quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A VIDA É UMA ESTRANHA PASSAGEIRA (OU O SACROSSANTO IMPÉRIO DOS SENTIDOS)


A morte é uma concessão. Muita gente pede para morrer, e não morre.
A vida, idem. Ninguém pede para nascer, e nasce.
A implacável pergunta a responder é, consequentemente: e quem as concede, cara-pálida? Um Deus-que-tudo-pode? Ou o mais absoluto acaso?
Voto com razoável convicção na primeira opção.
Mas, claro, noblesse oblige, há e sempre haverá muitas controvérsias quanto ao tema – e esta talvez seja questão à qual nunca haverá resposta totalmente satisfatória.
Voto com razoável convicção na primeira opção porque preciso, impreterivelmente, a esta altura da minha vida, acreditar em alguma coisa, em adotar algum dogma de fé, antes que a loucura faça de meu cérebro esteio e lar definitivos.  Afinal, a fé e as religiões em geral são o império dos sentidos – ou seja, buscam dar algum sentido, qualquer sentido, ao que talvez não tenha sentido algum.
À Gilberto Gil, cantarolamos, e cantarolaremos, e precisamos cantarolar até o fim dos tempos: ´Andá com fé eu vou, que a fé não costuma faiá´.
(Salve Gil!)
Se tivéssemos algum juízo, nós, seres alegadamente humanos, deveríamos eventualmente disputar, da maneira mais civilizada possível (quem sabe por meio de sorteios?), o direito de que morrêssemos quando bem quiséssemos e quando bem entendêssemos. Não é, nem nunca será, bem assim.
Aos 58 anos, cheguei a algumas conclusões pessoais e intransferíveis a respeito da vida e da morte. Ajudaram-me nessas descobertas as caminhadas diárias matinais pela Enseada do Botafogo e pelo Aterro do Flamengo, nas quais tenho a companhia privilegiada do Cristo Redentor. Ele me acompanha diuturnamente – de longe, mas sempre majestático. Desde a saída de minha casa no bairro de Botafogo até às margens do Aeroporto Santos Dumont – e, na volta, pelo mesmo caminho, está Ele lá de novo. Sempre alerta. Em (e)terna vigilância.
É o meu único companheiro de caminhada. Quase um namorado, um ótimo namorado. É bom ouvinte, e nunca fala e nem dá palpites infelizes – o que talvez seja a mais santa de todas as virtudes. E eu falo muito, e eu converso muito com Ele, e Ele sempre impávido, colossal, continua mudo feito a esfinge de concreto armado que, de fato, é – (o resto é o império dos sentidos do qual precisamos  ad eternum).   
De tanto falar e de tanto conversar com esse companheiro de caminhada, com esse quase namorado, que tudo ouve e que nada fala, deduzi, em sofisma deslavado, mas legítimo: Ele concorda comigo em gênero, número e grau.
Caso não concordasse – e mesmo não falando, ou sem querer falar –, talvez já tivesse me fulminado por algum raio; me devorado por alguma ressaca de mar de quatro metros de altura nas rochas que separam o Flamengo de Botafogo; me atropelado por alguma bicicleta veloz dirigida por aprendizes de psicopata que infestam as ciclovias cariocas; ou me esfaqueado por meio de algum dos muitos ladrões de correntinhas de ouro que circulam pelas cercanias com olhos de águia e simulacros de punhais enfiados nas cuecas-de-grife-falsificadas que aparecem sob as calças jeans surradas.
Vivo e, razoavelmente, forte até o momento em que escrevo este texto, adotei há alguns meses certo comportamento-padrão que traz alguns bem-vindos minutos de transcendência  à minha faina diuturna de correr atrás do prejuízo, de andar para não enlouquecer, e de procurar viver da maneira mais digna possível – faina, a bem da verdade, minha e de mais da metade da população do planeta Terra e, quiçá, do resto da galáxia.
Esse comportamento-padrão começa exatamente quando circundo, de volta para casa, a pequena rótula localizada a duzentos metros da pista do Santos Dumont onde os aviões decolam, ao dar de cara com o Cristo Redentor a boreste.

