segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO PARAGUAÇU (OU MINHA PEQUENA CACHOEIRA)

Eu & os rios. Os rios & eu. Nasci às margens de um rio – o Jiquiriçá. Passei a infância ao lado de outro rio – o das Contas (e hoje moro em outro Rio, o de Janeiro-fevereiro-e-março). Não podia ser diferente: venero o Sena; o Amazonas; o São Francisco; o Nilo; e todos-os-dessa-laia que nos trazem alentos balsâmicos em momentos nos quais a barra pesa – e a barra sempre pesa, sabemos. Por causa desse arrebatamento que rios me provocam, é sempre retumbante emoção rever rios que não via havia tempos. Assim sucedeu quando, lá do alto, avistei o majestático rio Paraguaçu: vigoroso, retumbante, de fazer mocetona-virgem-incruada mergulhar em bem-vindas vertigens de êxtase.

Verdade que, mesmo não sendo mocetona-virgem-incruada, quase tive bem-vinda vertigem de êxtase ao me aproximar desse rio majestático que separa Cachoeira de São Felix. Mas o problema não é meu. O problema é do Paraguaçu, um pitéu, um pedaço-de-mau-caminho. Se rios fossem homens (e, na calada da noite, talvez sejam; se não, fica, a quem de direito, a sugestão), o Paraguaçu seria algo similar a Javier Bardem & a guapos rapagões do mesmo naipe. Se rios fossem mulheres (e, na calada da noite, talvez sejam; se não, fica, a quem de direito, a sugestão), o Paraguaçu seria algo similar a Penélope Cruz & a guapas raparigas da mesma estirpe.

À beira de rio assim, meio Javier Bardem, meio Penélope Cruz, cidades nem precisariam ser tão belas – mas Cachoeira o é – e eu quase já havia esquecido disso – e eu não visitava essa princesinha do recôncavo há décadas. (Com casario de notório valor arquitetônico, Cachoeira é tipo aquele homem e mulher, de beleza rara, que não se jactam de possuírem beleza rara – a idéia é essa, e essa idéia é boa: não precisar provar nada para ninguém).

Enquanto cidades tão belas quanto (ou apenas um tiquinho menos), tipo Tiradentes (MG), Goiás (GO) e Paraty (RJ), das quais também sou amante amantíssimo, se tornam vez mais conhecidas Brasil e mundo afora, Cachoeira corre devagar. Sem pressa alguma de chegar, se é que quer chegar a algum lugar. (A propósito: há poucos hotéis na cidade com mínimas condições de conforto; e os restaurantes são poucos e simplórios – mas nem por isso menos notórios).
A melhor carne de sol que este-cronista-cada-vez-menos-carnívoro já comeu nos últimos tempos foi servida em pé-sujo cachoeirense fundado há cerca de oitenta anos: o PQTRLV – que deve ser lido à moda baiana, Pê-Quê-Tê-Rê-Lê-Vê. Em bom português, essa sigla significaria Pedro Quer Ter Renda, Lucro e Vantagem. (Esse Pedro – segundo o atual dono desse boteco, o simpático Zé Miúdo, que comprou o ponto há 22 anos – foi o homem bem-humorado que abriu o restaurante
(´lá pelos anos trinta´) , e deu supercerto nessa cidade superfesteira: - A gente já gosta de uma folia por aqui!)

Como se vê, Cachoeira é cidade assumidamente festeira. O sargento Orlando, dublê de policial militar e maestro da filarmônica Lyra Ceciliana, fundada em 1870, atesta, e dá fé: por causa desse espírito festeiro da cidade, a filarmônica nunca parou (´nem parará´) de tocar. Ele diz, com orgulho incontido: - Não tem semana que a gente não toque em algum festejo. Filarmônica por aqui é artigo de primeiríssima necessidade.
(Há outra filarmônica cachoeirense que também não para de tocar desde 1877: a Minerva Cachoeirana).

