domingo, 18 de março de 2012

A VIDA É UM POTRO SELVAGEM (OU PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FEIJOADA LIGHT)

No auge dos tenebrosos tempos da ditadura militar no Brasil (1964-1985), que todos os diabos a tenham, os jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde criaram peculiar estratagema para burlar e, ao mesmo tempo, emular a draconiana censura que se abatia sobre o país. Tendo diariamente várias notícias de primeira página proibidas de serem publicadas, os editores passaram a colocar no lugar do que deveria ser ocupado pelo texto jornalístico alguns poemas do poeta português Luís de Camões ou triviais receitas de bolo.
Ok, a notícia não chegaria ao leitor. Mas a consciência de que algo impedira que essa notícia chegasse, e chegasse travestida de poema ou de receita de bolo atestaria para os devidos fins: por trás de cada obra prima de Camões e de cada trivial receita de bolo habitava o dragão asqueroso da censura militar então em vigor  em todos os setores da vida do país.
Talvez ainda haja divergências a respeito (nunca se sabe; a história do mundo flui e reflui como as ondas de  mares revoltos), mas é quase unânime a constatação: tal e qual a inveja, a censura é uma merda de altíssimos padrões de fetidez.
Por tabela: a autocensura – a capacidade de o ser humano fazer da censura elemento de anatomia interna ou externa, tipo baço, rins, pés, orelha de abano, ou barriga balonê, adquirida a partir da excessiva convivência com ditaduras obscuras – federia tão fortemente quanto a própria censura.
Estou no bloco dos que consideram censura e autocensura faces da mesma, e abjeta, moeda.
Mas, perdão leitores, nesta crônica de hoje, cometerei o delito de autocensurar-me, sem culpa (e sem autoaplicar-me vinte chibatadas ao amanhecer).
Ao contrário do que me perpassa o coração, mais dilacerado que um biscoito Globo na boca de um esfomeado, não chorarei minhas pitangas (embora minha horta esteja abarrotadas de pitangueiras ávidas para serem choradas). Nem chorarei as pitangas do caro leitor (quem, neste vale de lágrimas, não tiver as hortas cheias de pitangueiras ávidas para serem choradas, que atire a primeira azeitona).
Que São Carlos-Drummond-de-Andrade me perdoe, mas terei de parodiá-lo para explicar-me: não falarei de náusea, falarei de flores. Não literalmente. Metaforicamente.
Apropriar-me-ei do recurso utilizado pelos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde nos tempos da ditadura, e trocarei a censura pela autocensura. Em vez de escrever que todas as vidas estão mergulhadas numa merda abissal (o que varia é o quão abissal é a merda de cada um) publicarei receita de feijoada de frango light, de minha própria lavra, e, perdão pela imodéstia, de-li-cio-sa.
(Um pouco de circo não faz mal a ninguém).
Vamos à receita, caro leitor, pois da vida nada se leva, e caixão não tem gaveta:
Uma xícara média de feijão fradinho.
Três coxas e sobrecoxas de frango, devidamente separadas, sem pele e gorduras.
1 tomate (com pele, semente, e o que mais vier).
1 pimentão (da cor que mais lhe aprouver).
1 cenoura.
Seis dentes de alho.
Uma cebola (sem casca, por favor).
Uma xícara de coentro, aipo e cebolinha picados.
Temperos diversos em pó: manjericão, alecrim, salsinha, e outros tais.
Sal a gosto.
2 tablete de caldo de legumes light.
Azeite de oliva.
MODO DE FAZER
Primeiro ato
Na noite anterior, coloque a xícara de feijão fradinho numa vasilha com água até a tampa, cubra-a, e guarde na parte de baixo da geladeira. Na manhã seguinte, renove a água, e lave os feijões.
Segundo ato
