segunda-feira, 17 de outubro de 2011

AS VACAS PASSEIAM NA LUA CHEIA (OU CHOVE CHUVA, CHOVE SEM PARAR. OBÁ, OBÁ, OBÁ!)



Terra em transe. Tempo em transe. Tudo em transe. Em centenas de cidades do interior da Bahia,  & de ene Bahias deste Brasil-varonil, & de ene Brasis-varonis deste mundão-velho-sem-porteira, é assim (& assado): presente & passado (ontem & hoje; civilização & barbárie; modernidade & atraso) se fundem, se interpenetram, se beijam de língua, trocam líquidos & secreções diversos. Dessa pororoca de realidades e paisagens aparentemente  paradoxais resulta transição fascinante, deslumbrante, diante da qual me contrito, bato cabeça, atesto & dou fé & que faço questão de registrar para uma posteridade em que vacas-de-rua-que-passeiam-na-lua-cheia e fanfarras-que-nos-fazem-chorar-de-saudades terão desaparecido para todo o sempre.

Sete da noite de lua cheia de  outubro: duas vacas bem nutridas e úberes passeiam calmamente sobre as calçadas de paralelepípedos de ruas dessa pequena cidade do interior da Bahia. Não parecem intimidadas. Ao contrário, desfilam como se voltassem das compras. Ou fossem visitar amiga doente. Ou, ainda, simplesmente passeassem por passear. Não se constrangem, nem se assustam, com os automóveis ao redor; ou com as pessoas com as quais cruzam aqui, ali e alhures. Em síntese: estão na delas.

Caminham calmamente. Dobram a esquina sem pressa. Descem, decididas, certa rua sem calçamento que provavelmente não as levará a lugar nenhum (Ou levará?). Por um átimo penso em segui-las, em flagrar qual será o destino dessas duas criaturas surgidas do nada no meio da noite do sertão da Bahia. Mas acabo desistindo da ideia de segui-las (e depois me arrependi por não tâ-las seguido) - e sigo o meu rumo.

Vou até a pracinha-com-coreto (uma das pracinhas-com-coreto mais belas que este cronista já viu) e descubro barraquinhas coloridas que vendem acarajé & abará. Louco-por-abará&acarajé assumido, e sem culpa, compro um-de-cada na mão de garota-danada-de-bonita que veste camiseta estampada com a efígie de Mariah Carey. Sento para devorá-los (e para tomar cerveja estupidamente gelada) em mesa de bar da pracinha-com-coreto, e, também, para pensar na vida (e na morte da bezerra). Mas não consigo pensar na vida (e muito menos na morte da bezerra): aquelas duas vaquinhas sem destino que acabara de ver não saem de minha cabeça e certa saudade delas me invade, e penso: -  Porra, por que diabos não as segui?.

Oito da noite de lua cheia de outubro: percebo certo alvoroço em rua próxima à bucólica praça e entro em certo clube social de instalações algo precárias. Lá dentro flagro centenas de jovens (e nem tão jovens assim) que se inscrevem para participar de certo ´evento cultural´ (conforme me informou guapa rapariga). São diligentemente atendidos por outros jovens, a bordo de lepitopes de última geração, (conectados com o resto da galáxia pelo sistema wireless. (Em prova cabal de que cultura & arte & outras mumunhas mais brotam dos grotões mais ermos, no off do off, no cu do cu, e não apenas no regurgitar frenético das megalópoles).

Vacas-de-rua-que-passeiam-na-lua-cheia e lepitopes-up-to-date na mesma cena, no mesmo quadro, no mesmo diapasão: pretendo pensar mais sobre essa superposição de aparentes contrastes, sobre esses universos paralelos que se unem no mesmo quadro, mas as duas vacas-de-rua-que-passeiam-na-lua-cheia continuam caminhando na minha imaginação (Seriam namoradas? Estariam indo para alguma balada noturna? Chamar-se-iam Elza e Dagmar?)).

Continuo a mergulhar em ruas  ermas.  Até que o estonteante som de metais e de batuques, vindos de algum lugar não identificado, expulsa as inesperadas vacas-de rua-que-passeavam-na-lua-cheia & qualquer outra ruminação intelectual). Fascinado, parto em busca do lugar de onde vem esse som.

Enfim, arfante, ao dobrar esquina, avisto bando de rapazes e moças ainda inseguros e algo desafinados, mas, mesmo assim, deslumbrantes e garbosos. Tocam temas musicais candentes do nosso cancioneiro popular. Coço os olhos, quase não acredito no que vejo e, basicamente, no que ouço, mas sou obrigado a concluir  (e a vibrar com essa conclusão): trata-se evidentemente de uma fanfarra – fan-far-ra, caro e incréu leitor (e fanfarras são meu objeto de culto desde garoto).

Este cronista e alguns poucos nativos nos encostamos em muro que margeia a rua para ver a fanfarra passar. Olho para o lado e vejo belo jovem negro, com saxofone dourado nas mãos – e puxo conversa. Diz se chamar Eduardo. Conta: a fanfarra ainda não tinha nome definido, e começara a ser formada havia cerca de vinte dias.
Eu: - Vinte dias? Só?
Ele: - Só. A gente acabou de se formar, mas a gente já vai participar de um campeonato de fanfarra que começa domingo numa cidade perto daqui.

Eduardo se despede, se agrega ao resto da fanfarra e, com o resto da fanfarra, se perde dentro da noite de lua cheia.

Sigo para o hotel de Dona Tereza. Cidade completamente erma,  cães vadios se esfregam lascivamente em cantos de becos escuros; inebriantes cheiros de coentro emanam não sei de que buracos. Mas as vacas-de-rua-que-passeavam-na-lua-cheia, os lepitopes-de-última-geração-no-meio-do-nada, a fanfarra-recém-nascida ainda fervilham no meu cérebro.

(E, de volta ao mundo urbano, nesta manhã carioca chuvosa de segunda-feira, não posso deixar de me perguntar: por onde andarão essas vacas-que-passeavam-na-lua-cheia, e que talvez  namorassem, e que talvez seguissem para alguma balada noturna, e que talvez se chamassem Elza e Dagmar?) 








2 comentários:

  1. Por onde andarão Elza e Dagmar ? Viajei contigo nesta cidade, pude imaginar muitas outras pelas quais já passei, amei esse seu viés proustiano.Beijos no coração! Paulo Atto

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  2. Bom é ser vaca e saber aonde ir. Nós, humanos, no meio de tanta coisa, nos perdemos. Beijin,

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