segunda-feira, 31 de outubro de 2011

AMOR MEU GRANDE AMOR (OU NO METRÔ COM ANGELA RORÔ)

Na ex-capital federal são 17 horas. Pago no guichê seis reais e vinte centavos pela passagem de ida e volta do metrô. Estação Botafogo. Olho em volta. Meu olhar se fixa em senhorinha de cabelos brancos, meio corcunda, que, atabalhoadamente, tenta desvendar os números dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. Detalhe curioso: utiliza-se de lupa para tentar desvendar os números dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. É algo masculina, e se veste com elegância discreta: usa tênis de marca, calça cargo cinza e camisa preta quadriculada. No rosto, zero de maquiagem.
O cabelo grisalho tem corte antiquado, o que a envelhece ainda mais. Finalmente desvenda os números que tentava desvendar, e fala com alguém aos berros. Dirijo-me à plataforma de embarque, e passo rente à velhinha corcunda no exato momento em que se vira em minha direção.
Percebo 1: tem olhos espetacularmente azuis (ou seriam verdes?).
Percebo 2: já ouvira, e ouvira muuuuuuito aquela voz que tonitrua ao celular e que reverbera por um raio de muuuuitos metros.
Percebo 3: aquela senhorinha corcunda é a cantora Angela RoRô – para   quem bato cabeça até hoje – e que cantou grande parte da minha trilha sonora amorosa nos anos 1970/1980.
Penso em abordá-la. Penso em abraçá-la. Penso em lhe dizer o quanto fora importante na minha juventude, o quanto cantara com amigos canções suas em mesas de bar, altas madrugadas, bêbado de lamber sarjeta, apaixonado até o último fio dos cabelos outrora bastos. Mas não sou disso. Sigo em frente. Mas torço para que me siga. E ela me segue. Ao olhar para trás, no fim da escada da plataforma de embarque, vejo: Angela RoRô também desce, sem deixar de falar ao celular.  Desacelero o passo - e torço para que pegue o mesmo vagão de metrô que eu.
Minha torcida funciona: ela estaciona exatamente ao meu lado na plataforma de embarque, e novamente se utiliza da lupa para desvendar os número dos dois aparelhos celulares que carrega nas mãos. Então me pergunto: por que diabos Angela RoRô não usa óculos em vez de se utilizar daquela lupa quase obscena que atrai olhares curiosos e sorrisos de escárnio? Elementar, meu caro cronista: vaidade. Talvez tenha concluído, num raciocínio torto e desastrado, que usar óculos a envelheça. Mas o que poderá envelhecer ainda mais esse velhinha precoce que tem apenas 62 anos, a serem completados a 5 de dezembro, e que aparenta ter quase 80?
Lembro então de certo programa ordinário que o canal a cabo Home & Health exibe dezenas de vezes por semana: 10 Anos Mais Jovem. Imagino aquela senhorinha, agora ao meu lado, enjaulada na Cinelândia, com os circunstantes tentando lhe adivinharem a idade (exatamente como acontece no programa ordinário da H & H). Certamente os circunstantes dirão 70; ou 68; ou 75, sabe-se lá. Este cronista, se circunstante fosse  nessa imaginária cena passada na Cinelândia, diria: aquela senhora com dois celulares e uma lupa nas mãos, e agora ao meu lado, teria, sei lá, 75 anos, talvez 70.
Finalmente o trem em direção à Praça General Osório, em Ipanema, chega. Eu e aquela senhora que imagino ter 75 anos, talvez 70, entramos no mesmo vagão. Ficamos a menos de um metro um do outro. Não há lugar para viajarmos sentados. Ficamos de pé. Garota simpática e gentil apieda-se da velhinha que não larga os celulares e a lupa, e lhe oferece o lugar. Ou melhor, tenta. Apesar de a garota simpática e gentil cutucar-lhe o ombro com alguma insistência, ela se finge de surda e de morta, e nem sequer olha para trás.

