domingo, 23 de outubro de 2011

A VOZ DE UMA SARJETA IMUNDA DA LAPA (OU FRAGMENTOS DE UM DISCURSO DESAMOROSO)

Em manhãs muito chuvosas, não caminho pela Enseada de Botafogo e pelo Aterro do Flamengo. Prefiro enveredar, com o olho aberto, o ouvido atento, e a cabeça no lugar,  por vias mais, digamos, intestinas do Rio de Janeiro. Abro o guarda-chuva comprado a 18 reais nas Lojas Americanas, digo até-logo ao senhor Antonio Menezes, o simpático-porteiro-do-prédio-onde-moro, que tem o mesmo nome de um dos meus tios paternos, e caio na estrada. Destino final: Praça da Cruz Vermelha, no centro da cidade.  

A trilha que percorro é fascinante panaceia de sons, e de paisagens, e de ritmos, e de cheiros, e de texturas: a) pessoas sempre apressadas parecem sair do nada e ao nada voltarem; b) trêmulos anúncios multicores saltam das paredes das casas, dos edifícios, e dos muros imundos; c) automóveis e pedestres travam luta cruenta, geralmente com vítimas; d) aqui, ali e acolá, o desvio ágil de velozes bicicletas na contramão me livra da morte certa, e gulosa; e) trabalhadores empurram carrinhos de mão com traquitanas diversas; f) mulheres gorduchas, algumas grávidas, vendem frutas da estação; g) odores nauseabundos explodem como miasmas fétidos; h) moradores de rua bêbados dormem  ao lado de cachorros esquálidos; i ) garotos famélicos e de olhos vítreos se encostam em quaisquer lugares e se enfiam em camisetas espichadas até os tornozelos; j) lixos são jogados ao léu, ao deus-dará, e parecem, de tão integrados à paisagem, que nasceram ali, feito plantas inesperadas; k) caos; l) caos; m) caos.

O roteiro,  com eventuais variações: Praia de Botafogo. Rua Marquês de Abrantes. Largo do Machado. Rua Senador Vergueiro. Avenida Rui Barbosa. Rua do Catete. Praia do Flamengo. Rua do Russel. Rua da Glória. Rua da Lapa. Largo da Lapa. Arcos da Lapa. Avenida Mem de Sá – onde me deslumbro sempre com lanchonete intitulada Crispim Com Certeza (Crispim é o nome de meu pai, e essa coincidência me acalenta e me faz querer passar ali ontem, hoje & sempre). E, enfim, a Praça da Cruz Vermelha, meio parisiense na intenção, mas absolutamente carioca no gesto. 

Na Avenida Mem de Sá se localiza Instituto Médico Legal desativado (e imagino quantos eventuais ectoplasmas não sobrevoam aquela região, atordoados & perplexos, ou estão presos lá dentro para todo o sempre. Mais coisas me fascinam nessa via: 1) certo Hotel Para Cavalheiros; e imediatamente  imagino que tipos de cavalheiros devam ser os senhores que o frequentam, e que se envolvam em seus lençóis quiçá macios, e sinto vontade de me misturar com aqueles cavalheiros que se envolvem em lençóis quiçá macios;  2) bodegas sórdidas, mas charmosas,  se enchem de homens e de mulheres que se entopem de café, ou de álcool, ou de coxinhas de frango gordurosas; 3) operários esburacam solos com britadeiras frenéticas e derramam litros de suores e aspergem no ar boduns variados;  4) bares e restaurantes tradicionais que viraram moda e são frequentados por gentes vindas da zona sul, tipo o Nova Capela; 5) mulheres circulam, serelepes, com caras amassadas e olhos de ressaca, aparentemente mal-amadas, aparentemente a bordo de vidas sem rumo – e com essas mulheres e identifico, e por essas mulheres sinto intensa compaixão; 6) moradores de rua, sempre em grupos, sempre risonhos e francos, sempre bêbados, flanam para lá e para cá; como se não houvesse amanhã; como se não houvesse tragédia nenhuma na vida que levam; como se fossem cordões carnavalescos hiperrealistas  que não param de dizer impropérios e palavrões de grosso calibre em altos brados.

Nesse frenético pedaço do Rio de Janeiro é impossível andar em linha reta (e, cá pra nós, caro leitor, para que diabos andar em linha reta?): haverá sempre algum excremento humano, ou não, no meio do caminho, do qual você precisará se desviar (ou não); haverá sempre mendigos estirados nas calçadas; haverá, enfim, sempre algo no meio do caminho, seja uma pedra – ou seja lá que diabo seja, talvez o próprio, em pessoa, sabe-se lá.  