Travo então o seguinte monólogo-à-guisa-de-diálogo entre mim e Ele, ou, se preferirem, entre mim e mim mesmo:
1. Agradeço-Lhe o fato de caminhar mais um dia por um dos lugares mais bonitos da Terra.
2. Rogo-Lhe pela minha família. Os amados e queridos irmãos. Os sobrinhos que vi crescer. Os queridos e muito amados sobrinhos-netos que ora vejo vicejar - por ordem de entrada em cena: Pietro, Dimitri, Beatriz, Augusto, Marvin, Davi, Luana e Marina. Cunhados. Maridos de  sobrinhas, todos homens de boa cepa. Os mortos inesquecíveis. O  meu pai,  Crispim. A minha mãe, Águida. O meu melhor amigo, Manoel José Ferreira de Carvalho. O gato Ravic, meu melhor amigo não humano - e esse não humano soa propositalmente como imorredouro elogio - durante seis anos.
3. Comunico-Lhe:  
A. Amo intensamente e desvairadamente a vida – talvez seja a vida que eventualmente não me ame, problema meu, grandes amores nem sempre são correspondidos. Mas, se tiver de morrer amanhã, morrerei sem choro, nem vela. Não tenho demandas sexuais ou afetivas reprimidas. Vivo, e vivi, intensamente.
B. Amei as pessoas a quem devia amar. Ok, às vezes amei as pessoas erradas. Mas tudo bem, o que passou, passou.
C. Publiquei dezessete livros (entre romances, crônicas, biografias, ensaios, publicações de arte,  coletânes de contos) e tenho outros cinco às vésperas de serem lançados (um romance, um dicionário temático, e três livros de arte).

D. Concluí outros três livros que foram abortados por forças ocultas e estranhas à minha vontade: um romance (A Rainha da Cocada Preta) que um editor, em 2008, me pagou 15 mil reais de adiantamento e nunca o publicou); a biografia de uma das mais famosas atrizes da tevê brasileira (que a biografada, arrependida do mergulho profundo que fizera na vida dela nas muitas entrevistas, quase psicanalíticas, que me concedeu, pediu que a editora cancelasse a obra); a saga familiar de certo senhor que foi, em certa época, um dos homens mais ricos do Brasil (destroçada pela herdeira do clã, ao perceber que o livro que eu escrevera em parceria com ela estava mais para Nelson Rodrigues do que para Nelson Rockfeller).
E. Escrevi milhares de reportagens, artigos, ensaios e crônicas em jornais e revistas de Salvador, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Escrevo este blog desde 25 de novembro de 2010.
F. Viajei por mais de quinze países, e me confundiram com um traficante colombiano no aeroporto de Fiumicino, em Roma, em 1988, parte por culpa de minha, à época (O tempora! O mores!), cabeleira à Glauber Rocha.
G. Já criei um gato, o inesquecível e sublime vira-lata Ravic,  que me salvou todas as minha sete vidas, mas não conseguiu salvar a dele, a única, e morreu de câncer. Tive o privilégio de conviver por alguns anos com um cachorro, o sempre fiel e bacana e camarada golden retriever Martim, o genro que toda sobra gostaria de ter. Por essas e outras, podem me chamar de louco, mas dou bom-dia a todos os gatos e cachorros que encontro pelo Aterro do Flamengo. Às vezes sinto quase incontrolável compulsão de cumprimentar, ou até mesmo abraçar, jovens e senhores bonitos que me cruzam o caminho, alguns ostentando sorrisos que me molham dos pés à cabeça. Mas sigo em frente sem sequer olhar para trás. Por experiência própria, sei:  jovens e senhores bonitos são apenas jovens e senhores bonitos. Nada mais quê. E, last but not least, sou tímido incurável. 
H. Estou pobre-pobre-demarré-deci. Não tenho onde cair morto. Moro de aluguel no Baixo Botafogo, numa Kombi-usada-mas-muito-bem-localizada de 25 metros quadrados que custa os olhos da (minha) cara. Meno male: não devo dinheiro a ninguém; todas as minhas dívidas financeiras foram pagas nos últimos meses; mandei, e mando diariamente, à merda todos os cartões de crédito que me querem de volta e me assediam por terra, mar e ar; e, fundamental, minha próstata vai muito bem, obrigado. Talvez devesse me orgulhar de agora pertencer à classe C (não à classe D-E que virou C, mas à A-B que se tornou C), hoje xodó de todas as mídias e de todos os políticos picaretas e não picaretas - se é que existiriam políticos não picaretas. Eu, particularmente, prefiro acreditar em papai noel e na fada do dente. Mas não me orgulho: como os novos-ricos de antanho, a nova classe C ama ostentar. Exemplo: neste edifício bagulhado onde moro, mais classe C impossível, o condomínio resolveu instalar recentemente circuito interno de tevê de última geração. 


