domingo, 26 de fevereiro de 2012

HAMID, O QUASE AMIGO AFEGÃO (OU PARE O MUNDO QUE EU QUERO REBOBINAR TUDO)

Quando aquelas visitas chatas típicas de tardes quentes de domingo adentravam a minha casa, em meados dos anos 1960, em Jequié-Bahia, acionava meu truque básico. Por que eu teria de suportar aquele amigo chato de meu pai, ou aquele primo de mau hálito um pouco mais velho que tinha a mórbida curiosidade de saber se eu já tinha ´perdido o cabresto´ (eufemismo de época, que significava perder a virgindade), ou aquela tia com voz de gralha que teimava em apertar as minhas bochechas, e exclamar: - Fofo. Este é o menino mais fofo do mundo!
(Fofo, o caralho!, pensava; mas infelizmente não dizia)
Acionava, repito, meu truque básico: tentava cumprimentar cordialmente a todos; o que nem sempre conseguia; a simples presença desses outros já me irritava espetacularmente, e, pé ante pé, escondido de minha mãe que achava que fugir de visitas era falta de educação, seguia em direção ao meu quarto, deitava na minha cama, e fingia dormir.
Agi assim durante toda a minha infância. Minha mãe querida e amada certamente já havia percebido o meu truque, e não me apoquentava. Mas, vez em quando, talvez para testar a minha capacidade de concentração – afinal fingir dormir é árduo exercício – ela trazia alguns dos convidados para o meu quarto,  e obrigava-me a ouvir a conversa ao meu lado sem sequer piscar, e adotando um grau de rigidez que não poderia ser nunca cadavérica, pois ninguém dorme em rígida posição cadavérica.
Criei então truques complementares. Em movimentos diferentes, mexia parte do braço ou da perna, ou coçava a barriga, ou roncava discretamente.
Um dia quase me traí, e quase abandonei o personagem do menino que dormia no meio da tarde de domingo. Aquela tia com voz de gralha que teimava em apertar as minhas bochechas comentou com minha mãe, ao sair do meu quarto: - Este menino dorme muito durante o dia. Se continuar dormindo tanto assim vai ficar gordo feito uma baleia!
Ao ouvir tal vaticínio, dividi-me em duas vontades: 1. Parar de fingir que dormia e pular na jugular daquela bruaca aos gritos de: - Baleia é a senhora, com essa bunda maior que a geladeira Gelomatic que a gente tem na cozinha aqui de casa. 2. Manter o personagem, mergulhar de maneira ainda mais profunda nesse sono mentiroso, e fingir que não ouvira nada.
Claro, adotei o comportamento número 2, e mantive esse hábito, fingir que dormia diante de pessoas e situações inconvenientes pelo resto de minha vida.
Fingia dormir, entre outras muitas situações:
a)    Diante do amigo chato que teimava em, diante do aparelho de tevê preto e branco que exibia uma ainda virginal Regina Duarte trajando um comportadíssimo maiô e fazendo propaganda do creme dental Kolynos, me fazer a seguinte indagação: - Você comia, não comia, essa gostosona?
b)    Em visitas que fazíamos a amigos também em tardes de domingo, o momento do sono profundo sobre o sofá era iniciado quando a dona da casa pedia licença, ia até a cozinha, punha café na água quente (e já nos primeiros cheiros da bebida chegados até à sala, eu desabava sobre a cadeira do sofá, e fingia dormir pesadamente). Quando criança, eu odiava aquelas pequenas xícaras de café preto extremamente açucaradas a que éramos obrigados a sorver, mesmo as crianças, sob pena de sermos chamados de mal educados.
c)     Em noites de meio de semana, geralmente às quartas-feiras, nas quais o meu amado e querido irmão, acompanhado de primos ´pegadores´ sempre fazia visitas ao puteiro local, e, bem-intencionadamente, sempre sugeriam me levar para que eu me ´tornasse homem´, enrabando uma quenga qualquer. O que me obrigou a, durante certo tempo, sempre às quartas-feiras me recolher ao meu quarto e fingir que dormia, por pura precaução, já pelas sete da noite.
