domingo, 22 de janeiro de 2012

MAKING OF DE UM ROMANCE (OU OLHAI OS LÍRIOS DO VALE)

Jorge Amado já estava num estado de saúde no qual a amantíssima Zélia Gattai precisava eventualmente traduzir o que o marido apenas murmurava nas últimas entrevistas que fiz com o escritor baiano para o Correio Braziliense, no final dos anos 1990. Numa das saídas da mulher para atender uma ligação telefônica, ele me disse sem sequer gaguejar: - Escrever é uma maldição. Não escrevemos por que queremos, mas porque alguém quer que a gente escreva, e nunca sabemos direito o que escrever quando começamos um livro, as palavras e os personagens surgem no nosso cérebro e vamos colocando aquilo no papel e, aos poucos, são essas palavras e esses personagens que tomam conta da gente e fazem da gente o que bem querem e o que bem entendem´.
Na fase final da escrita de Os Lírios do Vale, o meu mais recente romance, agora no começo de janeiro de 2012, eu voltei à Cidade de Goiás e tentei visitar a casa de Cora Coralina e, principalmente, os quintais da Casa de Coralina, como sempre fazia. Queria também rever, entre muitas fotos, uma cálida e cheia de frescor, e que me fez sei lá por que diabos chorar quando a vi pela primeira vez em 2000: registro fotográfico gasto pela ação do tempo no qual Cora Coralina, Zélia Gattai e Jorge Amado se abraçavam sorridentes e felizes. Numa palavra: radiância.
Bati com a cara na porta. Na tarde em que quis visitar a Casa de Cora Coralina havia excursão educativa de alunos circulando pelos quartos e corredores, e uma garota que aparentava cerca de dezoito anos foi peremptória: - Hoje o senhor não pode entrar. Há cento e poucos alunos visitando a casa. Volte outro dia.
Contra-argumentei: - Venho do Rio de Janeiro e não me importo de apenas circular pelos quintais da casa, eu adoro os quintais da casa de Cora. A garota que aparentava dezoito anos retrucou com certo prazer, que talvez apenas o meu mau-humor de velho tenha detectado: - Os quintais têm visita proibida por tempo indeterminado. Os agrônomos estão cuidando para que certas pragas não destruam algumas árvores.
Insisti: - Então eu me contento apenas em rever uma fotografia na qual Jorge Amado, Zélia Gattai e Cora Coralina estão juntos.
A garota, insensível aos meus apelos, retrucou: - Volte amanhã, senhor!
Tentei a última cartada: - Amanhã estarei de volta ao Rio de Janeiro.
A garota: - Lamento, senhor.
Por um segundo, odiei aquela garota em particular, e os agrônomos em geral. Mas logo passou. Decidi dar umas dez ou vinte voltas em torno do Rio Vemelho, que banha a Cidade de Goiás, e em cujas margens, inspirada nos seus enlevos e volteios fluviais, Cora Coralina esculpiu os seus mais excelsos poemas.
Depois voltei para o hotel exatamente em frente à casa de Cora Coralina, o Hotel Casa da Ponte, e na varanda do hotel de onde eu podia ter visão perfeita  dos quintais da casa de Cora e de uma nesga transversa do quarto onde a poeta dormira, voltei a exercer a minha amadiana maldição, e tentar finalizar o romance Os Lírios do Vale, um livro que parecia lutar para que nunca fosse finalizado.
(NECESSÁRIO E
 TALVEZ LONGO
 PARÊNTESES)
A Cidade de Goiás teria esse poder mágico, pensei. Foi lá, em 2000, que eu, um já quase jornalista-ex-escritor viveu certos dias de transe, e, embalado pela releitura noturna das obras completas de Machado de Assis (os dias de transe me provocaram cinco noites absolutamente insones) e por visitas diárias ao quarto e aos quintais de Cora Coralina, decidi escrever, e escrever imediatamente, o meu segundo romance (o primeiro havia sido publicado no longínquo 1984, pela falecida Codecri e se chamava Meu Nome é Gal. nada a ver com a Gracinha baiana).
Nessa época, caminhando feito zumbi pelas ladeiras e vielas da cidade arquitetei situações, teci enredos, nomeei personagens, intitulei o livro (Três Elefantes na Ópera), e voltei determinado a Brasília, onde então morava, decidido a pedir um mês de licença não remunerada do trabalho de editor do Correio Braziliense, simplesmente para escrever esse romance que apenas existia na minha cabeça, mas que já existia inteiramente, com diálogos, personagens, princípio, meio, fim, e o diabo a quatro.