I. Já perdi todos os amigos que tinha de perder, assim espero. Atualmente presumo: tenho nove amigos e meio, e, mesmo assim, ainda tenho algumas dúvidas a respeito desse meio amigo. Aprendi 1: melhor ter um cachorro amigo do que um amigo cachorro. Aprendi 2: melhor ter um gato amigo do que um amigo gato, por mais gato que esse amigo aparente ser.

J. Li os livros mais importantes da literatura brasileira e universal, e cheguei à conclusão de que o grande escritor é o mais próximo que o homem pode chegar de Deus. Estão nesse bloco Dostoiévski (Deustoiévski, como prefiro chamá-Lo), Tolstoi, Balzac, Faulkner, Stendhal, Cèline, Cervantes, Shakespeare, Graciliano Ramos e Machado de Assis, entre os mais antigos, e Roberto Bolaño, Amós Oz, Philip Roth, Orhan Pamuk e J.M.Coetzee, entre os contemporâneos.

K. Li, de cabo a rabo, pelo menos duas vezes, e me inspirou intensamente, e me  provocou epifanias de variadas intensidades, a Bíblia Sagrada, o pai e a mãe de todos os romances da grande literatura universal, e leitura obrigatória para quem quer mergulhar no poço profundo da alma humana. Foi livro de cabeceira de pelo menos quatro  dos (meus) escritores canônicos, citados no item anterior: Shakespeare, Faulkner, Dostoiévski e Machado. Ganhei de presente de meu ex-namorado e, apesar dos pesares, ainda queridíssimo e amantíssimo amigo. Ao me presentá-lo em 6 de janeiro de 2003, escreveu a seguinte dedicatória:  `Que este livro seja alimento e bebida para você. Que seja também lâmpada para os seus pés e luz para o seu caminho, como tem sido para mim nos últimos anos.´ E foi.
L. Assisti aos mais espetaculares e fundamentais filmes produzidos no século XX. De Malle a Antonioni. De Buñuel a Antonioni. De Billy Wilder a Fellini. De Truffaut a Chaplin. De Hitchcock a Visconti. De A (Noviça Rebelde) a Z (de Costa Gavras). Foi a arte que mais pariu gênios por metro quadrado no Planeta Terra em pouco mais de cem anos de existência. Sou siderado pelo escurinho do cinema. Se eu fosse Deus (1), moraria lá. De  qualquer forma, aqui fica a sugestão.

L. Caminhei nos últimos 23 anos diariamente - estivesse onde estivesse, chovesse ou fizesse sol, nevasse ou ventasse fortemente -  centenas de milhares de quilômetros. O que talvez equivalesse a + ou - três voltas em torno do planeta Terra.
M. Enfim, confesso que vivi. Ou, como generosamente me disse certa vez um grande amigo meu: - Você deixou o seu legado.

