domingo, 4 de março de 2012

A ALMA É TÃO MÓVEL QUANTO O AUTOMÓVEL (OU O DIA EM QUE EU BEIJEI O PAPA)

Há quem não acredite em almas. Eu acredito em almas. Em bilhões de almas pulando de galho, de corpo em corpo, eternidade afora, mundo afora. Mais: creio, peremptoriamente, na ideia de que várias almas nos habitam durante o decorrer das nossas vidas. Não sei por quanto tempo cada uma dessas almas nos incorpora e nos acompanha. Talvez dois, no máximo, três anos. Ou meses. Ou mesmo dias. Depois, elas se escafedem, e vão dar plantão em corpos alheios, até que alguém lhes delegue outra missão, outro corpo.
Uma espécie de rodízio, se o caro leitor me entende.
Ao acordarmos pela manhã, ou em qualquer outro momento do dia, a alma antiga partiu, pra não mais voltar, e outra alma nos ocupa. Transfusão de almas: no escurinho do cinema, no meio de um filme que nos emocione muito e que nos deixe em quase transe; no meio da leitura de um romance desses que nos fazem transbordar de êxtase e emoção estética; ou naquele momento máximo de relação sexual plena e bem-sucedida.
Ou, quem sabe, até no meio de um vagão de metrô superlotado. Ou naquela hora em que o torcedor deixa-se transir e grita gol numa final de campeonato.
Ou seja, almas trocam de corpos como nós seres humanos trocamos de maridos, de mulheres, de meios de transportes, e, eventualmente, de caráter.
Não. Essas almas não nos trocam por outros corpos num gesto de traição. Assim tem de ser. Alguém escreveu que tinha de ser assim. Está escrito. Talvez haja casos de almas que se apeguem mais a alguns corpos, e, romanticamente, queiram ficar nesses corpos por mais tempo. Sem chance. No way. Se a, digamos, escala determinar que a alma Xis terá de trocar Sergio Cabral, governador do Rio de Janeiro, pela prostituta Mimi Chavier, em remota cidade da Tunísia, assim terá de ser feito. Sem choro nem vela.
Almas voltariam aos corpos que um dia habitaram, numa espécie de revisita? Improvável. Pode ser que isso eventualmente ocorra, mas a chance é a mesma que a de se ganhar sozinho 50 milhões de reais na mega-sena. Ou a de alguém bater à sua porta e, quando você abrir dar de cara, com um mix de Jean Dujardin e Berenice Bejo. 
Almas são meio assim aeromoças e comissárias de bordo de seres humanos. Um dia podem estar aqui, no outro ali, no dia seguinte acolá. E, coitadas, não têm a quem apelar se, de repente, se descobrem e no corpo de um sujeito que matou a família e foi ao cinema comer pipoca. Ou numa freirinha impoluta na qual a ideia de virgindade eterna é tão inquestionável quanto o fato de a terra ser redonda como uma laranja azul.
Há casos de jet-leg, obviamente. Compreensíveis. Já pensou no drama daquela alma Z que foi dormir Giselle Budchen e acordou Angela Merkel? Ou da alminha que, no meio do encantamento de começar a fazer o corpo de uma pequerrucha qualquer começar a engatinhar no Recife, ser removida, irremediavelmente para uma ucraniana velhusca que agoniza com câncer terminal num bairro pobre e miserável de Kiev?
Não me digam que estou louco. 
Almas nos habitam como habitamos casas. Somos as casas das almas. Durante algum tempo dividem conosco os trapinhos, impõem alguma pequena ou grande reforma no imóvel ocupado. Ou, e isso acontece, nos mergulha em realidades extáticas, em felicidades de fotonovelas, em amores abissais, em loucuras colossais, e outras mumunhas mais.
Ninguém é uma só pessoa durante a vida. Ninguém tem alma única e fiel e exclusiva que lhe acompanhe ad eternum, ou até que a morte os separe. Fui várias pessoas durante a minha vida, e serei outras mais até que o fogo se apague. Centenas de almas me habitaram, e muitas outras ainda me habitarão.
(Você também, dileto leitor/a)
Ao tentar voltar no tempo, e contemplar – como alguém contempla o Muro das Lamentações, em Jerusalém, ou o sorriso de Monalisa, num corredor lotado do Museu do Louvre – o meu passado, ou os ene momentos do meu passado, há sensações de estranhamento inexoráveis. Mais dúvidas do que certezas sobre coisas que fiz ou deixei de fazer, que me levam a crer: a vida é grande peça de teatro, não obrigatoriamente de boa qualidade,  onde vivenciamos centenas de personagens, interpretados por essas almas itinerantes e erráticas.
Pela minha mobilidade geográfica, afetiva e profissional, creio que um número excepcional de almas me habitou nessas minhas cinco décadas de frenética existência. Sinto-me às vezes feito aquele ônibus no qual não param de descer e de subir passageiros (almas). Como se eu fosse veículo conveniente (confortável? desafiador? prático? com possibilidade de percorrer muitas vias, e chegar a vários pontos finais?)  para os passageiros/almas que entram e saem de mim durante a minha vida.
