quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MOCREIA, MOCREU & ORFEU (OU SOBRE A IMPORTÂNCIA DE APERTAR O BOTÃO DO FODA-SE)

Vez em quando no meio da madrugada, o baixo Botafogo mergulhado no mais sepulcral dos silêncios, acordo apavorado, com a seguinte constatação me atravessando o coração e a mente e o baixo ventre: nos últimos nove anos teriam me acontecido mais coisas estranhas (aparentemente inexplicáveis) do que coisas ruins.  Talvez o único fato inegavelmente ruim  que me aconteceu  nos últimos nove anos tenha sido a morte do meu melhor-amigo-irmão-camarada, o arquiteto e livre pensador Manoel José Ferreira de Carvalho, em 3 de dezembro de 2005, no Hospital Jorge Valente, na Avenida Garibaldi, em Salvador, Bahia.  
Em seguida a essa constatação, já imerso em insônia insana, a seguinte questão surge, escritas com letras de fogo no teto-céu do quarto: O que será pior?
1.       As ocorrências estranhas, e aparentemente inexplicáveis, e aparentemente inauditas (que nos ferem e nos derrubam como se fossem flechas envenenadas disparadas aleatoriamente por um deus bêbado), e sobre as quais, mesmo que ocupemos o resto da insônia, e, talvez, da vida, nunca encontraremos respostas irretorquíveis?  
2.       As ocorrências ruins, contra as quais nada poderemos fazer  a não ser, desalentados, chorarmos, chorarmos, e chorarmos, e, constatarmos desolados que contra a morte nada poderemos fazer, com nada poderemos detê-la, nada, absolutamente nada?
Aos 35 minutos do segundo tempo, caro leitor, atesto e dou fé: ainda não tenho resposta definitiva sobre as questões listadas acima – e talvez nunca a terei. Fazer o quê?  
Aos  35 minutos do segundo tempo, no entanto, com algum domínio de corpo e de espírito, e de certo jogo de cintura que a idade nos proporciona,  aprendi: o caminho da loucura e do naufrágio é, no geral, levar a vida a sério demais; e, no particular, se levar a sério demais. Foi então que resolvi praticar, e hoje não faria feio em alguma competição olímpica do gênero (que não existe, claro; mas deveria existir):  surfar nessa  onda de ocorrências estranhas e aparentemente inexplicáveis que ocorrem comigo, e também contigo, caro leitor. Em bom português: surfar sobre a (nossa) própria merda, sobre o (nosso) próprio caos.
O pontapé inicial no sentido de me manter imune ao bombardeio ao redor, com o olhar e a cabeça e o tronco firmes ainda que tudo ao redor desabe, e desabe com efeitos especiais que nem Hollywood seria capaz de engendrar, foi dado por certo psicanalista paulistano que frequentei por algum tempo nos anos 1990. Certo dia, cansado dos meus queixumes e dos meus embates com os desatinos da existência, Dr. M.B. disparou, rápido e certeiro:  -  Meu querido, a vida é,  e sempre será, totalmente inexplicável. Não pense tanto, não lute tanto, não se lamente tanto; simplesmente aperte o botão do foda-se, e se deixe levar!
Acatei a sugestão de Dr. M.B com, claro, certa relutância (nessa época ainda me levava muito a sério e ainda acreditava, digamos, nos meus superpoderes). Mas,  enfim acatei – e,  algum tempo depois, já nos anos zero-zero  e de muuuuitas mudanças de rumo efetuadas, resolvi: 1)   mais do que apertar o botão do foda-se,  daria algum nexo literário a essas ocorrências estranhas (ou que eu achava que fossem estranhas); 2) mais do que apertar o botão do foda-se, creria que essas estranhas ocorrências surgiam-me no caminho  exatamente para que eu escrevesse sobre essas estranhas ocorrências. Bingo. Simples assim.
Ok, não menosprezo a imaginação e a criação e a invenção – mas acredito, prefiro,  e pratico, e pratico, prefiro, e acredito contritamente, na (re)imaginação , na (re)invenção), na (re)criação). Ou seja:  nada sobre o qual escrevo, ou escreverei , surge, ou surgirá, a partir do mais inexorável nada, ou, que tal dizer?, do buraco abissal da minha alma profunda.   
