segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A VIDA DURANTE A GUERRA E A NOVELA DAS OITO

Depois de um dia estafante numa Rio de Janeiro que faz um calor dos diabos, meus planos noturnos eram  pouco ambiciosos: assistir a mais um capítulo de Tititi (a novela das sete que, exatamente por não se levar tão a sério,  e não pretender ser simulacro - argh! - da realidade, é perfeita para zerar o cérebro nesses tempos sombrios) e, mais tarde, um novo episódio do seriado americano The Event (pelos mesmos motivos já citados). Mas eis que a roda da fortuna gira, a lusitana roda, e, num intervalo comercial, descubro: seria hoje que Gerson, um dos principais personagens da novela Passione, de Silvio de Abreu, revelaria o seu terrrível segredo ao Dr. Flávio Gikovate, o psiquiatra que tenta abrandar-lhe, digamos, os achaques.

Duas horas depois, assisto à seguinte, e patética, cena: um nervoso e tenso homem de quarenta e poucos anos (Gerson, na verdade o ator Marcelo Antony) abre o coração para o psicanalista que o atende de sesenta e poucos anos (o Dr. Flávio Gikovate, na verdade, o psicanalista Flávio Gikovate). Revela-lhe que gosta de sexo sujo, que gosta de cheirar banheiros ´fétidos´, e coisa e tal, bla-bla-bla...

Depois de ouvi-lo com um olhar plácido, o ´personagem´ Dr. Flávio Gikovate agradece ao paciente por essa retumbante revelação, o que, segundo o psicanalista, lhe propiciará traçar eficaz estratégia para curá-lo. A cura é, hosana nas alturas, indolor, rápida, e imediata. Cenas seguintes: a) o nosso herói trágico de araque aparece em cena, com cara de atriz jovem fazendo anúncio de absorvente; b) está à beira de lago no parque do Ibirapuera, em São Paulo; c) emana ar de felicidade tão espetacular que o faz jogar pedrinhas no lago; d) ao fundo ouve-se a voz diáfana do ´personagem´ Dr. Gikovate bradar :  - Você é como todo mundo, você é como todo mundo!

Próximo ato (e que, perdão leitores, me fez vomitar caudalosamente no tapete da sala): o tal Gerson , a bordo de sorriso colgatíssimo, donde podemos deduzir que esteja totalmente curado, encontra a namorada, tem com ela conversa amorosíssima, e, mesmo que a novela ainda não tenha acabado, percebia-se: eles serão felizes para sempre.

Mas cá pra nós: o que eu, tu, nós, vós, eles temos a ver com o fato de esse tal Gerson gostar ou não de cheirar banheiros fétidos pelos quatro cantos do mundo ou que goste de transar com mulheres gordas com bundas e vaginas mal lavadas? (Já pensou, caro leitor/telespectador, se o tal Gerson tivesse problemas ginecológicos? Imagine o que nos obrigariam a ver!)

A cena também nos permite perceber a seguinte, e exdrúxula, equação: o personagem  Gerson (por natureza, falso, irreal) revela-se real - e creio piamente que 99,9% dos habitantes do planeta Terra terão questões sexuais (ainda; ou para sempre) não resolvidas; os 0.01% restantes acabaram de falecer no último segundo; o psicanalista Flávio Gikovate, que tem realmente sólida formação psiquiátrica, e consultório muito concorrido em São Paulo, portanto um ser verdadeiro, real, revela-se irreal - tenho dúvidas se 99,9% dos psicanalistas do planeta Terra convidados topariam virar personagem de novela de tevê.

Mas esse episódio é revelador: reflete as promíscuas e incestuosas relações entre realidade e ficção nas telas da tevê brasileira, das quais resulta a seguinte, e esquizofrênica, equação: novelas que querem parecer vida real; vidas reais que querem parecer ficção.

Resultados dessa preocupante esquizofrenia: 1) novelas que deixam de ser válvula de escape, lazeres bem-vindos para zerar os nossos cérebros - e me responda rapidinho, caro leitor/telespectador, qual o problema de continuarmos fazendo novelas que desopilem nosso fígado carregado de bílis e fel nesses dias de ira e tédio profundos? 2) telejornais que, por mais reais que aparentem ser, transpiram forte tom de manipulação (parece haver em processo espécie de paradoxal dramaturgia telejornalística), em que mocinhos são mocinhos e bandidos são bandidos (e, sabemos que não é simples assim, desde A Bíblia Sagrada, passando por Shakespare, Faulkner, Becket, e o nosso genial Nelson Rodrigues, entre outros, que a vida real nunca foi, nem será, bem assim) .

Resultado: novelas que se tornam cada vez menos atraentes exatamente por insistir nessa tecla ´realista´; telejornais que se tornam cada vez menos críveis e confiáveis por apostar nessa tecla ´irrealista´.

A heroicização da ocupação do Morro do Alemão ontem no Rio de Janeiro (na qual todos os policiais envolvidos foram apresentados como arrebatados e cabais heróis que representavam  todos os mais sagrados valores das virtudes humanas) começou a cair por terra hoje mesmo, no dia seguinte ao que se vendeu na tevê como o apogeu de uma nova era. Num telejornal do início da noite uma desconcertada repórter (como se aquilo que noticiava parecesse não se adequar a toda essa dramaturgia telejornalística em curso) anunciava que moradores da região tomada ontem pelas ´forças do bem´ contra o ´coração do mal´ se queixavam de alguns policiais que estavariam invadindo casas para saqueá-las.

Donde se poderá, corretamente, concluir: a vida real nunca deverá, nem poderá, ser manipulada.

Se tal manipulaçao pudesse de fato acontecer, talvez fosse o caso de sugerir que o governo do Rio de Janeiro contratasse os serviços do personagem Dr. Flávio Gikovate da novela Passione para curar todos esses psicopatas que comandam o tráfico do Rio de Janeiro.

Aviso aos navegantes: nem todos os psicopatas do planeta Terra serão assim tão facilmente identificáveis quantos esses pobres-diabos que assombram os morros, e o asfalto, desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. Rogério, isso tudo é para o alivio da maioria que gosta de classificar as pessoas como do "bem" e do "mal", como se não fosse tudo a mesma coisa. Por essas e outras é que vejo cada vez menos a minha TV.

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