terça-feira, 20 de setembro de 2011

AGENOR, O TAXISTA MAIS VOMITADO DO RIO DE JANEIRO (OU CADA UM COM SUA SINA)

No meio de uma tarde vazia, tão clara, sem fim, virei o pescoço no burburinho enlouquecedor da Rua Figueiredo de Magalhães, em Copacabana. Acabara de comprar alguns remédios fitoterápicos contra a alta ansiedade, receitados por certa sumidade da medicina alternativa a quem minha analista resolveu me enviar, e queria fugir desesperadamente daquele caótico e eterno transe que marca esse pedaço do Rio de Janeiro. Era verão. Fazia calor infernal. No relógio digital ao meu lado, visualizei: 40 graus. A vida estava uma merda. Não poderia dar outra: dentro de mim, e ao redor de mim, todos os demônios interiores se reuniam em concorrido conclave para me enlouquecer – e eu virei o pescoço no burburinho enlouquecedor da Rua Figueiredo de Magalhães para pegar o primeiro táxi que passasse e que me levasse para a sacrossanta paz do (meu) lar.
Ao levantar o braço para pedir que táxi que se aproximava parasse – e me tirasse daquele inferno e daquela panaceia de barulhos, buzinas, uivos, vozes gritadas estridentemente aos celulares, e o diabo a quatro –, atingi em cheio o rosto de certo senhor  visivelmente octogenário, o que fez com que o par de óculos que o senhor visivelmente octogenário usava fosse parar na sarjeta próxima à calçada, entre latinhas de cerveja vazias, pontas de cigarro, camisinhas usadas, papéis de bombons, cocôs caninos e humanos, e lixos diversos. O velhote me praguejou até a enésima geração, e nem o fato de lhe pedir desculpas, com delicadeza de gazela de romance de José de Alencar, o fez menos feroz.
Parti, em seguida, para o fétido canto de sarjeta onde o par de óculos do velho visivelmente octogenário aterrissara, e, ainda bem, nada fora danificado: as lentes e as hastes estavam nos devidos lugares. Peguei-o; limpei-o cuidadosamente com a flanelinha que sempre carrego na bolsa (para limpar os meus próprios óculos); e o devolvi, são e salvo, a bordo do mais colgate dos sorrisos, para o senhor visivelmente octogenário. Mas, nem assim, ele me perdoou. Arrebatou o par de óculos das minhas mãos, e saiu em disparada; mas, antes, praguejou mais uma vez até a minha enésima geração: -   Vá pra casa do caralho, seu magrelo tatuado de merda!!!
Fazer o quê em situações assim? Nada a fazer, caro leitor, a não ser continuar respirando – e eu continuei respirando, e sinalizando, àquela altura desesperadamente, para que algum táxi parasse e me levasse, pelo amor de Deus, me levasse, até a sacrossanta paz do meu lar.
Finalmente, operou-se o milagre: um táxi parou ao meu lado. Avaliei rapidamente o rosto do motorista. Não era bonito, não era feio, mas, bom sinal, não disparou em mim nenhum alarme paranóico de grande porte. Adentrei no automóvel, pela porta traseira, e solicitei gentilmente, como é do meu feitio: - Você me leva ali na General Polidoro, coladinho na rua da Passagem, por favor?
O taxista, num sorriso que ora parecia afável, ora parecia ameaçador, sibilou: - Tudo bem, doutor!!! (e sempre tremo quando me chamam de doutor; acho que quando alguém me chama de doutor, e não sei por que diabos sempre me chamam de doutor, esse alguém que me chama de doutor vai, na cena seguinte, me apunhalar no baixo ventre, ou disparar todas as balas do revólver que carrega no coldre na minha cara).
Mas, ainda bem, depois desse ´tudo bem, doutor´, o taxista não me apunhalou, nem me disparou tiros na cara. Apenas comentou displicentemente: - Pois é, doutor, vamos pegar um engarrafamento dos diabos. Nesse momento está sendo enterrado no Cemitério São João Batista um marechal do exército que morreu aos 108 anos, e o cara é gente grande, um figurão, o senhor sabe como é que é, né? E o trânsito está um nó só naquela região.
Fazer o quê em situações assim? Nada a fazer a não ser continuar respirando, e eu continuei respirando, e eu assinalei: - Tudo bem, vamos nessa!
Fomos nessa. O trânsito fluiu razoavelmente até o final da Rua Figueiredo Magalhães, e  cruzamos na boa o Túnel Velho (que liga os bairros de Copacabana e Botafogo), mas quando chegamos na altura do cemitério de São João Batista, estava tudo parado: era o próprio inferno na terra; sol de esturricar; calor de 40 graus; dezenas de automóveis que não saíam do lugar; buzinas disparadas vindas de todas as direções; tanques do exército a estibordo e a boreste (o falecido pertencera a altas patentes do exército nacional). Horror! Horror! Horror!
Foi então que, nada a fazer, resolvi puxar assunto com o taxista para ver se o tempo passava mais rapidamente, e se o trânsito fluía menos vagarosamente. Não fui criativo, admito, na minha abordagem. Indaguei-o: - Você, com tanto tempo trabalhando como taxista no Rio de Janeiro, já foi assaltado muitas vezes?
