia do ano, enquanto todos dormiam, após chuva colossal que varara a madrugada, percorri a cidade de cabo a rabo. De repente, um automóvel, digamos, de época, parou ao meu lado, e um motorista de bastos bigodes e chapelão amarelo-ouro, disparou: - O senhor sabe onde fica a pensão de Dona Fátima?
Enquanto ruminava ´pensão de dona Fátima, o caralho´, meus olhos captaram, displicentemente, alguns metros à frente, tosca placa pendurada à porta de casa igualmente tosca, na qual, em letras garrafais, em tons de vermelho-sangue, podia-se ler: PENSÃO DE DONA FÁTIMA.
Num átimo, respondi ao homem de bastos bigodes e chapelão amarelo-ouro: - É logo ali, senhor, umas quatro ou cinco casas mais à frente.
O homem de bastos bigodes e chapelão amarelo-ouro agradeceu, e acrescentou, enigmático: - Logo vi que o senhor era daqui.
Sem saber se a afirmação do forasteiro era lisonja ou desaforo, segui o meu caminho.
Nem sempre as forças ocultas representadas pelo ninguém de Mucugê ajudam a sacramentar a minha missão terrena de informar onde fica isso ou onde fica aquilo. Exemplo: no meio de madrugada escura de Praga, capital  da então Tchecoslováquia (hoje dividida em dois países: República Tcheca e Eslováquia), anos 1990, embriagado de vodca e de encantamento babaca por caminhar pelas ruas que Franz Kafka um dia caminhou, fui abordado por um casal com mapa e pequena lanterna nas mãos.
Tensos e nervosos, falavam numa língua nunca dantes ouvida por este cronista que ora vos escreve (tcheco? grego?  russo? hebraico? polonês? caralhês?) – e falavam de maneira tão frenética e tão galopante que mais pareciam duas gralhas bêbadas e cheias de cocaína até a última ponta do bico.
Tentei retrucar num inglês coloquial, mas o rapaz e a moça ignoravam o que eu dizia e continuavam a disparar metralhadora verbal recheada de vocábulos nos quais parecia não habitar vogal alguma.
Olhei para os lados para ver se não havia alguma tosca placa onde houvesse escrito em letras vermelhas e garrafais PENSÃO DE DONA FÁTIMA, mas não havia placa tosca onde houvesse escrito PENSÃO DE DONA FÁTIMA em lugar algum.
O rapaz e a moça continuavam falando aos borbotões, e eu insistindo no meu inglês coloquial. Queria, de fato, ajudá-los. Mas o ninguém de Mucugê não se manifestou, e eu desisti. Acelerei o passo, quase corri, em direção ao meu hotel. A certa distância, olhei para trás: o casal continuava parado no mesmo lugar, abrindo e fechando freneticamente o mapa e agitando atabalhoadamente a lanterna.
No hotel, demorei a dormir, e, quando dormi, sonhei: por minha culpa, por eu não ter sabido lhes dar a informação certa, o casal permaneceu perdido pelas ruas de Praga pelo resto da vida.
Duas semanas depois, redimi-me. Flanando pelo Hyde Park, em Londres, flagrei, sentado num banco a poucos metros de metros de mim, o, presumi, mais britânico dos britânicos – terno preto, sapatos pés lustrosos, bigodinho bem talhado, chapéu elegante. Era começo de tarde. Ele acabava de comer o lanche-almoço que acomodara em pequena caixa de plástico; jogou a caixa plástica vazia na lixeira ao lado; esfregou as mãos; levantou-se, e veio em minha direção.
Para o meu pasmo, num inglês britânico digno de ser aplaudido de pé, revelou-se totalmente perdido, e disse que não sabia como sair daquele lugar do parque e chegar até à rua: - Help me, please, sir!
O ninguém de Mucugê voltou a se manifestar. Olhei sobre o ombro homem do que achei ser o mais britânico dos britânicos, e li enorme placa em letras vermelhas e garrafais: EXIT.
Tentei caprichar no inglês, e aponto: - There, sir, there!
O homem que achei ser o mais britânico dos britânicos olhou-me como se eu lhe tivesse revelado a fórmula para que o pênis dele jamais perdesse o poder de ereção inda que ele chegasse aos 150 anos, pura gratidão, apertou-me a mão efusivamente, e bradou: - Thank you, sir. Thank you, sir. God save you!