De algum tempo para cá, depois de alguns embates com o jornalismo que se faz e se comete aqui, ali & acolá & e alhures, venho  fazendo certa questão de me definir mais como escritor do que como jornalista. O que é deslavada e inexorável mentira.  Ajo literariamente, e interajo com a minha vida e com a vida dos outros (e nestes outros, inclui seres ditos não humanos, tipo gatos, como Ravic, e cachorros, como Martim, os quais reverenciarei até o fim dos meus dias), de forma desabridamente jornalística. Não ando feito maluco 18 quilômetros por dia no Aterro do Flamengo, ou na porra de cidade na qual estiver,  para ensimesmar-me. Ando feito um maluco 18 quilômetros por dia no Aterro do Flamengo, ou na porra de cidade na qual estiver, para registrar o funcionamento e o movimento do mundo, o funcionamento e o movimento dos barcos, o funcionamento e o movimento de mim mesmo e dos demais seres humanos que habitam o planeta Terra.
Há escritores que se isolam em cavernas (metafóricas e não) em busca de musas inspiradoras diáfanas que lhes revelem o que vale ou não a pena escrever about, o que vale ou não a pena desvendar about. Ou que até caminham de quando em vez,  mas sempre ensimesmados e afundados  em caraminholas barrocas, olhando eternamente para o chão e, pior, para o próprio umbigo – mesmo  que, bem ao lado, lhe cruze o caminho algum personagem arrebatador que lhe poderia render  livro arrebatador e que poderia lhe transformar num escritor arrebatador (tipo os contemporâneos Roberto Bolaño & Amós Oz & Philip Roth & Ohran Pamuk & J.M.Coetzee).  
Nada contra esse jeito de o escritor contracenar com o mundo ao redor, e com o próprio umbigo. Mas sou feito de outro barro, de outra lama, de outra merda.
A cada dia que ando no Aterro do Flamengo, ou nas praias imundas da Ilha do Governador, ou no regurgitar frenético do burburinho da Avenida Rio Branco e da Central do Brasil, ou em que porra de lugar do planeta estiver,  cruzo com no mínimo três ou quatro personagens arrebatadores que renderiam romances arrebatadores, e sobre os quais um dia espero escrever romances arrebatadores. Ou não (a vida é caixinha de surpresas, para o bem & para o mal, pois não?).
Dou-lhe, caro leitor, e lhe dou de graça, pelo menos três exemplos desse meu vício nada solitário, do qual não quero me livrar nunca, de observar as pessoas, de olhar-lhes intensamente, de sentir-lhes odores,  de perceber-lhes a respiração, os gestos, os maneirismos  (talvez por isso caminhe sempre de óculos escuros, para que as pessoas não percebam que eu as observe, e, ao se perceberem observadas, enrijeçam, se intimidem, e não ajam como realmente são).
Exemplo 1:  Chamo-a, para meu consumo pessoal: Mocreia I, a louca (às vezes, acordo no meio da noite pensando nela; deus é mais!). Trata-se de sessentona opulenta de carnes mezzo rijas e mezzo flácidas,  não exatamente guapa  (pelo menos para os padrões de beleza em vigor). Infiro, a partir do comportamento e da atitude  que adota em cena: acha-se  linda, maravilhosa, e enxerga nela alguma semelhança física com alguma estrela de cinema de tempos idos (e é o que importa, pois não?).  Sempre a bordo do pathos bonita & gostosa,  desfila corpanzil com todas as polegadas a mais a que teve direito nesses muuuuitos anos de estrada, sem pejo algum. Enfia-se em minúsculo biquíni que usa invariavelmente, dia sim, outro também, chova ou faça sol, esteja quente ou esteja frio, seja na alegria ou seja na tristeza. Usa sandálias de couro, tipo franciscanas, e meias soquete. Na mão esquerda aperta, à guisa, digamos, de adereço de mão, a camiseta enrolada que nunca usou, nem, pelo visto, nunca usará. A mão direita posiciona-se levemente encurvada, e a certa distância da cintura roliça, o que lhe empresta certo ar de quem desfila em passarela invisível para público invisível (pelo menos para mim; para ela talvez não, caro leitor).
