terça-feira, 14 de dezembro de 2010

BAZÁROV, O ROTWEILER QUE VIROU LATA

Nunca mais lembrara de Bazárov.

Mas ontem pela manhã, sabe-se lá por que diabos, voltei a lembrar de Bazárov. Recordei: fora ali, naquela exata curva do Parque do Flamengo, que o vira pela primeira vez lá pelos idos de 2009. Naquela ocasião, parecia aterrorizado, devastado, no mais absoluto, e irremediável, pânico. Olhava, atarantado, para os lados, desconfiado, perdido, desesperado, sem entender exatamente o que lhe acontecera; ou sem querer crer no que de fato lhe acontecera  - e o que de fato lhe acontecera fora que alguém o abandonara ali, alguém se cansara dele e o largara ali, alguém o amarrara a uma frondosa árvore e o deixara ali, submetido ao mais total e inexorável deus-dará.

Diria mesmo que Bazárov chorava.

Segui em frente, coração algo despedaçado, gosto amargo na boca. Mas na caminhada de volta, percebi, aliviado: alguém resgatara Bazárov, - e ele sumira de cena - e precisei acreditar: teria voltado ao lar doce lar de sempre e nesse lar doce lar teria voltado a ser feliz para todo o sempre.

Não seria bem assim (nunca é). Algumas semanas depois voltei a ver Bazárov: já não tinha mais coleira; e, pelo jeito blasê com que flanava entre as árvores do local, deduzi que o desespero talvez tivesse dado lugar a certo estoicismo. Andava cabisbaixo, mas resoluto,  como se ainda procurasse se acostumar à nova rotina (não mais o uterino lugar onde habitava, e sim a imensidão idílica, e desafiadora, daquele cinturão verde que emoldura a boca banguela da baía da Guanabara).

Voltei a ver Bazárov muitas e muitas vezes. Sempre o cumprimentava. Ele sempre me ignorava. Murchava a a olhos vistos (os músculos de antes davam lugar a uma voraz flacidez, como bola de futebol que fosse se se esvaziando lentamente). Mas algo de pródigo lhe ocorrera: fora adotado por grupo de mendigos que moravam à beira mar, exatamente na fronteira entre Flamengo e Botafogo, e que se dividiam entre tentar catar mexilhões e beber pinga-de-um-real-a-garrafa no gargalo.

Bazárov se adaptou aos novos amigos. Não foram poucas as vezes que o flagrei a dormir relaxadamente entre os mendigos bêbados que, generosamente, o adotaram. Comia os mexilhões mal cozidos que lhe jogavam, bebia a água das chuvas empoçada nas cercanias, contemplava, com o encantamento possível, a belíssima paisagem ao redor - e assim ia seguindo a vida.

Em certa manhã de domingo de sol cheguei a flagrar Bazárov, quase garboso, a cheirar, com certo entusiasmo, as partes pudendas de certa poodle-metida-a-sebo que lhe fazia doce, e dele fugia esbaforida, enquanto ao fundo voz feminina bradava: - Essa cachorrinha não é pro seu bico, seu vira-lata imundo!

Bazárov, a essa altura mais estoico do que nunca, fingiu que não era com ele. Enfiou o rabinho entre as pernas. Foi se abrigar no colo da mendiga-chefe do grupo, que o acolheu como se mãe dele fosse.

Certo dia percebi: os mendigos que catavam mexilhões e bebiam pinga-de-um-real-a-garrafa-no-gargalo escafederam-se. Bazárov, também.

Certo dia reencontrei Bazárov. Vagueava sozinho pela vastidão do Aterro. Cumprimentei-o. Ignorou-me. Parecia novamente órfão. O olhar estoico de antes dera lugar a uma mancha vaga e lassa.

Nunca mais vi Bazárov.



   

4 comentários:

  1. sempre um prazer ler suas crônicas, rogério. que se tornem mais corriqueiras aqui no blog.

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  2. Rogério, resgatei alguns Bazárov na vida. É onde se mostra mais crua a indiferença humana. Magnífica a sua crônica!

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  3. amo a crônica da cidade (agora na "pele" do RJ) voltando, aos poucos...

    ;)

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  4. Oi Rogério!
    Descobri seu blog faz poucos dias e gostei muito dos seus posts, esta sua crônica em especial, me emocionou,adoro cachorros e estórias que envolvem o descaso ou a solidão desses animais me tocam. Você escreve muito bem!

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