quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ALMAS EM CONFLITO À BEIRA DA BAÍA DE GUANABARA (OU QUANDO SETEMBRO VIER)

O nome do filme é Quando Setembro Vier (comédia romântica dos anos 1960 estrelada por Rock Hudson e Gina Lollobrigida, na qual, como em todas as comédias românticas, ao contrário da vida real, tudo acaba bem; e, por esse motivo, o apreciava, e o aprecio, sem moderação).
Desde então, a chegada de setembro sempre me traz certa esperança de que a vida desfaça e dissolva todos os nós que nos atam, e se desate para todo o sempre, lépida e fagueira e primaveril – e, ainda bem, setembro sempre vem – e setembro sempre me faz crer que alegrias inauditas surgir-me-ão do nada e que possamos ser felizes para todo o sempre, ampla, geral e irrestritamente.
Setembro acabou de chegar, e não pude deixar de evitar: todos esses sentimentos de bem-aventurança me arrebataram na minha diuturna caminhada matinal de hoje de manhã pelo Aterro do Flamengo.  O veranico de inverno que fez com que ontem a temperatura chegasse a 38 graus no Rio de Janeiro deu lugar a manhã cálida, cinzenta e fria, na dose certa: 17-18 graus. Caminhava como se farfalhasse sobre nuvens alvíssimas e enxergasse a estupidamente bela boca banguela da baía de Guanabara lá do alto, como se fosse céu no chão.
O cardápio de sempre, trivial, mas, para mim, fundamental: 1. árvores frondosas; 2. bebês acompanhados de babás;  3. babás acompanhando bebês; 4. paramédicos puxando lentamente anciãos doentes pelo braço; 5. velhotes que caminham a toda velocidade, como se estivessem (e, de fato, estão) correndo da própria morte; 6.  vendedores de água de coco e de biscoitos Globo; 7.  gatos e a cachorros, já velhos conhecidos; 8. ladrões, de bicicletas, que lá estão diuturnamente, de olho nas correntinhas de ouro dos pescoços alheios; 9.  maritacas operosas sempre risonhas e francas.. Enfim, caro leitor: sentia-me tal e qual virginal garota de íntegro cabaço, mix de Doris Day e Julie Andrews, a flanar ao som de ´ela é carioca... ela é carioca...´
Imerso nesse clima que mixava Walt Disney & Tom & Vinicius, absorto, contrito, ensimesmado, quase me autocelebrando, demorei a perceber  que, poucos metros à minha frente, dois homens discutiam, e discutiam acirradamente. Só acordei dessa setembrina good trip quando altissonante CARALHO!, proferido em altíssimo e bom som chegou até os meus ouvidos e quase me rompeu os tímpanos.
Obrigo-me então a deletar, temporariamente, as Julies Andrews e os Tons Jobins que me arrebatavam, e presto atenção nos dois homens que, nas minhas fuças, pugnam-se verbalmente como se daquela discussão dependesse o destino de toda a espécie humana: o mais alto e mais jovem (talvez 45 anos) era branco; o mais baixo e mais velho (talvez 57 anos) era negro. Ambos bonitos, e ambos garbosos. Mas ambos (pareceu-me) imersos nos próprios fantasmas e tragédias. Mas ambos consumidos e devorados totalmente pelo pathos do desastre de rompimento iminente e, quiçá, irreversível.
(Olhos e ouvidos atentos, e a cabeça no lugar, passo levemente desacelerado, posso então ouvir flashes  do que conversam).
Homem A (negro, mais velho, talvez 55 anos): - Você sabe que merda de cara é esse com quem  você está se envolvendo? Sabe ao menos se ele é, por exemplo, soropositivo? Nada contra soropositivos, mas você precisa ter essa informação, precisa saber o terreno em que está pisando....