Exemplo 2: Chamo-o, para meu consumo pessoal, de Mocreu I, o louco (às vezes, vejo-o em pesadelos, dos quais acordo aliviado, principalmente por perceber que, no escuro da noite, ele não está  ao meu lado roncando como geladeira velha e fungando no meu cangote). Tal constatação não é eivada de desprezo (tenho-lhe, ressalte-se, enorme compaixão), e preciso fazê-la:  na minha modesta opinião, é um dos homens mais feios que já pus os olhos em toda a minha existência: cabeça redonda feito melancia-redonda; cabelos avermelhados, cortados rente na parte traseira da cabeça, e viçosamente cultivados no topo da cabeçorra, como se fosse a crista de um galo gordo, o que talvez o faça se sentir um pouco mais alto, já que não deve ter  mais de um metro e meio de altura. Jovem, talvez tenha entre 30 e 35 anos, anda com a velocidade de uma flecha gorda, de uma corça gorda, apesar do corpanzil barroco que ostenta. Percebe-se, pela força dramática de passadas pesadas e vigorosas, e por certo esgar de dor que lhe atravessa eventualmente o rosto, que trava desesperada luta para perder peso e, quem sabe, caber no corselet que o namorado dinamarquês lhe deu no carnaval passado. O esforço parece ter sido em vão: desde que o vi pela primeira vez, há uns seis ou sete meses, até hoje pela manhã, 4 de agosto, ele, a olho nu, não parece ter emagrecido miligrama sequer. Tal e qual Mocreia I, a louca, parece não ter problemas de autoestima, e marcha sempre com muito garbo e esplendor. Desfila sempre a bordo de calções coloridos e curtos e justos (em assumida postura de expor as coxas roliças que parecem arrancadas de alguma índia tapuia; quem sabe de uma irmã falecida?), e camiseta regata, arrancada assim que o primeiro raio de sol lhe bate na pele morena. Ah,  sim: usa óculos escuros com lentes do tamanho de maçãs, o que lhe empresta um certo ar mezzo Pedro Almodovar, mezzo Cacique Juruna.
Exemplo 3:  Chamo-o, para o meu consumo pessoal de Orfeu  I, o anjo (às vezes me flagro, no meio de alguma insônia, desejando que, ao voltar a dormir, sonhe com ele acariciando o pouco que restou dos caracóis dos meus cabelos). É negro como as asas da graúna, bonito, corpo malhado, corre com elegância, e veste sempre camiseta branca com a inscrição Deus te Ama, e calças pretas com listras brancas nas laterais.  A primeira vez que o vi (há mais de um ano) nada nele me chamou a atenção de imediato, a não ser o seguinte, e inesquecível, detalhe: ao passar por mim,  olhou-me com admiração, e disparou-me à queima-roupa: - Deus lhe protege e lhe ampara, meu campeão. Deus lhe ampara e lhe protege, meu campeão! Foi inevitável: ganhei o dia. Sempre torço para reencontrá-lo diariamente, e receber minha ração diária de, digamos, inspiração divina (e, ainda bem, sempre o reencontro).  

Com o tempo percebi: dizia (e diz) essa frase estimulante e revigorante a todas as pessoas que lhe cruzavam (e cruzam) o caminho.  Não fiquei enciumado. Ao contrário,  a existência de criatura assim, levantando o moral do resto da nossa (sempre) combalida tropa, me emociona e me edifica.
Claro, o cara pode ser louco, poderá alegar o leitor mais cético. OK. Pode ser. Mas, para dizer o mínimo: não seria de todo ruim se todos os loucos (e os que se dizem não loucos) agissem assim.
(Viva Mocreia I! Viva Mocreu I! Viva Orfeu I! Viva eu! Viva tu. Viva o buraco do tatu!)
Moral desta história: olhe ao redor, caro leitor.

3 comentários:

  1. Bem aproveita a vida aquele que sabe a arte que é observar. É um exercício que eu faço sempre (!) ^_^

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  2. Rogerio, inexplicabilíssima a vida, ilusão pura: resta-nos observar e usufruir. Adorei!

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  3. Além do mais, ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga é MARA!!
    Adorei, é a sua cara!

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