Pegue as coxas e sobrecoxas de frango devidamente descongeladas, banhe-as em colheres generosas de azeite de oliva, sal, e os temperos de sua predileção. Não basta esfregar levemente os temperos nos pedaços de frango. Muna-se de uma faca rija e de ponta fina e, sem pejo, fure, a distâncias pouco maiores que um centímetro, a carne do frango. Com força e pathos.
(Projete nos pedaços de frango alguma parte do corpo de alguém que você odeia muito, tipo o chefe tirano, a vizinha que deixa a tevê ligada em alto volume até o amanhecer, o ex-namorado que lhe trocou por um bagulho qualquer, e teremos dezenas de furinhos, nos quais  você esfregará vigorosamente o sal e os temperos reservados. A ideia é que os temperos impregnem cada centímetro dos pedaços de frango. Operação realizada com sucesso, cubra-os hermeticamente com outro prato de iguais dimensões, e guarde na parte de baixo da geladeira).
Terceiro ato
Dia seguinte. Tire os pedaços de frango da geladeira e, numa frigideira pré-aquecida, regada a azeite de oliva pontilhado por cebola, alho, coentro, pimentão e aipo picados, e ponha-os para fritar. De ambos os lados. Por cerca de 15 minutos. Em seguida, reserve-os.
Quarto ato
Coloque algumas colheres de azeite de oliva na panela de pressão e deixe aquecer por dois minutos. Em seguida, acrescente alho em pequenos pedaços, cebola idem, coentro idem, cebolinha idem e um tablete de caldo de legumes light. Mexa tudo com uma colher pau para que os ingredientes não grudem no fundo da panela, e, também, para misturar os sabores.
Quando a mistura estiver suficiente quente e suficiente cheirosa, acrescente os pedaços de frango, um a um, sem pressa. Em seguida, com a colher de pau, faça com que os pedaços de frango pré-fritos e os novos temperos convivam harmoniosamente, mas freneticamente, por cerca de quatro a cinco minutos.
Feito isso, pegue o feijão de molho na água desde ontem, lave-o novamente, e o escorra de maneira que cada grão fique quase, digamos, enxuto. Na sequência, jogue o feijão na panela de pressão e, com a colher de pau, misture tudo exaustivamente por cerca de cinco a seis minutos. A seguir, despeje um litro e meio a dois litros de água pré-aquecida (a depender do tamanho da panela de pressão), espere toda essa mistura ferver, acrescente o segundo tablete de caldo de legumes light, e tampe hermeeticamente a panela.
Detalhe importante: quando o apito da panela de pressão começar a uivar, diminua a intensidade do fogo, e aguarde cerca de uma hora.
Sirva com arroz branco.
PS1:  Há condimento especial, pessoal e intransferível, que não aconselho ninguém a usar: um grãozinho de cicuta. Eu o uso, em doses homeopáticas. Não tenho pressa. De grão em grão a galinha enche o papo.
PS2: Não tem nada a ver com o tom gastronômico-existencialista desta crônica, mas não resisto à tentação de registrar. Hoje, manhã de domingo,  no Aterro do Flamengo, grupo minguado de anacrônicas feministas, nove ou dez, no máximo, entoam mantras incompreensíveis e distribuem panfletos sob árvore frondosa. Ao lado dessas  personagens´inesperadas, estende-se mural com cartazes ilustrativos do, digamos, espectro ideológico dessas criaturas.
Um desses cartazes ilustrativos me chama especial atenção, a ponto de eu voltar para checar se eu havia enxergado bem o que estava escrito. Sim, eu enxergara bem o que estava escrito, e o que estava escrito era exatamente o seguinte (devidamente registrado no meu celular, já que eu e minha memória temos brigado muito ultimamente): `O feminismo é a ideia radical de que as mulheres são gente.´´
(??????????????????????????????????????????????)
Sem comentários. Prefiro autocensurar-me outra vez,
(Mas confesso que, na hora em que avistei tal disparate, automático putaquepariu escapou-me e escafedeu-se pelos céus da Baía de Guanabara). 






  







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