Homem B (branco, mais jovem, talvez 45 anos; interrompendo bruscamente o fluxo do pensamento do outro): - Soropositivo? Você está querendo dizer que F. pode ser soropositivo? Você está é morrendo de ciúme porque estou me envolvendo com outro cara! Você é um recalcado! É isso! E isso é típico de ex-namorado que não quer o ex-namorado seja feliz com outro cara. E quer saber: quem teve e tem amigo soropositivo é você! Quem teve amigo que morreu de Aids foi você! Eu não tenho, nem nunca tive, nem nunca terei amigo soropositivo; nem nunca tive amigo que morreu de Aids. Quem sempre se misturou com gente  soropositiva foi você, não eu!!!!
O homem A, impactado pela delírio demencial do homem B que acabara de ouvir, diminui o passo, e quase se afunda no asfalto. O homem B, não, vai em frente. Mas, de repente, estaca, se volta para o homem A, e urra, em altíssimos decibéis: - Anda mais rápido, porra. Depois que você ficou velho está ficando lerdo, é?
Ouço a conversa apenas até esse momento. Temo que possa fazer alguma merda. Dou meia volta. Mudo completamente o foco. Concentro-me no som dos pássaros e do mar que bate ali perto. Extasio-me com as maritacas que maritacam ao meu redor – e volto a imergir no clima à Disney-Tom-Vinícius de antes de sintonizar aquela cena constrangedora.
Novamente flano sobre o Aterro do Flamengo ao som de Tom & Vinicius, mas não posso deixar de lembrar que, tal e qual o homem A, eu tivera, e tenho, amigos soropositivos, alguns mortos antes que os remédios que lhes poderiam salvar a vida surgissem; outros, thanks god, estão vivos e fortes, lépidos e fagueiros, vivendo vidas às vezes alegres, às vezes tristes, tal e qual qualquer um de nós, pagando pra ver, indo à luta, valentemente, sem pejo, sem rancores, sem ressentimentos, sem exasperações.
Lembro então de J.H., querido e amado amigo de infância e adolescência em Jequié-Bahia que perdi de vista por muito tempo, e só o reencontrei, coisas da vida, já abatido e esquálido, num ônibus cheio que subia a Avenida Angélica, em São Paulo, no final dos anos 1980. Só nos vimos, quando ele já estava quase descendo em ponto próximo à Praça Buenos Aires. Olhou-me. Olhei-o. Reconhecemo-nos imediatamente. Abraçamo-nos. Ele me disse: - Não estou bem. Mas não foi à toa eu ter te encontrado por acaso no meio do nada dentro de um ônibus nesta cidade gigantesca que é São Paulo.
Separamo-nos. Reparei que J.H. andava com dificuldade e tinha grandes manchas vermelhas nos braços. Foi a última vez que o vi.
Lembro também, e lembro com alegria, de H. e N.: ambos soropositivos, ambos vivos, ambos fortes, ambos operantes, ambos de bem com a vida, sem raivas, sem ressentimentos, sem exasperações.
H.. trocou o Posto 6 por Búzios; é bonito para caralho; bem casado; sempre animadíssimo; apaixonado pelo Flamengo; doido por carnaval; apaixonado pela vida.        
N. trocou São Paulo por Porto Alegre; é o cara mais zen que conheço; sempre de bem com a vida, inda que a vida lhe seja eventualmente caprichosa; apaixonado pelo Internacional; não se queixa de nada; conforta a quem se desespera; namora; viaja; adora o Rio de Janeiro; e agora em outubro bate asas para Paris, onde fica até o dinheiro acabar.
H. e N. estão certíssimos: a vida não é boa; a vida não é má; a vida é; ponto; e estamos conversados.
(Bem, quanto ao homem B, o que, talvez num momento de raiva, se vangloriou de nunca ter tido amigos que morreram de Aids, ou amigos que sejam soropositivos, não lhe sinto raiva nenhuma. Reservo-lhe o mais nobre dos sentimentos humanos: a compaixão).
(E o melhor de tudo: setembro chegou; e, bênção dos céus, na programação aleatória do canal Sky de jazz clássico Chet Baker começa a tocar e cantar You´re Driving me Crazy. Acho que vou chorar).

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