Moral desses cinco primeiros parágrafos: caminhar, em manhã chuvosa, do Baixo Botafogo – mais exatamente a partir da Rua General Polidoro, na altura da Rua da Passagem – até à Praça da Cruz Vermelha, e, na sequência, fazer o caminho inverso é prazer inenarrável, quase sexual, para este cronista ávido pelas entranhas de cidades (grandes e pequenas) e de pessoas (grandes e pequenas).

Quarta-feira, 19 de outubro: outra manhã chuvosa abre os braços sobre a Baía da Guanabara, e não vacilo: abro o guarda-chuva comprado a 18 reais nas Lojas Americanas, digo até-logo ao senhor Antonio Menezes, o simpático-porteiro-do-prédio-onde-moro, que tem o mesmo nome de um dos meus tios paternos, e caio na estrada.

(Vou até a Praça da Cruz Vermelho, e volto da Praça da Cruz Vermelha, meio transido, mas sempre tentando captar o mais que puder, tentando enxergar o máximo que puder, tentando digerir o maior número de informações que puder.)

No caminho de volta para casa, no começo da Rua da Lapa, mendigos-camelôs  vendem, em calçada coalhada de poças de lama, mil e uma bugigangas inúteis de segundíssima mão, inclusive livros usadíssimos, e me forçam a fazer pequena parada. Sempre tento descobrir se haverá algum rebotalho de livro meu no meio daquela tralha de obras não identificadas. Em vão. Nunca acho, por exemplo, exemplar de Meu Nome é Gal, romance, digamos, lisérgico, de minha lavra, publicado pela Editora Codecri, no longínquo 1984. Em compensação, está lá no chão enlameado da calçada exemplar encardido de Cuba de Fidel. Autor: Roberto Dávila. Preço: 50 centavos.

Deixo os livros encardidos, e sigo. No poste localizado na esquina da Rua Taylor com a Rua da Lapa, cachorro vira-lata faz xixi, e percebo: faz xixi  sobre caderno espiralado de capa vermelha que se abre e que se esparrama e que se liquefaz em dupla face no chão, ensopado pela chuva, e, agora, pelo xixi do cachorro vira-lata.

O cachorro vira-lata parte. Eu fico. Sinto atração irresistível por aquele caderno espiralado de capa vermelha que jaz, quase liquefeito, em poça de água de chuva + urina canina. Não dá outra: abaixo-me (mendiga imunda me olha com cara de raiva; estou invadindo o ´terreno´ dela), tento folheá-lo, e percebo, comovido: tudo fora escrito à mão, espécie de diário íntimo que alguém escrevera, e fora parar em sarjeta imunda da Lapa. Tudo está manchado, tudo parece ilegível. Quase tudo. Em algumas pouquíssimas páginas, posso ler alguma coisa, e eu quero ler essa alguma coisa.

Salvo, com carinho e delicadeza, o caderno espiralado vermelho do afogamento total - e fatal, e da liquefação total - e fatal. Puxo-o cuidadosamente com as pontas dos dedos e o enfio em saco plástico de supermercado que cato nas cercanias.

Volto apressadamente para casa, coração aos pulos. Algo me diz, ou quero acreditar que diga: aquele caderno poderá ser alguma variação urbana de garrafa-jogada-ao-mar, na qual alguém estaria enviando alguma mensagem a alguém. 

A galope, chego em casa o mais rapidamente possível, embora a chuva se intensifique cada vez mais entre a Lapa e o Largo do Machado, e o meu guarda-chuva comprado a 18 reais, embora tente, não consegue evitar que eu me encharque dos pés à cabeça. Finalmente, sentado na mesa da sala, ainda ensopado, abro o caderno espiralado vermelho, que, quero crer, poderá ser  o diário de algum náufrago urbano que soçobrara em alguma sarjeta imunda da Lapa. E, de fato, é. Mas está completamente ilegível. Melhor: quase totalmente ilegível.

Pacientemente, despetalando cuidadosamente cada página para que não se despedace, descubro: há apenas duas páginas que podem ser lidas com alguma dificuldade, mas lidas. Uma quase inteiramente; a outra, apenas uma ou duas ou três palavras. Passo as duas horas seguintes tentando arrumar aquele quebra-cabeça. Frases interrompidas, palavras devoradas, sílabas estilhaçadas tornam minha missão quase impossível. Mas persisto, persisto, persito, e... bingo: consigo ler as três páginas escritas à mão por algum náufrago urbano que soçobrara em alguma sarjeta imunda da Lapa – e que talvez nunca descubramos o nome.

