quinta-feira, 16 de junho de 2011

RELATO SOBRE GALINHAS, GATOS E HOMENS, DEDICADO A UM CACHORRO CHAMADO MARTIM

Nenhum trauma familiar de grande monta atingiu em cheio a minha infância-querida-que-não-volta-mais. Meu pai, Crispim, gentil-homem cheio de humor, me ensinou a rir das nossas próprias desgraças - e nenhum outro ensinamento me seria mais precioso. Minha mãe, Águida, profunda, reflexiva, lunar, veia artística à flor da pele, dona de sensibilidade abissal a qual me injetou, delicadamente, por meio de seus tépidos seios, nos quais mamei até os quatro anos de idade. Os meus irmãos, Luiza, Cecé e José Crispim, me trataram carinhosamente - a ponto de até hoje serem os meus melhores amigos.

Fora desse ecossistema afetivo que me nutria, o mundo lá fora, mesmo na segunda metade dos anos 1960, não era moleza não, meu irmão. Crianças da mesma idade que eu não me perdoavam o fato de ser: 1) gordo; aos dez anos de idade, pesava 60 quilos; 2) o-melhor-aluno-da-sala; chamavam-me de C-D-A-I (cu-de-aço-inoxidável); 3)  last but not least, o maior perna de pau do sudoeste baiano, e alhures.

Dessa constatação adveio o seguinte fato: escalavam-me invariavelmente na posição de goleiro; e urravam para os meus colegas que, em resposta, urravam, no mesmo tom: - Com o bolo fofo do Rogério no gol nenhuma bola passa. É só ele abrir os braços que fecha a trave! 

Dois desses arquivilões de minha infância nunca me sairiam da memória. Alcunhados por nomes nada lisongeiros - Bosteiro, e Barrão - me perseguiam implacavelmente. Sempre que volto a Jequié-Bahia, onde esses eventos ocorreram - e sempre volto a Jequié-Bahia, cidade à qual consagro imorredouro amor e afeto -, gosto de passar pela rua Silva Jardim. Era nesse, digamos, logradouro que  Barrão, Bosteiro e eu sempre nos cruzávmos. Ao vê-los, à distância, mudava imediatamente de calçada, em vã tentativa de evitar que me vissem, mas os filhos da puta sempre me viam, e sempre berravam: -  Bolo fofo! Bolo de Bosta! Bunda de caruru! (NR: não baianos talvez não saibam:  caruru é gostosíssima iguaria feita à base de quiabo e de camarão, mas com consistência que sempre provoca certo asco nos não iniciados: mix de geleia de kiwi  e merda).

Fundamental ressaltar: além de papai, mamãe e irmãos amorosos, e as leituras fugidias das fotonovelas surrupiadas de minhas irmãs, e das obras completas de Jorge Amado que lia com intensa avidez, descobri amiguinhos mais acolhedores, bem mais acolhedores. Fui precoce nesse lance de perceber que podia me relacionar melhor com alguns bichinhos simpáticos que me cercavam do que com os meus convivas de antanho.

Dona Águida, a minha mãe, além de costureira e bordadeira e cabeleireira, era quituteira de ótima estirpe. A galinha-ao-molho-pardo que fazia era de se comer rezando. Mas a preparação do prato não me deixava muito confortável. Ao contrário de hoje, quando compramos frangos nao identificados e cheios de hormônios nos supermercados, tinha-se então quintal recheado de galinhas de ótima cepa (e em tempos de violência quase zero eram os ladrões de galinhas os grandes criminosos dessa época).

Não podíamos nos apegar a nenhuma dessas simpáticas galinhas. Afinal, a qualquer momento, uma delas (aleatoriamente) poderia ser agarrada e degolada por Dona Águida, que, em seguida a cozinhava, a temperava e a transformava naquela iguaria à qual amávamos tanto. Detalhe: o acepipe era cozido no próprio sangue da ave que depois comeríamos rezando - e rezando sem culpa alguma.

Mas eu, ai de mim, me apeguei a uma dessas galináceas criaturas. Ao ver que minha mãe segurava com uma mão faca afiadíssima, e com a outra, o pescoço de certa galinha a quem tinha me afeiçoado, bradei: - Não, essa não! Essa não, minha mãe! Dona Águida me olhou com ar zombeteiro, mas acabou cedendo aos meus apelos.

