quinta-feira, 30 de junho de 2011

O DIA EM QUE PAULO RODOLFO NEGOU TRÊS VEZES, E VIROU PAULETE ISCARIOTES

Devia ser 1991 (ou 1992; há controvérsias): o grito ecoou fundo no meio da noite quente de abril no bairro de Amaralina, em Salvador: - Socorro! Socorro!

Paulo Rodolfo, profundos e insondáveis olhos azuis, eternamente bem-humorado, daqueles que garantem a alegria e o esplendor de qualquer mesa de bar mesmo que o sol já comece timidamente a despontar no horizonte, acordou aos berros no meio da noite. Urrava, esbaforido, e atordoado, como se lhe acabassem de estripar o fígado, os rins, e a bexiga e os jogassem num cadeirão de água fervente, misturada com soda cáustica - e, de fato, sonhara que lhe estripavam o fígado, os rins, e a bexiga, e os jogavam num caldeirão de água fervente, misturada com soda cáustica.

O grito de socorro foi tão estridente que acordou as cadelinhas poodle Sara e Madalena, suas diuturnas companheiras na cama king size do pequeno, mas razoavelmente confortável, apartamento onde moravam, a poucos metros da praia de Amaralina.

Sara e Madalena o olharam preocupadas e assustadas, mas Paulo Rodolfo, ainda atordoado com o sonho aziago, não se dignou a afagar-lhes as orelhas e os cocurutos, como sempre o fazia em momentos de pânico, ou de não pânico. Preferiu ensimesmar-se, afundar a cabeça no travesseiro, e tentar dormir de novo. Não conseguiu (as cadelinhas poodle, no entanto, passado o susto, mergulharam novamente em sono profundo).

Paulo Rodolfo voltou a lembrar esse pesadelo algumas horas depois, quando, a bordo de rosto macilento e de olheiras abissais, adentrava o estúdio de tevê, onde participaria de programa popularesco e sensacionalista (A Bahia em Transe). Líder de audiência no horário, era comandado pelo temido e poderoso Teodoro Barrela, famoso pela verborréia inflamada que disparava contra as diatribes e ocorrências do cotidiano, e fervoroso seguidor da Igreja Universal do Reino de Deus.

No começo, Paulo Rodolfo temera participar de programa com perfil tão sensacionalista, e comandado por evangélico de assumido viés moralista, mas o produtor da peça que então dirigia (Assim é Se Lhe Parece,  de Luigi Pirandello, adaptada para a paisagem do Pelourinho) insistiu, pragmaticamente: - Se você quiser ter vida melhor e sair daquele apartamento de merda de Amaralina, você terá de abrir concessões, de fazer com que o povo consuma o biscoito fino que você produz! 

A declaração de inspirações vagamente oswaldianas procedia, mas Paulo Rodolfo não conseguia se convencer totalmente dos argumentos do produtor (e namorado). Mas finalmente cedeu: e mesmo depois daquele pesadelo medonho no qual se estripava macabramente, estava lá na hora marcada, seis e meia da manhã, para participar do programa  sensacionalista-popularesco, e, claro, tentar fazer com que o povo consumisse o biscoito fino que produzia.

Às sete em ponto, o produtor do programa (sujeito do qual não gostava muito; ´meu santo não bate com o dele´, dizia), o avisou:
- Entra já no estúdio. Você é o próximo entrevistado! E complementou, em tom que pareceu a Paulo Rodolfo mais ameaçador do que promissor: - Essa sua entrevista vai marcar época na Bahia!

Cego pelas luzes dos refletores, Paulo Rodolfo entrou em cena; sentou-se em poltrona  em tons de vermelho, azul e branco, e avistou,  próximo dele, rindo com todos os dentes a que tinha direito, o paquidérmico, o rotundo, o superobeso Teodoro Barrela, que, imediatamente esbravejou: - Câmera nos olhos dele!

Foi quando Paulo Rodolfo, ao ver o câmera se aproximando dele gulosamente, teve a nítida impressão de que o pesadelo da noite anterior se materializaria ali e agora.  Não deu outra: Teodoro Barrela, em tom ameaçador e frenético, perguntou-lhe à queima-roupa: - A família baiana quer saber, Paulo Rodolfo, você é gay?

Paulo Rodolfo, sentindo que alguém de fato o estripava e lhe arrancava boca afora o fígado, os rins e a bexiga, suou frio, e titubeou, e gaguejou: - Des...culpe, Bar...rela. Não entendi a pergunta.

(Deslavadíssima mentira, ele entendera muito bem a pergunta, mas  precisava de algum tempo, nem que fosse mísero microssegundo, para tentar pensar em alguma coisa que o livrasse daquela porra; viera ali divulgar ´a merda do espetáculo que dirigia, caralho, e não, puta que pariu, para falar da vida sexual de ninguém, muito menos da minha´).

Teodoro Barrela não se fez de rogado, e soletrou cada sílaba da pergunta que voltava a fazer: - A família baiana quer sa-ber, Paulo Rodolfo, vo-cê é gay, vo-cê é bai-to-la, você é pe-ro-bo, você mi-ja fo-ra da ba-cia?

Paulo Rodolfo, ávido por faca amolada que lhe cortasse os pulsos, e  que o impedisse de protagonizar aquele vexame, sem saída,  acuado, balbuciou, de maneira quase inaudível: - N.... nã...Não.. n....ão sou!

Teodoro Barrela pulou-lhe gulosamente na jugular, de onde não sairia até o final da entrevista, e vociferou: - Agora quem  não entendeu a sua resposta fui eu. Por isso, pergunto-lhe pela segunda vez:  você é gay, Paulo Rodolfo?