E o que leio é o seguinte, caro leitor:

Dia 31 (ou 32; mas acabo concluindo, ou querendo concluir: é 31)

(Ilegível) ... nesta noite horrenda que ora vivo, penso que já morri, e que estou em purgatório fedido, queimando minhas culpas terrenas, antes que batalhões de anjos e diabos se decidam para onde... (ilegível) devo ir: para o céu, ou para o inferno, ou para a puta que me pariu. É muito tempo de tormenta. A vida está uma merda há tempo demais. (Ilegível) ... sei lá quando.

Ando perdendo a noção do tempo. Não sei mais o que fazer. Pior: não sei mais o que não fazer. Rezo, rezo muito. É o que me resta. Puxo na memória todas as orações aprendidas na infância. A que achava, e ainda acho, mais bela era, e é, a Salve Rainha, que falava que vivíamos num vale de lágrimas, e realmente vivemos... (ilegível). Mas, porra, não consigo lembrar mais as palavras exatas dessa prece. Rezo por rezar. Sei que ninguém parece disposto a ouvir as minhas preces. Ou seja, rezo como se me masturbasse. Mergulho numa solidão que não consigo mais dar conta. (Ilegível)...  Há alguém aí? Há alguém aí, porra? Não, não precisa responder: sei que não há alguém aí, porra, nem por essa (ilegível) ... Lapa que me cerca, nem pelo Rio de Janeiro que me cerca, e nem por esse mundo de merda inteiro que me cerca.

Então tento reler o Eclesiastes pela enésima vez. Está tudo lá: não há sentido algum, não há mistério algum, não há... (ilegível). A vida é equação indecifrável. O barulho do bar em frente é infernal, e não consigo reler o Eclesiastes pela enésima vez. Vou à a cozinha; fervo água; e faço chá de hortelã com limão (iguais aos que os personagens de Amós Oz tomam), e bebo o chá de hortelã com limão e engulo três comprimidos de ... (ilegível). O barulho é absurdo. A Lapa é absurda. A vida é absurda. De repente, ouço as sirenes de carros de polícia. Vou à janela e vejo muitos carros de polícia e vários bêbados ... (ilegível).

O Rio de Janeiro vive fracassado processo civilizatório. Tudo é aqui é... (Ilegível), ainda em vias de se tornar cidade habitável. A polícia vai embora. A música diminui. Mas o barulho prossegue. Moro num primeiro andar da Rua da Lapa. Uma corja de moradores de rua fala sem parar, aos berros. Filhos da puta. Minha consciência social de outros tempos foi para a casa do caralho – e já foi tarde. Se metralhadora tivesse agora fuzilaria todos esses mendigos,  sem dó nem piedade.

Envio torpedo pra Regina (nessas horas de solidão abissal, é o único nome que ainda me vem à cabeça): Teclo ´Reze por mim´. Tento me desligar: me jogo na cama desarrumada e cheirando a suor e a ... (ilegível). Depois de algum tempo, o telefone fixo toca. Não atendo. Deve ser a Regina, mas não quero falar com a porra da Regina. Repetir-lhe toda a cantilena de sempre me doeria muito. Em seguida, Regina liga pro meu celular. Vejo o nome dela no visor , atendo, mas aviso, cheio de raiva: - Não quero conversar. Apenas reze por mim. E desligo. (Ter a Regina aqui comigo agora me aliviaria um pouco, mas não quero me aliviar um pouco, quero ... (ilegível).

Não sei por quanto tempo mais vou resistir. Não quero mais resistir. A merda é que não consigo me matar; e temo tentar me matar e não conseguir morrer. E ainda ... (ilegível)

Dia 45

Consegui. Fui...  (ilegível).

(Ainda chove lá fora - e me pergunto: 1) Quem terá escrito esse ferido diário? 2) Que fim o autor desse ferido diário terá levado? 3) E Regina, por onde andará Regina?) 




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2 comentários:

  1. Crônica linda, dramática e poética.
    Imagino que a Regina seja ainda mais sofrida
    do que o autor do ferido diário.
    Amigo Rogério, você escreve bem demais da conta
    e sempre me emociona
    com essa intensa descrição-argumentação-narração
    da condição humana.

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  2. De fato uma variação urbana de garrafa-jogada-ao-mar. Espero que a mensagem tenha chegado ou um dia chegue ao seu destinatário.

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