Próxima cena: eu e Gorda (assim batizei minha amiga galinácea),  felizes para sempre - ou pelo menos até quando morreu de velha e gordíssima, a ponto de se arrastar pesadamente pelo quintal. Ás vezes, penalizado, carregava-o no colo pelas redondezas (e, merda, ouvia sempre alguém gritando: - Olha lá: um gordo carregando uma gorda!!! Kakakakakakaka!).

Enquanto me relacionava com Gorda, abri, paralelamente, infielmente, dois novos canais de relacionamento, agora com seres felinos. Primeiro veio a gata Brigitte (claro, em homenagem à Brigitte Bardot, o dernier cri do mundo cinematográfico de antanho). Fez jus ao nome. Era gata pra lá de lasciva:  gostava de se esfregar na minha genitália (que, perdão leitores, se petrificava imediatamente), e de, pasme, lamber minhas virilhas suadas.

Mas antes que o leitor mais moralista me aponte o dedo da culpa, e me atire a primeira pedra, e me acuse de zoófilo, devo dizer: nunca chegamos às vias de fato. Ambos permanecemos castos, até ela morrer; e até, algum tempo depois, eu  descobrir em corpos humanos alheios enormes fontes de prazer.

Como se não bastassem Gorda e Brigitte, entrou em cena gato robusto, pelagem cinza-escuro, quase espécie-de-Rodolfo-Valentino-dos-felinos. Chamava-se Poti. Não chegamos a fazer quarteto amoroso heterodoxo. Não por falta de vontade minha. Ou de Brigitte, sempre arrojada, sempre avant la lettre. Quanto à Gorda, manteve-se num mutismo revelador. Talvez temesse: com a entrada em cena de integrante tão garboso, perderia espaço no meu coração e no de Brigitte. Bobinha: nós a amávamos tanto, e a amaríamos tanto, incondicionalmente, com ou sem Potis.

Mas, coisas da vida, trapaças da sorte, o destino não quis, esse quarteto amoroso heterodoxo não se concretizou. Poti, destemido, viril, atolado de libido até a tampa, ronronava ao redor de nós durante o dia, mas, na calada da noite, aventurava-se Jequié-Bahia afora - e só voltava altas madrugadas. Um dia, não voltou.

Registramos, enlutados, o sumiço do quarto vértice desse eventual quarteto amoroso, e lamentamos tal perda a ponto de chorarmos copiosamente. Mas,após alguns dias, concluímos, estoicamente: ele teria preferirdo seguir outros rumos e singrar outros mares. Antes, tivesse. Uma semana depois, insuportável cheiro de algo que se apodrecia no quintal invadiu a nossa casa e os nossos narizes. Logo descobrimos: era o corpo de Poti que se decompunha no fundo do grande tanque de água que havia no quintal.

Depois dessa infância rica de amizades animais, mergulhei (temerariamente, mas necessariamente) fundo nos jogos afetivo-amorosos-entre-humanos em vigor desde que o mundo é mundo. Claro, quebrei muitas vezes a cara; apaixonei-me ene vezes por pessoas erradas; afundei-me aqui e ali no lodo movediço da paixão - enfim, caí de boca no pântano fascinante, mas eventualmente traiçoeiro, do sexo, do amor e da (por que não?) luxúria.

Até que, em 2001, o mundo girou, a lusitana rodou: inesperadamete entrou em cena o gato vira-lata Ravic, nascido na Vila Planalto, em Brasília, e que me fora presenteado por um casal de amigos. Entrou e arrebentou.

Tornamo-nos unha e carne. Ceci & Peri. Batman & Robin. Bonnie & Clyde. Rock & Hudson. Marilyn & Monroe. Dilma & Rouseff. Ravic surgiu-me naquele exato momento das nossa vidas em que mais que parece que tudo na vida está dando errado; de fato, efetivamente, contundentemente, inexoravelmente, tudo na nossa vida está dando errado e afundando na mais inexorável merda. Juntos, mudamos da Asa Norte para a Asa Sul,; da Asa Sul para a Asa Norte, em Brasília; acampamos em casa de amigos; mudamos para o Rio de Janeiro; voltamos de novo para Brasília.