A resposta do taxista à minha arguição pra lá de óbvia não foi nada óbvia: - Que nada, doutor. Em 12 anos trabalhando como taxista aqui no Rio de Janeiro, eu nunca fui assaltado. Nunca!
Tema de conversa sugerido aparentemente morto, fechei-me em copas;  e olhei, através das grades de ferro que ladeavam a rua, as centenas de sepulturas, mausoléus e coroas de flores do Cemitério de São João Batista. Quando já ameaçava me afundar em caraminholas sobre o sentido da vida (e da morte), fui despertado pela gargalhada do taxista, que bradava: - Que eu nunca fui assaltado, é verdade. Mas o doutor precisa saber a quantidade de vezes que eu fui vomitado. Ou seja: o doutor sequer poderá imaginar o número de vezes que passageiros vomitaram no meu carro. (E rindo às bandeiras despregadas) Eu devo ser o dono, doutor, do carro mais vomitado de todo o Rio de Janeiro!
Acordei num átimo do transe ontológico no qual estava prestes a mergulhar, e arguí: - Como assim, as pessoas vomitam no seu carro?
O taxista: - Já perdi a conta. Até já deixei de contar. Mas é impressionante. Pelo menos uma vez por mês, às vezes duas, alguém entra no meu táxi e...
O cronista (repetindo-se): - Como assim...?
O taxista:  - ... Eles vomitam, doutor, vomitam. Algumas vezes são mulheres grávidas que transporto e, de repente, assim no meio da viagem, elas começam a vomitar no banco traseiro, ou até mesmo no meu colo quando se sentam no banco da frente...
O cronista: - ????
O taxista: - Quando vomitam no meu colo, ou no meu pescoço, tenho de parar o serviço e ir para casa, no Rio Comprido, para me lavar porque eu e o táxi ficamos com um cheiro insuportável...
O cronista: -  E, além das grávidas, quem mais vomita no seu táxi?
O taxista: - Muita gente, doutor, muita gente. Trabalho muito à noite e às vezes carrego pessoas recém-saídas de bares, casas noturnas e de restaurantes, geralmente bêbadas. E aí não dá outra: vomitam tudo que beberam no meu táxi...
O cronista: - Mas isso é extraordinário. Pergunto por assaltos a taxistas e você me vem com, digamos, vômitos a taxistas...
O taxista (interrompendo-me): - ... E não é só grávida e bêbado, não. Um dia peguei um passageiro na Avenida Rio Branco, bem apessoado, todo enfatiotado, de paletó e gravata, muito elegante mesmo. Disse que morava em Brasília, e pensei que pudesse ser deputado, senador, ou até mesmo algum ministro. Não parecia bêbado, muito menos grávido, mas, logo depois de iniciada a corrida, ele, que estava sentado logo atrás de mim no banco traseiro, vomitou no meu pescoço, doutor! Foi uma coisa horrível, doutor, horrível!!
O cronista (Cada vez mais arrebatado pelo inusitado na narrativa): – Ele vomitou assim, do nada?
O taxista: - Do nada, doutor. Ele mesmo estranhou. Disse, até meio envergonhado, que não sabia por que tinha vomitado; que não estava doente, nem nada. Falou que, de repente, uma vontade imensa de vomitar o invadiu, e ele vomitou. Simples assim.
O cronista: - E daí?
O taxista: - Ele pediu mil desculpas. Pediu que o levasse ao Hotel Novo Mundo, onde estava hospedado, pois agora precisava urgentemente tomar banho e mudar de roupa, pois estava exatamente indo à uma reunião importante. Quando chegamos lá, ele tirou 200 reais da carteira, me pediu mais desculpas, e eu fui ao posto mais próximo me lavar, e lavar o carro que fedia a merda, sabe doutor?, parece que o cara tinha vomitado merda, doutor...
O cronista -  (Agindo jornalisticamente, louco por números) – Você tem idéia, Agenor (assim se chamava o taxista), de quantas pessoas já vomitaram no seu táxi?
O taxista:  – Ah, doutor, difícil saber. Mas, com certeza, mais de vinte. Talvez trinta. Talvez quarenta. Não tem pra ninguém: sou, com certeza, o taxista mais vomitado do Rio de Janeiro.
O cronista:  – Não duvido... E acho isso uma coisa impressionante, Agenor! Um dia ainda vou escrever sobre isso...
O taxista:  - O doutor é jornalista?
Quando ia responder à pergunta, olhei para o lado e percebi o mesmo carro vermelho e a mesma motorista maquiada com batom vermelho de vinte minutos antes, a mesma paisagem ao fundo coalhada de sepulturas e mausoléus. Então, intempestivamente (antes que vomitasse no carro de Agenor?), resolvi fazer o caminho até em casa a pé.
Olhei para o taxímetro (paguei o dobro da quantia devida), disse ao taxista que desceria ali, que aquele trânsito estava me deixando com enjôos, e desci do carro. Da janela do carona, desejei boa sorte a Agenor, e lhe disse, em tom brincalhão: - Acho que não devo desejar que Deus que lhe proteja dos assaltos, e sim que Deus lhe proteja dos vômitos. E é o que lhe desejo: Que Deus lhe proteja dos vômitos!
O taxista: - Amém, doutor, amém.
(Segui a pé para casa, pensando no estranho destino do taxista Agenor: o de ser vomitado pelos passageiros que transporta. Mas, de imediato, veio-me pensamento consolador: talvez fosse ligeiramente melhor ser vomitado pelos passageiros do que assassinado pelos passageiros. Cada um com sua sina).