O hábito fez o monge – e foi um santo hábito. Salvou-me de situações de tédio mortal em diferentes momentos de minha vida adulta.
Em conversas nas quais o interlocutor teimava em contar os sonhos que teve na noite anterior, o-de-io que me contem sonhos, geralmente em mesas de bar e já depois de algumas boas doses, deixava cair a cabeça sobre a mesa, e fingia dormir profundamente.
Em corridas de táxis nas quais o taxista insistia em papos-furados nos quais contabilizava as mulheres que comeu a bordo do automóvel que dirigia, ou, geralmente em São Paulo, faziam discursos nos quais punham Paulo Maluf como o maior homem de todos os tempos, tombava o meu pescoço para trás, e fingia dormir pesadamente.
Em voos internacionais, nos quais somos eventualmente premiados,  por 12, 13, 14  horas, com companheiros de bordo que seríamos capazes de esfaqueá-lo para que parem de conversar bobagens. Há quem creia ingenuamente que a leitura de um livro baste. Não eu.
Até tentei certa vez num vôo relativamente curto entre Nova York e Paris (seis horas). Tentei começar a ler um livro de Philip Roth, mas não consegui passar do primeiro parágrafo.
Ao meu lado havia se instalado um homem cor de tamarindo, forte compleição física, e bastos bigodes. Cheirava a álcool e a fumo e almíscar, e comia, numa vasilha de barro, comida não identificada pelos meus padrões ocidentais, mas, noblesse oblige, tinha cheiro tentador.
Entre o primeiro parágrafo do livro de Roth e o cheiro tentador da comida do homem ao lado, capitulei: olhei para o homem ao lado e para a iguaria que devorava. Foi o que bastou. Num inglês britânico perfeito, soltou o verbo: era afegão; estudava relações internacionais em Paris e dava aulas mensais sobre a cultura árabe em Nova York e Londres. (Tentei voltar à leitura do romance de Roth, mas não consegui).
O afegão, que se dizia chamar Hamid, comia e falava com fúria titânica, e eventualmente farelos dos cuscuzes que mastigava disparavam como bólidos, e manchavam a página inicial do romance de Roth, e me atingiam em cheio em algumas partes do rosto.
Hamid perguntou meu nome. Pensei em dizer qualquer um. Alberico, por exemplo. Mas falei a verdade: - Rogério.
Ao iniciar o serviço de bordo (estávamos num vôo da Air France), uma das aeromoças parou ao nosso lado para nos servir. Hamid vociferou: - Veneno. Essa comida é venenosa, Rogero. Por isso trago minha comida pronta de casa.
Ao aceitar com bom grado a refeição oferecida pela aeromoça, estava morrendo de fome, Hamid urrou: - Não coma isso, Rogero. Isso é veneno. Você vai morrer envenenado!
Hamid começou a então a assumir um tom de passionalidade que me desconcertou: - Acabei de conhecê-lo. Mas você parece um homem bom, e, além disso, tem muita semelhança com um grande amigo que mora em Cabul. Por isso gosto de você, e por isso não quero que coma essa comida que poderá matá-lo. Se você quiser, posso dividir a minha comida com você!
Nada contra afegãos. Nada contra comida afegã. Mas era, e sou pessoa basicamente tímida (os sonos fingidos da infância demonstravam essa minha timidez quase paralisante), e passar seis horas conversando sem parar com Hamid, por mais santo homem que ele pudesse ser, me pareceu mais doloroso que assistir a cena dos leprosos do filme Ben-Hur.
Foi então que resolvi usar o velho truque da infância. Fechei o romance de Roth, enfiei na mochila, devolvi intacta a comida servida a bordo, e, não querendo ser grosseiro com Hamid, justifiquei-me: - Tive um dia complicado em Nova York, e quase não dormi à noite passada. Vou tentar dormir um pouco.
Virei-me então de costas para Hamid. Comecei a tentar fingir de dormir como nas tardes de domingos quentes e entediantes de Jequié na minha infância.
Quando tentava incorporar o homem que fingia dormir, a voz tonitruante de Hamid soou no meu cangote: - Por favor, meu amigo, não durma. Dormir a bordo de aviões é um perigo. Caso aconteça um acidente, os que estão dormindo serão os primeiros a morrer.