Ele me deu as costas, e seguiu, determinado e feliz, quase saltitante, em direção à placa de Exit. Caminhava como se caminhasse em direção ao arco-íris. (Eu, hein, Rosa!)
Mais tarde, bêbado, no hotel, delirei na banheira: - Estaria aquele homem preso no Hyde Park havia dezenas de anos, e eu finalmente o libertara?
Resignei-me a esta sina, e não é uma sina que me aborrece, ou me apoquente. Na verdade, é algo que me faz crer que talvez eu sirva para alguma coisa nessa vida besta que abocanha a gente, mastiga a gente, e depois cospe o resto fora.
Manhã de sexta-feira, 9 de março de 2012, 7h45, esquina da rua Muniz Barreto com São Clemente, Botafogo, Rio de Janeiro. Estou na porta do metrô aguardando condução que me levará à Barra da Tijuca. De repente, velhusca simpática, me aborda aflita e quase sem fôlego: - A Rua São Clemente é esta aqui? Socorro-lhe: - Não, senhora, está é a Muniz Barreto. A São Clemente é aquela logo ali.
A velhusca simpática me agradece como se eu a tivesse rejuvenescido sessenta anos, a transformado na mais bela das belas, e a colocado no colo de um Brad Pitt com o pau bravamente entumescido. Ela sorri, e sussurra numa voz que parece não mais lhe pertencer, quase inaudível: - Obrigado, meu filho. Que Deus te proteja!
Quando digo em voz alta amém, amém, a condução que me levará à Barra da Tijuca para ao meu lado. Entro na Van prateada. Sento sozinho numa cadeira do fundo do veículo. Entre engarrafamento e outro intrigante preocupação me invade: - E se as pessoas começarem a me parar na rua para fazerem perguntas mais transcendentais, tipo a existência de Deus ou da vida após a morte?
Manhã de domingo. 11 de março de 2012: antes de sair para caminhar na Pista Cláudio Coutinho, na Urca com minha sobrinha Luiza, o marido dela, Jorge, e meu queridíssimo e amadíssimo sobrinho-neto Davi, com apenas um ano e cinco meses de existência terrena, desço para comprar jornal.
Na volta, dando olhada displicente nas manchetes de sempre, sou cercado  por velhusca ainda mais velhusca que aquela que me abordara na porta do metrô Botafogo.
A partir da cintura – tão delgada que parece prestes a se partir em duas, ou três, ou quatro – o corpo desta supervelhusca cadavérica se projeta totalmente para a frente, como se ela pretendesse se jogar à frente de algum automóvel a qualquer momento. (Ou talvez já tivesse se jogado e aquela ali fosse exatamente o ectoplasma dela? Sabe-se lá).
Tremo: tão velhusca, vai querer saber de mim se acho que ela viverá depois de morrer Ou talvez já esteja morta e queria apenas me sacanear, pois sabe que esta é uma resposta que nem o ninguém de Mucugê vai poder me soprar.
Mas ela simplesmente pergunta, numa voz que parece vir da ponta extrema do calcanhar, remotíssima: - Meu filho, a Enseada do Botafogo fica pra lá ou pra cá?
Relaxo: a pergunta é facílima. Digo-lhe: - Pra lá, senhora. É pertinho. A cinco minutinhos daqui.
A velhusca me olha com brandura; esboça um sorriso quase sarcástico; segura no meu braço com as mãos magras e úmidas e geladas; e volta a falar pela ponta extrema do calcanhar: - Ótimo, meu querido. Então em uma hora eu chegarei lá.
Atravesso a rua; entro no meu prédio; e, ao subir os sessenta degraus que levam ao apartamento de terceiro andar onde moro, sinto certo orgulho besta pelo fato de que tantas pessoas sempre me perguntem coisas.
Mas rogo: que continuem fazendo perguntas fáceis, assim como as dessas duas velhuscas saídas do nada que cruzaram o meu caminho nos últimos dois dias.
A propósito: será que a velhusca que falava pela ponta extrema do calcanhar já chegou à Enseada de Botafogo?
Ou mudou de rumo, e preferiu pegar o caminho inverso e voltar a se recolher em algum jazigo do Cemitério São João Batista para todo o sempre?
Ninguém de Mucugê, acuda-me!


  
  

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