quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O OVO SEMPRE APUNHALADO (OU AGILIDADE NO ABANO ANTES QUE O FOGO SE APAGUE)



A pergunta era feita por minha mãe, dona Águida, à beira do fogão a lenha, aos quatro filhos (eu, Zé Crispim, Cecé e Luiza) que. em varanda de casarão que caía aos pedaços, se sentavam para tomar o café de todas as manhãs em meados dos anos 1960, nos baixos grotões do interior da Bahia (ou seja, lá pelo cu do mundo): - Querem hoje  o ovo com a gema dura ou mole?

Meu irmão e minhas duas irmãs variavam as respostas – e nunca soube o porquê de ontem desejarem gemas moles, e hoje,  gemas duras (e vice-versa). Eu, no entanto, invariavelmente, chovesse canivete ou fizesse sol de rachar cachola,  sabia sempre o que queria, e dizia, cheio de convicção: - Mole, minha mãe, mole.

Mole, e nem precisava dizer, a minha mãe sabia desse meu capricho (e o respeitava), a gema não podia ser quebrada, sequer rachada. Tinha de chegar à mesa, intocada, imaculada, cheia como lua cheia e naquele inolvidável tom forte de amarelo que a marcava. Cercava-a rija clara branca, eventualmente riscada-chamuscada em vários pontos por veias douradas provocadas pela fritura na manteiga quente.

Essa cobiçada gema-lua-cheia-amarelo-forte só poderia ser desmanchada por mim e a desmanchava com prazer: nela mergulhava chumaço de miolo de pão, que, devidamente empapado com aquela gosma sublime, era em seguida depositado na minha boca que, àquela altura do café da manhã, já salivava caudalosamente, amazonicamente, num prazer (quase) sexual.

Esse ovo-com-gema-mole-frito-por-minha-mãe foi certamente o meu mais remoto objeto de desejo gastronômico, a minha madeleine proustiana - e, como já dizia o sapientíssimo Sigmund Freud, o primeiro objeto de desejo gastronômico (ou não) a gente nunca esquece; e, claro, a gente nunca parará de desejá-lo.

Batata. Não daria outra. Não deu outra. O mundo girou. A Lusitana rodou. A ema gemeu. A minha mãe morreu. A Bahia virou remotíssima batucada. Tornei-me homem absolutamente móvel que parece nunca querer se fixar em porto (seguro, ou não) algum, seja cidade, pessoa, idéia, ou signo astrológico. Mas a paixão pelo ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga permanece incólume, e, se depender de mim, perdurará até o fim dos (meus) tempos.

Claro, os ovos fritos que eventualmente devoro hoje em dia não têm esse capricho materno – longe disso. Na correria desses tempos velozes, no calor da hora, às vezes obrigo-me a ignorar a gema que se partiu assim  que tocou (e pipocou) o fundo negro e quente da frigideira que, em escandalosa propaganda enganosa, as bocas de Matilde alardeiam ser antiaderente, mas que de antiaderente não tem porra nenhuma. Ato contínuo: acabo perdendo a paciência e, heresia das heresias, misturo gema e clara, clara e gema, numa massaroca só, em colheradas vigorosas, e engulo aquela praga-do-café-da-manhã-de-todos-os-hotéis-baratos-do-ocidente: os indefectíveis ovos mexidos.

Verdade que profetas-lobistas diversos e perversos, das mais diversas correntes médico-gastronômicas, pipocam aqui, ali, acolá e alhures, todos ávidos em disparar vaticínios funestos que favoreçam menos à saúde pública, e mais às empresas que lhes pagam vultosos salários. Todos, enfim, mancomunados,  absolutamente determinados a interromper esse interregno-gastronômico-amoroso entre mim e o ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga. 

Uns advertem: ‘Cuidado, a gema (justo a amada e idolatrada gema?) aumenta o colesterol e entope as artérias e provoca infartos fulminantes.’ 

Outros acusam: ‘Suas calças não vão lhe caber mais se continuar comendo ovos fritos!’

(Não conseguirão me separar do ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga. Fomos feitos um para o outro. Romeu & Julieta. Batman & Robin. Doris & Day. Brad & Pitt. Abra & Cadabra. Caio-Fernando & Abreu ).

Diante dessa algaravia macabra de alertas alarmistas, finjo-me de morto. Homem (quase) velho, não posso, nem devo, ouvir  esses tocadores de trombetas do apocalipse que assopram tragédias – embora esses tocadores de trombetas do apocalipse se reproduzam e se espalhem com a velocidade dos raios e dos tsunamis. (Adoram listar alimentos, situações e beberagens variadas que, juram, nos garantirão o paraíso. Adoram também listar, alimentos, situações e beberagens variadas que, juram, nos farão sucumbir no fogo do inferno no próximo segundo).

Os itens dessas listas podem, a depender da força das marés e, principalmente, dos vorazes marqueteiros de milionários e gulosos  grupos alimentícios internacionais,  podem se intercambiar num piscar d’olhos.  O ovo, por exemplo, é redimido em rede nacional de tevê de vez em quando. O ovo, por exemplo, é  execrado (principalmente a minha adorável gema mole, agora acusada de hospedar salmonelas homicidas) em rede nacional de tevê de quando em vez.

O ser humano adora brincar de controlar o incontrolável. Não será exatamente ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga a mais ou a menos que adiará o inadiável. O que tiver de ser será, whatever will be, will be, com ou sem o adorável  ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga.

Carpe diem. Ou como cantava Santa Clementina de Jesus:: ´Agilidade no abano antes que o fogo se apague´. (E todos nós sabemos: com ou sem ovo frito na manteiga, todo o fogo se apagará um dia, e tudo virará eterna noite sem lua-cor-de-gema-de-ovo-frito-na-manteiga).

PS: Evoé, Caio Fernando Abreu, primeiro e único,  que teria completado  63 anos em 12 de setembro, e continua por aqui, no meio de nós, morto e forte..








Um comentário:

  1. Wow!! Rogério! adorei o texto! e quero te dizer que me identifiquei, eu tb repetia a mesma coisa p minha mãe; qdo vinha a pergunta: - duro ou mole?
    É moleeeeee mãe!!!! adorava "xuxar" o pão na gema e ver ela explodir e escorrer encima do arroz, rsrs
    abraço!

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