Agradeci o alerta, mas menti que o sono era mais forte do que eu, e precisava dormir (melhor, fingir de dormir). E cheguei a respirar aliviado, como apenas fingiria dormir, caso algum acidente acontecesse eu não seria um dos primeiros a morrer.   
Virei novamente as costas para Hamid, que, não voltou a insistir para que eu não dormisse, mas bradou: - Vou rezar por você, vou rezar para que se o avião cair com você dormindo você não seja dos primeiros a morrer.
Não era exatamente um estímulo para um sono reparador. Nem mesmo para um sono fingidor. Mas me concentrei ao máximo, e fingi um sono profundo até que o avião pousou no Aeroporto Charles De Gaulle.
Fingi um sono profundo tão espetacularmente  bem que nem abri os olhos quando uma turbulência dos diabos chacoalhou o avião em meio ao Oceano Atlântico, e quando ouvi Hamid rezando em voz alta num idioma que não entendia e segurava minha mão fortemente, como quisesse de fato evitar que eu fosse o primeiro a morrer caso o avião caísse no mar.
Ao aterrissarmos em Paris, bicho do mato que sou, tentei escapar rapidíssimo das garras de Hamid. Se no avião ele me demonstrara tanto apego, o que poderia acontecer na chegada à cidade?
No mínimo, quereria dividir um táxi comigo. No máximo, me convidaria para um chá numa casa de subúrbio onde viveria com mulher e muitos filhos,  e eu talvez precisasse utilizar o velho truque do sono fingido.
Apenas com pequena mochila como bagagem de mão, pedi licenças seguidas aos passageiros que levantavam dos seus assentos, em assumida tentativa de escapar das garras de Hamid.
Enfim, livre de Hamid, fui um dos primeiros a desembarcar.
Enfim só.
De repente, uma forte mão masculina pesa sobre o meu ombro esquerdo, e ouço: - Você é um homem bom. Hamid nunca se engana, você é um homem bom. Hamid quer ser amigo de Rogero. Onde você vai ficar aqui em Paris?
Gelei. Contatos humanos inesperados me imobilizam, e me petrificam.
Menti: - Duas amigas estão me esperando. Vou ficar na casa delas.
(Pura e deslavada mentira: minha intenção era flanar por Paris, sem rumo, completamente sozinho, como sempre fazia. Único programa definido: ler o romance de Roth bebendo vinho num bar na beira do Sena. E só)
Hamid me deu um forte abraço, enfiou um cartão na minha mão, que continha um número de telefone, e urrou como um leão cor de tamarindo: - Rogero, tenho certeza de que poderemos ser os melhores amigos do mundo!
Hamid sumiu na multidão do Charles de Gaulle.
Eu, sozinho, sem ninguém a me esperar, peguei um táxi,  e pedi que me levasse até o Hotel Flaubert, na Rue Renequin, 19, perto do Arco do Triunfo.
Flanei dez dias por Paris.
Li e adorei A Pastoral Americana, de Philip Roth.
E, numa noite em que cheguei bêbado no Hotel Flaubert, pensei em ligar para Hamid.
Mas um sono avassalador, não daqueles fingidos que me salvaram (ou que, talvez, tenham impedido que minha vida tomasse outros rumos) em tantos momentos, me arrebatou, e nem sequer sonhei com Hamid.
Dia seguinte, voltei a São Paulo, onde então morava, mas antes piquei em pedacinhos o cartão que Hamid me havia dado no aeroporto e joguei nas águas do Rio Sena,
Epílogo: duas décadas depois, em noite quente de domingo de 27 de fevereiro de 2012, ao sentar em frente a este computador para escrever crônica sobre assunto completamente diferente, Hamid apareceu na minha frente de maneira tão real e tão indelével que tive que mudar o rumo da prosa.
Também me obriguei a perguntar: por onde andará o afegão Hamid?
Ato contínuo: pensei, mas não transformei a intenção em gesto, em chegar até à janela e gritar e gritar e gritar: – Hamid! Hamid! Hamid!




    

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