Talvez essa minha hipótese escalafobética, almas nos penetrando, sem hora marcada, como pegamos ônibus e táxis e vagões de metrô, explique a nossa combalida memória. Do que realmente lembramos do tudo que vivemos? Quase nada. Alguém será capaz de dizer o que estava fazendo na noite de 23 de julho de 1999? Ou em 22 de maio de 1980? Ou ontem, às 15h45?
 (Tem seriado atualmente na tevê cabo, The Unforgettable, que fala exatamente de mulher que não esquece nada, absolutamente nada, do tudo que viveu. Trata-se, evidentemente, de uma mulher doente: se lembrássemos tudo, exatamente tudo, que nos acontece durante a vida, enlouqueceríamos ainda mais do que já enlouquecemos, sem lembrarmos de quase nada).
Boa pergunta (minha e, provavelmente, do eventual leitor): quem faz essa escala de almas entre os bilhões de habitantes do planeta Terra? Gostaria de crer que fosse Deus, primeiro e único, o onipresente, o onisciente, o todo-poderoso. Embora creia em Deus, ou precise acreditar em Deus, acho que Deus não tem um disco-rígido (HD) suficientemente potente para manipular toda essa panaceia de algoritmos gigantescos e supercomplexos. Tipo:  almas que vão dormir na China e acordam na Bolívia; que entram no metrô de Tóquio e desembarcam num barco vagabundo do sul da Índia; que vão assistir a um filme de Woody Allen em cinema da Times Square e, antes que o filme acabe, transfunde-se e passa a ocupar corpo  de  mulher que está sendo estuprada em viela escura de Moscou.
O pai da matéria? Quem realmente manipula essas equações aparentemente erráticas neste intrincado jogo de desarmar que romanticamente chamamos vida? Chamem o ladrão.
Epílogo:  em 2006, em curta temporada de trabalho que passei em Salvador, cidade onde vivi entre os 15 e os 31 anos, revi pessoas que diziam me conhecer, que me contavam aventuras sexuais comuns, que me abraçavam com fervor, que me beijavam na boca. Com raras exceções, do lado de cá, emoção zero, nunca os tinha visto mais gordos: o meu cérebro registrava.
Certo dia, almoçando em restaurante do Pelourinho,  fui cercado por cinco mulheres que, à primeira vista, me pareciam totalmente desconhecidas. Para minha surpresa, gritaram em altos brados o meu nome, abraçaram-me efusivamente, e demonstraram entusiasmo em me rever tão pleno e tão contundente que fiquei sem palavras.
O que passava pela minha cabeça - enquanto essas mulheres me acarinhavam, me chamavam de ´meu querido´, e me diziam da imensa falta que eu fazia à cidade de Salvador desde que fora embora - era: - Caralho!, o que está acontecendo? Quem são essas loucas?
Demonstraram tamanha intimidade comigo que pediram ao garçom para juntar duas mesas, e sentaram ao meu lado. Em cinco minutos, (único) bingo: reconheçi nesse grupo de cinco mulheres, todas formadas em Enfermagem, segundo me disseram, pois não tinha a mais remotíssima ideia do que aquelas mulheres faziam da vida, descubro rosto familiar, e até arrisquei dizer o nome dessa mulher, e, que bom, acertei o nome dessa mulher.
Sobre as outras mulheres com quem passei as duas horas seguintes – elas revivendo experiências universitárias, existenciais e sexuais que vivemos juntos – até hoje não tenho a mais remota ideia de quem eram.
No meio do almoço, regado a comida baiana e a cerveja estupidamente gelada (era sexta-feira), uma dessas mulheres que eu não tinha a mais remota ideia de quem era me relembrou fato, digamos, picaresco que teria sido protagonizado por mim nos meus verdes anos.
Palavras dela: - Você era  o exemplo mais vivo de irreverência na universidade, naquela época de merda do auge da ditadura. Eu te adorava. Você fazia o que a gente não tinha coragem de fazer. Um maluco. Uma cena protagonizada por você que jamais esquecerei: quando o papa João Paulo II visitou a Bahia em 1980, eu estava no meio do povo, na Avenida Manoel Dias da Silva, na Pituba, com meu filho pequeno no colo, vendo o papa passsar. De repente, olhei para a varanda do primeiro andar de um prédio e vi você, cercado de amigos com garrafas de cervejas na mão, e vi você agitando as mãos como se fossem hélices, gritando ´João de Deus é lindo, João de Deus é lindo´, e disparando beijos estalados para o papa,  que desfilava no papamóvel  a pouco mais de dois metros da varanda onde você estava. Não vi mais nada: só gargalhava com a sua figura alegre e despudorada jogando beijinhos estalados para João Paulo II.
Preciso saber: se realmente o testemunho dessa mulher tiver algum fundo de verdade, que alma me habitava neste momento?
PS: e qual será o e-mail dela, dessa alma libertadora?
        

2 comentários:

  1. Amei tudo isso. Lindo texto, saudades de vc... Axé

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  2. Rogério, o mais engraçado é que eu (ou minha alma que um dia se encontrou com sua alma) visualizo direitinho você ali, na varanda, gritando "João de Deus é lindo"!!! ;)

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