Ainda mais arrebatado pelo transe que a Cidade de Goiás me fez mergulhar, agi como agiria personagem de romance. Subi os 103 degraus da Igreja de Santa Bárbara – uma construção simplíssima construída pelos próprios escravos no final do século 17 – e lá em cima escrevi nove ou dez páginas do livro à mão. Desci a ladeira a galope, voltei a Brasília a galope, e imediatamente procurei os meus chefes no Correio Braziliense.
De início procurei o Editor de Arte e Editor Executivo Chiquinho Amaral, com quem tinha maiores afinidades, e a reação dele não poderia ter sido melhor, mesmo eu lhe dizendo que precisaria ficar pelo menos um mês afastado das minhas atividades diárias do jornal. Estimulou-me a  desenvolver o projeto do romance e sugeriu que falasse imediatamente com o diretor de redação Ricardo Noblat. Tremi.
Ricardo Noblat, um dos mais renomados jornalistas brasileiros, tinha fama de durão, e pensei duas vezes antes de procurá-lo. Mas a vontade de escrever o romance era tão avassaladora que adentrei a sala do diretor de redação, comecei tímido, investindo num papo de cerca-lourenço que não levava a lugar nenhum. Mas, de repente, aos atropelos, escapou-me a seguinte frase: - É o seguinte. Adoro jornalismo. Mas estou com um romance em vias de parir e preciso de que você me conceda um mês de licença não remunerada para eu escrever esse livro.
Ricardo Noblat pensou, repensou, e me saiu com a seguinte e ótima notícia: - Tudo bem. Quando você precisa ficar fora para escrever esse romance?
Eu: - Mês que vem.
Noblat: - Tudo bem. Mas vou lhe pagar apenas metade do seu salário neste mês em que você escreverá o livro.
Escrevi o livro em trinta e um dias, entre às 9 da manhã e às onze da noite, de domingo a domingo, e, no final do mês, tinha pronto o escopo do livro. Já de volta ao trabalho finalizei o romance em pouco mais de dez dias.
Milagre dos milagres, e Ricardo Noblat não deve ter se dado conta disso até hoje: ele esqueceu de avisar ao setor de Recursos Humanos para efetivar o desconto, e eu recebi o salário integral. Bendito esquecimento.
ROMANCE É COISA DE DOIDO
Mesmo instalando o notebook em mesa da varanda do Hotel Casa da Ponte em diagonal direta com o quarto de Cora Coralina, não conseguia finalizar o romance Os Lírios do Vale. Parecia que o romance não queria acabar. Certo personagem discutia comigo em altos brados: queria dizer alguma coisa na nona página e não na centésima-quinquagésima-sexta como havia colocado; um urso de pelúcia verde e rosa chamado Rêsh, que não sei de onde diabos saiu, me encheu tanto o saco que tive de transformá-lo numa peça importante do primeiro capítulo, e, mais assombroso ainda, teimou em querer ocupar o último parágrafo do livro.
Enfim: o Jorge Amado daquela esmaecida fotografia com Zélia e Cora, escondida em algum canto escuro da casa de Cora Coralina, na Cidade de Goiás, parecia tirar sarro de minha cara: - Tá vendo? Tá pensando que escrever romance é atividade certinha na qual você sabe tudo o que vai acontecer?
Resultado: voltei da Cidade de Goiás para o Rio de Janeiro com o livro quase pronto, mas com várias, inúmeras, peças fora do lugar e várias pontas narrativas absolutamente soltas. Mas, estranhamente, não me sentia frustrado. Sabia que importava muito escrever romance denso e profundo e vital sobre temas tão candentes para a condição humana do século 21 como a eutanásia consentida, a pedofilia e o incesto. Estava no caminho certo. O tom era aquele. O ritmo era aquele.
O romance parecia estar todo ali, mas ainda havia muitas peças embaralhadas, talvez até mesmo algumas situações novas que ainda não conseguira vislumbrar, talvez algumas frases que eu não deixara os personagens à vontade para se expressarem, enfim, faltava algo.
Prometi entregar o romance Os Lírios do Vale à Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record no dia 9 de Janeiro de 2012. Mas em troca de e-mails nas proximidades do Natal, ela me sugeriu que entregasse o romance uma semana depois do previsto, pois, antes disso, ela estaria muito ocupada e não teria tempo sequer de registrar o recebimento do livro.