Percebo 4: ela não quer ser tratada como idosa, e aceitar a oferta daquela jovem simpática e gentil talvez lhe custasse o preço de descobrir que não é mais aquela moçoila atirada que, nos anos 1970/1980, pioneira, assumia-se homossexual publicamente. E mais: corajosamente, transformava o tórrido romance que pugnava com a cantora Zizi Possi em conversas de comadres de todas as idades, de norte a sul, de leste a oeste, do país.
A jovem simpática e gentil dá de ombros, desiste de ser simpática e gentil, e volta a sentar e, a provavelmente ouvir, no aparelhinho-de-som-enfiado-no-ouvido, algum Luan Santana da vida. A velhinha continua a falar ao celular, agora em voz cada vez mais tonitruante. Os passageiros a olham com estranheza. Alguns a encaram fixamente, como se já  tivessem visto aquela senhora antes, em algum lugar da galáxia. Ela percebe que é encarada fixamente e fala ao celular de maneira cada vez mais, digamos, cenográfica – ou finge que fala; para que ninguém a aborde, ou a incomode.
Na estação Siqueira Campos , o vagão se esvazia parcialmente e a senhorinha de resplandecentes olhos verdes (ou seriam azuis?) consegue sentar-se. Mas não para de falar ao celular. Tento escutar-lhe a conversa. Apesar de falar alto, fala rapidamente, aos tropeções, e pouca coisa consigo decifrar. Ouço coisas assim: a) - Não quero mais aquele técnico de som de merda. Ele fodeu com um show meu...  b) - Você está me ouvindo? Você está me ouvindo, porra?´ c) - Afeganistão...  (????) d) - Afeganistão... (????)
Passo o resto da viagem tentando decifrar o que aquela velhinha estaria querendo dizer ao proferir a palavra Afeganistão (ou teria sido Paquistão?) no meio de uma trivial conversa telefônica, e não decifro as outras palavras que diz – ou finge dizer, para não ser incomodada pelos circunstantes. Talvez dissesse palavras sem sentido aparente exatamente para intrigar as pessoas que a rodeavam. Talvez.
Finalmente chegamos à Estação General Osório. Desço antes da velhinha precoce, e, acompanhado de pequena multidão que os vagões acabam de despejar, subo a escada rolante. Olho para trás, tento achar aquela velhinha precoce que atende pelo nome de Angela RoRô. Mas não há nenhuma velhinha precoce que atende pelo nome de Angela Rorô naquelas dezenas de rostos anônimos que contemplo, e que me contemplam.
Angela RoRô sumiu. Evaporou. (Dou de ombros, e sigo o meu caminho).
PS. Dia seguinte assisto ao ótimo Um Conto Chinês. Produção argentina (quando o cinema brasileiro conseguirá produzir filmes assim, simples mas viscerais?) dirigida por Sebastian Borensztein, conta história na qual o imponderável dá o tom. Vaca caída do céu sobre pequeno barco, no qual chinês pede chinesa em casamento, num efeito dominó, muda o curso da história em outro ponto do planeta.
O filme sugere, de maneira delicada e deliciosa: nada acontece por acaso. Na vida (ao contrário do que diz o Eclesiastes) tudo seria zelosamente orquestrado por alguma mão invisível que alguns preferem chamar Deus.
Embora não acredite que alguma lógica norteie essa equação errática que é a vida, adorei o filme – e saio do cinema feliz, querendo crer: as coisas não acontecem conosco de maneira aleatória e disparatada como eu e o Eclesiastes cremos. Não resisto à tentação, e, inspirado pelo leitmotiv do filme de Borensztein, me pergunto: ter encontrado – (por acaso?) – aquela velhinha precoce que atende pelo nome de Angela RoRô, num final da tarde de segunda-feira de outubro, poderá repercutir positivamente, ou negativamente, na minha vida?
Ao escrever este texto, manhã de segunda-feira , 31 de outubro, resolvo testar o acaso: ligo o canal de som MPB da tevê cabo, e desejo, ardentemente, escutar a inesquecível Amor Meu Grande Amor, cantada espetacularmente, com, digamos, o útero, por Angela RoRô. Negativo. Quem ouço é o solar Jorge BenJor cantando O Dia em que o Sol Declarou o Seu Amor Pela Terra.
Nesta des-coincidência, surge, no entanto, outra coincidência: há amor no título dessas duas canções – e desejo, ardentemente, que haja muuuuito amor na minha vida também (e na do caro leitor também) – estamos precisando - amém.

5 comentários:

  1. toda razão, meu amigo. nada acontece por acaso.. e viva a velhinha de cabelos brancos!!!!! abração

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  2. sensacional Rogerio! parabéns! abraço!

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  3. Você está muito bem como cronista, como é também muito bom como amigo presepeiro nas horas incertas e precisas. Merece um título de sócio correspondente da Academia Itapetinguense de Letras.

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  4. acabei de ler sua crônica e gostei muito. e o filme está certo. Não existe acaso. :))

    abraço e muito amor pra você :)

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