quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A VIDA DURANTE A GUERRA (*)

Ao sair do prédio onde moro no final da manhã, o Senhor L., o porteiro de plantão, sempre fascinado por escabrosidades, disparou, salivando de satisfação: - Seu Rogério, os bandidos arrombaram um caveirão lá na Vila Cruzeiro.

Acordara horas antes, vendo um carro pegando fogo ao vivo e em cores na tela da tevê, e contemplando, com algum espanto, admito, repórteres da TV Globo ostentando quase glamurosos coletes à prova de bala com logotipo da emissora (eles pensam em tudo, não?). Mas não me intimidara. A lombar doía, o calcanhar esquerdo, também, e a nova sessão de fisioterapia, que venho fazendo há alguns dias por conta de avarias diversas no corrpo físico, parecia indispensável. E fui.

Sem nenhuma bala perdida a desviar-me do meu alvo, encontrei-me, quinze minutos depois, na sala de espera de uma centro de ortopedia, na Rua Sorocaba, em Botafogo. Em vez de chafurdar-me nas imagens transmitidas ao vivo pela tevê de 32 polegadas que pairava sobre todos os circunstantes, que, contritos, não desgrudavam os olhos da tela, continuei a leitura de um ótimo romance (A Humilhação) de Philip Roth.

Abstraí-me na leitura deliciosa (eis aqui um livro imperdível, que os caros leitores não podem deixar de ler), a ponto de esquecer que morava na cidade do Rio de Janeiro neste 25 de novembro de 2010. Mas, no exato momento em que parei para respirar (afinal a narrativa rothiana é sempre de tirar o fôlego) e olhei ao redor, uma senhora simpática e elegante, que também buscava lenitivo para suas dores físicas, captou-me com uma declaração dita num pathos trágico que me arrebatou (a ponto de abandonar a leitura do romance de Philip Roth). Ela bradou, enfática: - Isso tudo é teatro! A polícia brinca de combater os bandidos; os bandidos brincam de combater a polícia, e tudo continua igual. Se a polícia quisesse mesmo resolver isso, invadia a favela onde estão escondidos e matava todo mundo! É tudo teatro!

O placar piscou o número 73. Convocavam-me para a minha fisioterapia. E, assim, salvavam-me de ter que inventar algum argumento (na verdade, eu não tinha nenhum argumento a respeito dessa declaração que acabara de ouvir) diante da peremptória afirmação daquela elegante e simpática senhora.

Uma hora depois, com a lombar e o calcanhar esquerdo mais aliviados, peguei a estrada. Caminhei até a rua Voluntários da Pátria. Fui almoçar na Cobal (para quem não é do Rio: trata-se de um complexo gastronômico/etílico localizado na fronteira do Botafogo com Humaitá). No caminho, cruzei com mocetona de grande porte que dizia para a amiga do lado: - É o fim dos tempos! A ver.

Nas portas das lojas de eletrodomésticos semivazias e nos bares com suas tevês eternamente ligadas, pequenas multidões assistiam à cobertura das ocorrências. Tal e qual, sem tirar nem por, assitiram às partidas de futebol da seleção brasileira na última Copa do Mundo. Medo e circo, pois não?

Tentei escapar desse exercícios públicos de autoflagelação: fui mergulhar na comida sempre honesta servida no restaurante self service no qual almoço com certa frequência. Na pequela fila para servir-me, entre uma olhada na salada de rúcula e outra no sempre adorável pastel de catupiry, flagrei uma televisão estupidamente ligada que transmitia ao vivo o espetáculo da vida (ir)real que os canais de tevê exibiam com sofreguidão, sob todos os ângulos possíveis e imagináveis.

Pensei em escapar para outro restaurante das proximidades. O que seria inútil. Todos os restaurantes do local serviam o mesmo, e nauseante, prato: imagens ao vivo de ônibus que eram incendiados e de mocinhos enfrentando bandidos (mas não vemos esse mesmo filme há milênios?).

Resignei-me. Comi às pressas enquanto tentava voltar a ler alguns trechos de A Humilhação (sem êxito; não consegui me concentrar na espetacular narrativa de Philip Roth). Tomei um café pingado no lugar de sempre. Voltei às ruas, nas quais pequenas multidões continuavam a se autoflagelar: consumiam avidamente as imagens de terror transmitidas pelas tevês das lojas de eletrodomésticos semivazias e dos bares com suas tevês eternamente ligadas.

Meia hora depois, cheguei em casa são e salvo. Encontrei novamente o Senhor L., o porteiro de plantão. Agora, ele me dizia, algo enigmático e, talvez, algo ameaçador: - A polícia está procurando sarna pra se coçar!

Entrei em casa. Escovei os dentes. Liguei imediatamente a tevê. Escrevia esse texto, mas não conseguia desgrudar os olhos das cenas da guerra nos morros e favelas do Rio de Janeiro: também eu mergulhava nesse coletivo, e catártico, exercício de autoflagelação.

(*) A vida Durante a Guerra é um filme notável, dirigido por Todd Solondz, atualmente em cartaz no Rio de Janeiro.  