Adorei a ideia. Mais uma semana para arrumar a casa, para tornar o romance mais redondo, mais coeso. Fui fundo. Andava dezoito quilômetros diariamente pelo Aterro do Flamengo, e, na volta, sentava-me em frente ao notebook, e neurônios pra que te quero.
Escrever romances (bons ou ruins) é trabalho insano e insalubre que não indico a ninguém. Sempre que escrevo romances acho que vou enlouquecer. Mas nada me dá maior prazer na vida. Nem foder. Mas tudo bem: meu grande sonho de consumo nunca fui ser um grande fodedor. Foi sempre ser um bom escritor – e  tomara que um dia eu chegue lá, mesmo que já esteja aos 58 minutos do segundo tempo
EPÍLOGO
Depois de momentos de loucura em que os meus personagens discutiam uns com os outros sobre a quem deveria pertencer a chave final do livro, e do quase motim a bordo quando fiz de um velho e sebento ursinho de pelúcia verde e rosa apenas citado en passant no primeiro capítulo num elemento de redenção da protagonista, bati o pau na mesa, se não o livro não acabaria nunca, romances não acabariam nunca se seus autores não fossem minimamente autoritários e resolutos, e dissessem  para os seus personagens: - Acabou!
Acabou na ficção. Na vida real, não.
Quando um autor bate o pau na mesa e diz para ele mesmo e para seus personagens que acabou é quando tudo na verdade começa: a. copidescagens; b. checagens; c. edição rigorosa; d) primeira prova; e) segunda prova; f) terceira prova; g) quantas provas mais forem necessárias; h) definição de capa a partir de várias propostas; h) impressão; i) encadernação; j) distribuição; k) divulgação e mídia; l) entrevistas; m) lançamentos; n) o diabo a quatro.
No caso específico de Os Lírios do Vale um, imagino, bem-humorado deus-ex-machina entrou em cena. As 22h45 m de 17 de janeiro de 2012, enviei os originais do meu mais novo romance para Luciana Villas-Boas, na Editora Record. O nosso pacto verbal feito havia alguns meses: caso gostasse do romance (ela sempre lia os meus romances antes de enviar para os pareceristas), Os Lírios do Vale seria publicado ainda em 2012.
Dia seguinte, logo cedo, chequei os e-mails no notebook, e constatei: ao contrário do que usualmente acontece, Luciana Villas-Boas não me enviara e-mail confirmando o recebimento dos originais. Achei estranhíssimo: L.V.B. é uma das personalidades mais elegantes da indústria editorial brasileira. Nestes dez anos que nos relacionamos profissionalmente (foi ela quem publicou aquele meu segundo romance, gerado na Cidade de Goiás, Três Elefantes na Ópera, e também Um Náufrago Que Ri, em 2009), ela respondeu invariavelmente a todos os e-mails que que lhe enviei.
Passei um dia seguinte de expectativas, mas nenhuma expectativa ruim me arrebatou. Gostara, e gosto tanto, do romance que acabei de escrever (Os Lírios do Vale), que os fantasmas que eventualmente me assustam ficaram a léguas de distância.
Sem fantasma algum a me agourar, fiz no dia seguinte a minha caminhada diária no Aterro do Flamengo. Mesmo com o romance concluído e enviado para a editora, um ou dois personagens continuaram me enchendo saco e me afirmando que mereceriam maior destaque no livro, mas mandei-os à merda, e a manhã foi solar e plena.
Ao chegar em casa, e abrir a caixa de e-mails, percebi o envio de dois e-mails de Luciana Villas-Boas: um em inglês e outro em português. Em ambos,  comunicava o desligamento da direção editorial da Record até 31 de março.
Senti vontade de chorar.
A minha pergunta básica era: com a saída de Luciana Villas-Boas da Editora Record todo o trabalho desenvolvido em torno da escrita do romance Os Lírios do Vale acabaria na gaveta das obras nunca lidas e  nunca editadas?
Escrevi imediatamente e-mail para Luciana Villas-Boas lamentando a saída dela da Editora Record, parabenizando-a pela nova e importante missão de agenciar escritores brasileiros no exterior, mas também lamentando entrada em cena desse deus-ex-machina em hora tão imprópria, no exato momento em que lhe enviava o meu mais recente romance.
Sei que Luciana Villas-Boas me responderá assim que as coisas se acalmarem.
Sei também que não escrevi o romance Os Lírios do Vale em vão.
Amém.
PS: Este blog ficou fora do ar por quase dois meses exatamente pelo fato de eu estar concluindo a escrita do romance Os Lírios do Vale, em breve à venda na internet ou numa livraria perto de você. Amém. 

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