domingo, 26 de dezembro de 2010

CAMINHANDO NA CHUVA NA CIDADE DE OUTRO PLANETA

O cosmonauta russo Yuri Gagarin  (1934-1968) legou pelo menos duas frases célebres para a posteridade: 1. A Terra é azul (quando, a bordo da espaçonave na qual viajava, avistou o planeta de onde partira). 2. Parece uma cidade de outro planeta (ao visitar a recém-inaugurada Brasília no começo dos anos 1960).

Cinquenta anos depois Brasília continua essa mesma (e adorável) cidade do outro planeta. Nada contra cidades que pareçam cidades de outro planeta. Ao contrário. Morei dez anos (entre 1998 e 2008; e morarei de novo, se preciso for) nesta cidade que parece cidade de outro planeta, e a qual procuro visitar sempre que quero rever lugares e pessoas queridos &  sentimentos e estados d´alma que me são caros.

Hoje, manhã de domingo (estou novamente nesta capital federal), Brasília parecia mais do que nunca cidade do outro planeta: fazia 21 graus, apesar do verão ora em vigor no hemisfério sul, chovia moderadamente mas insistentemente, e o céu se escondia sob colossais nuvens de chumbo.

Peguei o guarda-chuva emprestado do amigo querido que ora me hospeda, pedi que me levasse de carro até a cabeceira norte do Eixão Rodoviário, e parti. (Andar de uma ponta a outra de Brasília, aos domingos e feriados, quando o trânsito de automóveis é proibido nessa longa via, é o mais elementar, e saudável, exercício de imersão nesta cidade que parece ser de outra planeta).

São 10h30 da manhã de domingo. Chove lá fora. Desço do carro. Despeço-me do meu amigo. Abro o guarda-chuva. Caminho poucos metros até o Eixão. Olho para a frente: até onde minha vista alcança não vejo vivalma. (Nas laterais: árvores frondosas; quadras verdejantes; blocos residenciais assépticos; e carros, muitos carros, que parecem caminhar sozinhos sem que nenhum ser humano os comande).

Ando sozinho por alguns minutos. De repente, percebo à minha frente, a algumas dezenas de metros de distância, um homem. Ele também caminha sozinho. Também usa guarda-chuva. Também veste bermuda preta estampada e camiseta azul, e calça tênis pretos. Apresso o passo. Chego-lhe mais perto. Caminhamos assim, próximos, sozinhos, por longo trecho. Parece bem mais velho que eu.  Não percebe que o sigo. Por alguns momentos, deliro (deve ser efeito do ar de outro planeta de Brasília): aquele homem poderá ser um duplo-meu, bem mais velho. Nos minutos seguintes invisto no delirio-jogo: persigo um eu-mesmo-mais-envelhecido, num jogo-delírio que me empolga e que me faz caminhar mais rapidamente na tentativa de alcançá-lo. (Mas, merda, não consigo alcançá-lo).

Na altura da 108 Norte, o homem que poderá ser um-eu-mesmo-mais-envelhecido muda inesperadamente de rota. Atravessa o gramado verdejante. Desvia-se entre árvores frondosas - e some. (Sigo em frente novamente sozinho. Vez em quando, alguém cruza-me o caminho, ou me ultrapassa  a galope).

No começo da Asa Sul, depois de passar por túneis igualmente vazios e que igualmente remetem a cidades que parecem de outro planeta, ouço orquestras afinadas, e bem-vindas, de bem-te-vis. Louvados sejam.

Depois volto a cruzar com seres de rostos com traços incertos, que parecem vindos de outro planeta, e que eventualmente me encaram como se me perguntassem: - O que faz essa criatura de rosto com traços incertos, que parece vindo de outro planeta, e que me encara como se eu fosse alguém vindo de outro planeta? 

Os vendedores de bálsamos-para-a-sede de diversas origens,  que comerciam às margens da via aos
domingos e feriados, escafederam-se (como se tivessem sido fulminados por alguma poção letal na madrugada anterior). Mas, como se fosse miragem do deserto de planeta não identificado, avisto a combalida e detonada e bombardeada kombi (que talvez um dia tenha sido marrom; ou azul?) do senhor Francisco.  (Trata-se de um paraibano valente que, chova ou faça sol, está sempre ali, na altura da 108 Sul, vendendo doses salutares de água de coco).

Ele me saúda efusivamente (devo ser o primeiro ser vivo que encontra nessa manhã de domingo): - E aí, capitalista? Uma aguinha de coco docinha e geladinha? Trocamos nove ou dez palavras. Pago-lhe R$ 2,50. Enfio o canudinho no coco. Despedimo-nos (ele me deseja boa sorte; eu lhe desejo feliz ano novo).

Vou em frente. Aqui e ali ainda deparo com homens de rostos com traços incertos, que parecem vindos de outro planeta. A partir da 112 Sul, não mais. (Ok, o verde resplandece nas cercanias, e os carros que parecem caminhar sozinhos sem que ninguém os comande não param de circular. No mais não há novamente vivalma ao redor até a 116 Sul. Olho o relógio: 12h25 - e volto a delirar: quem sabe já morri hoje de manhã naquele apartamento do Sudoeste, e o mundo de fato acabou?

O barulho do celular no bolso da bermuda me tira do transe. Atendo: é o amigo querido que me hospeda. Diz que está me esperando na porta do MacDonalds da 114 Sul.

(Ufa!) Felizmente (ou infelizmente; há controvérsias): a vida continua.




3 comentários:

  1. Só agora pude passar aqui e adorei. É muito bom ter seus escritos fresquinhos e ao nosso alcance. Com calama, vou devorar este blog. Bjs mil e saudades

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  2. Bom saber que vc está circulando (ou estava?) por aqui. Quem sabe a gente não se esbarra de novo e põe as notícias em dia como naquela tarde na di lorenza? abração e um 2011 prazeroso e produtivo.

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  3. Oi Rogério!
    Eu acho o máximo quem consegue fazer um texto onde poderia ter só uma frase. Maravilha... maravilhada!
    Um 2011 mágico como é a sua escrita!

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