15 comentários:

  1. Não que eu seja dessas que acredita que jornalista ou repórter ou cronista deve ser e estar sempre ávido por catástrofe para cobrir e noticiar, mas achei muito bom ler essa crônica da (outra) cidade... Parabéns, Rogério!!! Você sabe que sou a fã # 1 das crônicas da cidade!!!
    ;)
    Sara

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  2. Continue a nos deleitar com as suas deliciosas crônicas. Faltava você na blogosfera... beijos, querido.

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  3. Ai rogerio. Gostei de ver. Beo texto, falou exatamente o que passa pela minha cabeça. To ai em janeiro. Continue nos deliciando com seus textos aqui gora e sempre. beijão.

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  4. Adorei sua crônica, Rogério.
    Abraço

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  5. Tio, estava com saudades dos seus textos... Voltarei a ser assídua leitora... Bj.

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  6. Sua narrativa me ajuda a entender, um pouco mais 'por dentro', essa história de guerra. Daqui de Salvador, a avalanche de imagens acaba de fato alienando a gente. (Ir)realidade mesmo: várias vezes, por segundos, parecia que estava (re)vendo Tropa de Elite. Falar nisso, cadê o coronel Nascimento???

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  7. Amigo, que bom voltar a ler ROGÉRIO. Além de também ter ficado tenso em ver, via net (Globo New, a fuga do pessoal para uma outra comunidade; só imaginando a invasão da comunidade por tantas pessoas com armas, assustadas, correndo, loucura. Mas o melhor foi as excelentes dicas: do Cobal e do livro do Philip Roth. Um grande abraço

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  8. Querido Rogério,
    Excelente texto. Um assunto aparentemente clichê e sensacionalista, tratado de forma suave, nos levando a pensar não apenas na situação atual da violência, mas também a pensarmos no dia-dia de tevês e notícias para tudo quanto é lado. Ficamos grudados na tela e inertes.
    Estava com saudades dos textos bem escritos, vejo que você continua fiel ao Philip Roth. Gostei de você citar o livro, dá vontade de ler! E gostei muito de você nos informar sobre a vida durante a guerra.Parabéns Ass: Márcia Lopes

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  9. Rogério querido!
    Coisa boa poder te ler, agora, online.
    Texto excelente (como de costume). Muito bom ter a visão de um cidadão comum (apesar de jornalista, hehe) sobre o tema.
    Beijos

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  10. Muito bem, Rogério.
    Por mais que a gente critique, acabamos caindo nesse ritual de autoflagelação... é a vida (ir)real!

    Parabéns pelo blog!

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  11. Oi, Rogê! Que legal ter você na blogosfera! Adorei seu texto, é muito bom saber o que se passa no dia a dia da cidade e o que pensam seus moradores. A televisão mostra muita catástrofe, tanto a que já existe como a que eles querem que existam - dá mais ibope, né?
    Ei, gostei mesmo! Não fuja mais!
    Xeroooos
    Sheila Raposo (Elaila é meu nome na conta Google, hehehehe...)

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  12. Bom dia caro Rogério!!! Entre espetáculo (ir)real policial concorrente do filme Tropa de Elite aí e as novas velhas daqui, caos na saúde e saga atrapalhada na investigação do assassinato do casal Vilela, a melhor notícia foi seu contato após algum tempo, mas sem dúvida pontual. Na terça 23 começou Festival de Cinema Brasileiro em Brasília. Melhor prestigiarmos os cinemas e festivais, com começo, meio e fim mas com pitada lúdica a ter que lidar com realidade infinita e com comprometimentos a nossa saúde mental. Que venha um Tropa de Elite 3!!! E pra você, saúde e SUCESSO, sempre... Abção, Eduardo.

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  13. Rogerinho querido, do divino coração de Maria, rsrsrs, adorei ler sua crônica, saber de você e de quebra, ter a dica do livro de Philip Roth - que comprarei! Beijos enviados de uma Salvador, quente, quente, quente!

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  14. Caro Rogério,
    Parabéns!
    Vou tentar preencher essa lacuna e ler Roth de quem já ouvi muito falar.
    Quanto à guerra no Rio, no ano passado El País publicou um artigo de Vargas Llosa sobre a ineficácia do envolvimento do exercito mexicano na luta contra o narcotráfico. Ele terminava aconselhando outros paises da América Latina a não fazer o mesmo. Tenho a impressão que assistiremos a conclusão de um pacto de honra entre grandes traficantes e a SP. Aqueles irão assegurar uma parte de SP em determinadas áreas e a SP... bem, deixe prá lá! Já tem até traficante evangélico convicto e proselita!
    Um amigo meu, coroa e ex-maconheiro anda preconizando a abstinência por parte dos usuário como solução para esse problema, aí, pelas noites e soirées da cidade. Todos concordam, mas nenhum confessa os seus vícios!
    Um grande abraço,
    Sergio Guedes

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  15. Me fez lembrar da nossa colega da Oficina da Crônica. Ângela, se não me engano; a que não lia jornal.

    Isabel D.

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