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3 comentários:

  1. Oi Rogério,
    Taxistas dão ótimas histórias, né?!
    Gostei.
    Engraçado isso da gente ver primeiro o lado ruim de tudo... sempre fico na dúvida se é um caso de perspectiva ou expectativa :-)
    Beijin,

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  2. Haha! Coitado do taxista! ^^

    É, taxistas são sempre cheios de história! Imaginem numa cidade onde eles são também chamados de "taxêros", rsrs... Meu primo Gustavo (filho de Néa, prima de minha mãe) tem um blog só com crônicas sobre taxistas!

    Segue o link: http://vaidetaxi.blogspot.com/

    Abraços

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  3. A primeira vez que o li, foi exatamnete nessa crônica e confesso que não conhecia esse seu nutritivo talento recheiado de ficção e realidade; sabia do jornalista, sabia do ator, sabia da sua simpatia. E Marcio me alertou e conferi como você é bom escritor. Tentei fazer um comentário que já estava maior ou do tamanho do texto a comentar. Eu tinha argumentos porque fui taxista em Salvador, além de funcionário público, ator,universitário e mais uma porção de atividades. Você sabe,que ser ator na Bahia é assim.Com era naquele tempo e talvez até hoje, conforme relata o documento verdade do Avelaz Y Avestruz. Enfim, tinha vontade também de revelar incríveis, inacreditáveis, fantásticas e surpreendente histórias que aconteceram no meu taxi. Tem a do Burle Max, Regina Casé,Zelito Miranda,alguns Novos Baianos,Evandro Mesquita e tantos outros.Mas eu acho que vou criar um blog também. Abraços.

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