Eu aguentei o tranco, entre mortos e feridos, firme e forte. Ele, não: foi devorado por câncer fulminante que o transformou num farrapo felino que se arrastava pelo chão dos apartamentos onde moramos, e que urrava de dor, e que vomitava jatos caudalosas doses de sangue a cada meia-hora. Mas morreu em paz - já agonizante, coloquei-o numa espécie de moisés e o levava para o lugar da casa que fosse. Certa noite, coloquei-o à beira de minha cama, e ele me olhou com tal transcendência, que, inferi certeiramente, presumo: devia saber que morreria a qualquer momento.

Adormeci olhando-lhe nos olhos; e ele nos meus. Dia seguinte, ao acordar, deparei com os olhos dele ainda abertos, congelados na minha direção - mas já havia morrido de madrugada. (Talvez, a ver, muitas pedras ainda rolarão, Ravic tenha sido o ´homem´ da minha vida´. A ponto de tê-lo tornado protagonista de romance escritor em 2007 e publicado em 2009: Um Náufrago que Ri, Editora Record, à venda nas boas casas do ramo, ou pela internet).

Senti-me visceralmente viúvo. Não quis mais me unir a felino algum. Fora relação tão retumbante que evitei, e evito, amar outro gato. Mas a vida nunca é exatamente o que a gente acha que deve ser. A vida é, simplesmente.

Nos últimos dias, aloprado deus-ex-machina me colocou diante da seguinte equação: a) uma de minhas queridas sobrinhas pariu gêmeas prematuras - e que passam muito bem, obrigado, e estão vivazes e fortes; b) o pediatra que cuida dessas garotas recém-chegadas ao planeta Terra, em UTI neonatal de hospital do Rio de Janeiro, foi claro: ao voltarem para casa, minhas queridas-sobrinhas-netas deverão viver em ambiente asséptico, no qual será terminantemente proibida a presença de animais domésticos.

Detalhe: os pais das minhas sobrinhas-netas criam uma gata arisca, mas fofíssima, chamada Chica, a quem amam de paixão. De repente, a parada é a seguinte: para onde irá a gata arisca, mas fofíssima, chamada Chica? Sogros e sogras de ambos os lados não demonstram muito entusiasmo em adotá-la.

Então entrei de gaiato no navio: ontem visitei Chica, aqui perto de casa, em Botafogo, na Rua Conde de Irajá. Ela, sem imaginar a discussão que aqui fora, no mundo dos humanos, se trava sobre o futuro que lhe espera, dormia malemolente no sofá da sala, em meio a mar de almofadas multicores. Aproximei-me dela cuidadosamente. Acordei-a com um afago. Ela me olhou com aqueles olhos que só Elizabeth Taylor tinha. Irresistíveis. Conversamos um pouco. Quase namoramos.

Voltei para casa com a estranha sensação de que os gatos voltarão a invadir a minha vida. O que fazer, caro leitor? Devo resistir? ou não?

PS: Embora esta crônica seja, aparentemente, sobre a galinha e os gatos e os homens de minha vida, quero dedicá-la a um cachorro. Trata-se de garboso e carinhoso golden retriever chamado Martim, nascido no Lago Norte, em Brasília, em 2007. Ele não me pertence. Mas foi  presente de aniversário que dei a grande amigo-quase-amor, daqueles que ficarão para sempre (ainda há amigos-quase-amores que ficarão para sempre). Ainda que alguns rios e mares possam eventualmente nos separar. (Eu e Martim e esse grande amigo-quase-amor, coisas da vida, estamos temporariamente afastados).

No último encontro que eu eu Martim tivemos, em apartamento da Glória, ele me fez os mimos de sempre; abraçamo-nos efusivamente; mas, a partir de certo momento, percebi-lhe certa ansiedade: passou a morder a minha mão, com vigor que não lhe era peculiar. Reclamei. Mandei-o parar. Ele recuou. Mas as marcas dos dentes dele ficaram nas costas de minha mão direita por alguns dias. Pena que desapareceram. Quem sabe com essas mordidas bruscas , estivesse querendo deixar alguma marca dele no meu corpo, talvez por inferir que demoraríamos muito tempo para nos revermos? 

Melhor deixar o rio seguir o curso que tiver de correr. Let it be. Let it blood. Whatever will be, will be.


..

2 comentários:

  1. Oh, Rogério... Fico tão mal quando leio coisas assim sobre bichos de estimação...

    ResponderExcluir
  2. Se eu pudesse agora, leria a crônica para o Martim. Mas, tenho certeza de que independente de toda homenagem ele te adora, assim, por nada...Abçs

    ResponderExcluir