N. Whatever!
4. Peço-Lhe, rogo-Lhe, imploro-Lhe para, caso viva ainda mais dez, vinte ou trinta anos, consiga trabalhar até morrer para pagar todas as minhas contas e dívidas por vir. Que jamais permita que me torne morador  de rua. Que nunca tente me suicidar (mas, caso tente, a carne é fraca, não sobreviva, nada mais patético do que o suicida que não consegue morrer). Que meus romances publicados sejam algum dia reconhecidos e lidos por gentes de todo o mundo, inda que post-morten. Enfim, que a minha vida siga o curso normal, e que todas as borrascas e tempestades (muitas) já tenham passado. Amém.
5. Rezo um Pai-Nosso e uma Ave-Maria, as únicas orações católicas que decorei. Às vezes, as repito como mantras por quilômetros Aterro do Flamengo afora e, absorto, atropelo poodles gays de pelos ruivos ou roxos - nada contra poodles gays de pelos ruivos e roxos, simplesmente acontece, simplesmente coincide.
6. Peço proteção aos santos e santas que me despertam  carinho desde a infância – quando sempre os admirava, em gravuras coloridas e molduras de marfim, nas paredes das casas de minha infância: Bárbara. Lázaro. Antonio. João. Sebastião. Jorge. Roque. Cosme. Damião. Expedito. Luzia.  André. Águida. Miguel. José. Francisco. Edwiges. Todos os santos da baía.
7. Invoco as derivações de Nossas Senhoras que marcam pessoas da minha família: Nossa Senhora das Graças, de quem minha mãe era devota; Nossa Senhora da Rosa Mística, a qual meu irmão José Crispim cultua com muita fé e para quem construiu capela na Fazenda Serra Verde, que lhe pertence, nas cercanias de Jequié-Bahia; Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a quem a igreja anexa ao colégio onde estudei o curso primário lhe era dedicada, e que, recentemente, descobri ter outra capela que lhe homenageia na Praia de Botafogo, a um quilômetro de minha casa, e onde vez em quando entro, sento, e peço força para continuar a navegar.
8. Entro e entrei, rezo e rezei,  em igrejas católicas do mundo inteiro: de Praga, na República Tcheca, a Nova Petrópolis, no Rio Grande do Sul. Sem esquecer, claro, a Igreja de São Francisco de Paula, no centro da cidade do Rio de Janeiro, uma das mais belas do mundo. Eu, se fosse Deus (2), moraria lá. De qualquer forma, fica a sugestão.
São bálsamos que eventualmente me aliviam, e me acalmam, e me apascentam. 
Aliviam, mas não bastam – afinal a vida é uma estranha passageira – e padres, mesmo os que se alegam virtuosos, mesmo os que se dizem não pedófilos, me enojam e me nauseiam – e a santa madre igreja católica é a mais ordinária e pusilânime das máfias religiosas do planeta – e o papa Bento XVI é um verme abjeto que não consegue limpar nem a própria bunda. 
O meu vigário preferido é o psiquiatra. Quanto menos impessoal e mais cientificista melhor. Com ele converso durante quarenta a cinquenta minutos de dois em dois meses, em troca de duzentos dinheiros, e ele me receita dois santos novos – a Santa Venlaflaxina e o Santo Alprazolam – e um santo velho, mas que nunca me faiou, e a quem cultuo há mais de década: o São Rivotril.
Nas horas mais difíceis, sem o mar da Baía da Guanabara para me massagear a alma, tipo acordar no meio da madrugada, apavorado, depois de pesadelo serial do qual você acorda gritando quero morrer, quero morrer, a dica é: respirar fundo, bem fundo, sentar na cama alguns segundos, colocar literalmente a cabeça no lugar, ir até à cozinha, colocar dois saquinhos de chá de camomila e o suco de meio limão em água fervente, beber com Rivotril 0,5 mg, e rezar duas ave-marias para que o pesadelo serial não tenha parte 2, ou 3, ou 4, como, geralmente, tem.
No mais, como diria o inesquecível Silvio Lamenha – lendário colunista social baiano de priscas eras,  homossexual de dimensões boterianas e já assumidíssima boneca em plenos anos 1960: ´A poesia é o axial´.
Portanto, relembremos o poeta maranhense Gonçalves Dias, autor de versos assim, esplendorosos: `A vida é luta renhida. Viver é lutar!´
À luta, pois, terráqueos! (Não há outra coisa a fazer).

Em tempo: William Skaespeare escreveu em Macbeth a seguinte pérola (uma das minhas frases de cabeceira, a qual gostaria que escrevessem na lápide do meu túmulo, mas, gosto pessoal, não terei lápide nem túmulo, quero ser cremado e desejo que meu pó seja soprado pelo vento no ventre da Baía de Guanabara: ``A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, não significando nada.´´
Estava absolutamente certo, e tentei, de alguma forma macaquear essa preciosa peça filosófico-literária, neste longo post que ora publico. Direto ao ponto: a vida dá muitas e muitas voltas. Tudo é passeiro - menos o motorista e o cobrador. Se, algum dia, o meu legado literário valer alguns tostões, e eu já tiver morrido (amanhã ou daqui a trinta anos) quero e determino: todos esses tostões serão destinados aos meus amadíssimos sobrinhos-netos, os já citados e os que eventuamente estiverem por vir. Tenho dito. Atesto e dou fé. Comarca do Rio de Janeiro, 25 de agosto de 2012, Rogério Reis de Souza Menezes. Passaporte CW639553. Sangue tipo A+.
Ah, sim, antes que me esqueça: deixar de temer a morte é, também, deixar de temer a vida, 

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