São Félix, ligada a Cachoeira por ponte secular que chacoalha perigosamente a cada pisada que damos nas tábuas irregulares e esburacadas que a compõem, é irmã gêmea de Cachoeira. É, no entanto, mais macambúzia, menos feérica (embora também tenha uma filarmônica desde 1916: a Sociedade Filarmônica União Sanfelixista) – e, talvez, há controvérsias, menos bela e mais malcuidada.
Enquanto a maioria dos casarões (embora ainda haja alguns em condições de abandono, toscamente ancorados) de Cachoeira seja esplendorosa, os de São Félix desmoronam ao sol e à chuva, inclementes, do recôncavo. (Única e honrosa exceção: o prédio da fábrica de charutos Dannemann: flor de preservação arquitetônica, que hoje também funciona como museu e centro cultural).
Após passear pelas ruas ermas de São Félix, volto a Cachoeira, e volto perigosamente: entre olhar para onde piso nessa ponte naïf e frágil, como deve ser (afinal de contas qualquer vacilo poderá ser fatal e nos fazer afundar em buraco inesperado), e apreciar o Paraguaçu-JavierBardem-PenelopeCruz que corre gloriosamente lá embaixo, eu não penso duas vezes. Prefiro, claro, (e preferirei sempre), apreciar o rio Paraguaçu-Javier-Bardem-Penélope-Cruz, cada vez mais arrebatador, cada vez mais encantador, que ronca lá embaixo.

Por volta das oito da noite, para digerir o acarajé devorado após a travessia da ponte, volto a circular pela Rua da Feira, que já tentaram chamar, sem êxito, de Antonio Carlos Magalhães e de J.J. Seabra. Logo no começo da caminhada ouço espetacular e familiar som de metais: é mais um ensaio noturno da Filarmônica Lyra Ceciliana, eternamente a se preparar para festas por vir, e em Cachoeira novas festas hão sempre de pipocar por aí.

Com esses sonantes acordes na cabeça, sonho encontrar outras filarmônicas pelo caminho. Mas encontro apenas igrejas evangélicas. Primeira parada: Igreja Pentecostal Primitiva Ato dos Apóstolos. Segunda parada: Igreja Universal do Reino de Deus. Terceira Parada: Igreja Assembléia de Deus. Quarta parada: Igreja Pentecostal Deus é Amor. Detalhe revelador: estão todas lotadas.
Por um momento aquele transe de fé carregado de culpa no meio da noite me acabrunha. Depois dou de ombros, e constato, com algum bom-humor: na festeira Cachoeira, fervilha, paralelamente, uma, digamos, Broadway-de-igrejas-evangélicas. Na seqüência, em conclusão lógica & dedutiva, percebo também: na festeira e dionisíaca Cachoeira muitos são os que sofrem e os que buscam parar de sofrer por meio de ritos religiosos que dizem ser o melhor que há (não por acaso, imenso outdoor na porta da Igreja Universal do Reino de Deus esbraveja: Pare de sofrer!).
Ou seja: sofre-se em qualquer lugar, quer-se parar de sofrer em qualquer lugar, até naquela aparentemente festeira e dionisíaca Cachoeira.
Por um momento penso em entrar num daqueles templos evangélicos e reforçar o coro dos sofredores que imploram a clemência de Deus (ou a quem de direito; há alguém aí?). Mas lembro do Paraguaçu/JavierBardem/PenelopeCruz, e me deixo afagar & afogar pelos braços generosos dessas águas profundas que me pariram. 

PS1: Se eu fosse uma cidade, seria Cachoeira, e adoraria que o retumbante rio Paraguaçu circulasse por minhas veias e artérias.

PS2:  Esta cidade tão cara a este cronista sedia até 16 de outubro a primeira edição da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica). Longa vida à Flica!

3 comentários:

  1. Rogério :
    Para um cachoeirano de quatro costados é bom saber que minha urbe colonial encantou e agora recebe de volta um canto bem cantado, poético mesmo. Retifico apenas que a filarmônica Lyra é Ceciliana (de Sta. Cecília,padroera dos músicos) e não Siciliana, lá dos recônditos mafiosos da "Bota". Essa filarmônica tem história e na noite de 13 de Maio de 1888, à frente dela o seu fundador, Tranquilino Bastos, desfilou em uma alegre passeata comemorando a libertação dos escravos. Tudo isso está em meu livro "O SEMEADOR DE ORQUESTRAS - História de um Maestro Abolicionista", que lanço lá em cachoeira no dia 15 na FLICA.
    Abs
    PS: Em 1967 a Seleção de Cachoeira derrotou a de Jequié (sua terra) e ganhou o Torneioi Intermunicipal. Acho que vc começou seu encanto ali...

    ResponderExcluir