Paulo Rodolfo, mais perdido que cego em tiroteio, agora queria faca amolada não mais para cortar-lhe os pulsos, mas para estripar todas as vísceras daquele obeso filho da puta e jogar todas as vísceras desse obseo filho da puta num rio superlotado de piranhas famélicas. Mas não. Novamente fez das tripas coração, e balbuciou de forma ainda chocha, ainda fora do tom perempetório  que Teodoro Barrela gostaria que a resposta tivesse: - Não, não.... (tempo)  sou....

Teodoro Barrela, inclemente, grudando-lhe gulosamente na jugular, refez a pergunta, e a refez de maneira ainda mais contundente: - Não entendi. Câmera nos olhos dele! Você é ou não é gay? É o que a família baiana quer saber, Paulo Rodolfo. Responda, por favor!!! Você é ou não é viado?

Paulo Rodolfo percebeu-se totalmente sem saída. Lembrou-se que ligara no dia anterior para toda a família que morava em  Feira de Santana, e avisara sobre a aparição na tevê. Imaginou, em pânico, a mãe, amantíssima, mas homofóbica até a medula, não suportando aquele rude golpe, aquela brutal revelação em rede estadual de tevê, e se deixando abater por súbito fulminante colapso cardíaco, e quase chorou.

Paulo Rodolfo então se muniu de inesperado e surpreendente pathos, digamos, super-heterossexual, misto de John Wayne e Jack Palance, levantou da poltrona multicor, avançou em direção à pequena plateia de convidados (sim, diariamente, a produção do programa arrembanhava moradores de rua das imediações, dava-lhes banho + café-com-leite-e-pão-com-manteiga, e os obrigava a sentar nesse pequeno auditório), e bradou, retumbante, diante da câmara nos olhos dele e da pequena platéia que parecia petrificada diante de revelação que poderia mudar-lhes totalmente as vidas: - Não, família baiana, não câmera nos meus olhos, não Teodoro Barrela, não pequena plateia! EU NÃO SOU GAY! EU NÃO SOU GAY! EU NÃO SOU GAY!

A platéia derramou-se em aplausos frenéticos, e se a câmera descesse até a altura do plexo celíaco de Teodoro Barrela poderia ali flagrar rotunda e evidente ereção. Foi então que o apresentador, com olhos transidos, como se acabasse de ter orgasmo (o que talvez de fato tenha ocorrido), mergulhou ainda mais fundo a faca no coração de Paulo Rodolfo:  - Pois é, família baiana, o Paulo Rodolfo, além de não ser gay, segundo informou alguém da minha produção, tem duas belas filhas. Câmera nos olhos dele: como se chamam suas filhas, Paulo Rodolfo?

O diretor teatral Paulo Rodolfo pensou em simular desmaio, mas, antes, imaginou: fora aquele filho da puta do produtor a quem tinha ódio mortal o ´alguém da produção´ que passara essa estapafúrdia e mentirosa informação para Teodoro Barrela. Mas resolveu: não havia jeito de fazer aquela farsa patética recuar, e foi fundo: - É verdade, Paulo Rodolfo. Tenho duas filhas.  Então se lembrou dos duas poodles que amava tanto, que tinha em casa, e disparou: - Elas se chamam Sara e Madalena...

Teodoro Barrela, interrompendo, radiante e jubiloso: - Que sublime, família, baiana, que sublime!!! As filhas de Paulo Rodolfo têm nomes bíblicos, família baiana!

Paulo Rodolfo, completamente atordoado, quase à beira do nocaute fatal, voltou, atabalhodamente a sentar na poltrona azul, vermelho e branco, enquanto ouvia, Teodoro Barrela urrar, e berrar, e vociferar: - Câmera nos meus olhos! Câmera nos meus olhos! Não pense, família família que trouxe o diretor teatral Paulo Rodolfo ao meu programa à toa. Havia intenção clara por trás desse convite. Sabedor, por meio de alguém de minha produção, de que esse importantíssimo artista dos nossos palcos não praticava o nefando pecado da sodomia, eu resolvi trazê-lo aqui para demonstrar o quão absurda é a tese que circula Salvador afora de que todas as pessoas que se envolvem com arte cênica na Bahia. são gays (Quase histérico) O que quero demonstrar, família baiana, é que nem todo mundo que faz teatro na Bahia é gay!!! (Totalmente histérico) O que quis demonstrar com o exemplo edificante de Paulo Rodolfo é....

Epílogos

1. O de Paulo Rodolfo/Paulete Iscariotes: a) o espetáculo Assim é Se Lhe Parece, adaptado para a realidade do Pelourinho, teve temporada curta, graças à pouca presença de público; b) os amigos de mesa de bar passaram a chamá-lo,  jocosamente, de Paulete Iscariotes - ele subia nas tamancas quando isso acontecia, mas depois se acostumou,  a ponto de transformá-lo em nome artístico a partir de meados dos anos 1990); c) morreu no início do século 21 por complicações respiratórias decorrentes da Aids.

2. O das poodles Sara e Madalena:   a) no dia seguinte ao sepultamento de Paulete Iscariotes foram atropeladas por ônibus que descia a toda velocidade a Ladeira da Barra; b) os mais crédulos e mais místicos chegaram a dizer que elas, abatidas com a morte do amo e senhor, se jogaram, por livres e espontâneas vontades, sob as rodas do veículo atropelador.

3. O de Teodoro Barrela: a) depois de fazer esse programa popularesco-sensacionalista por várias temporadas, sempre na liderança da audiência no horário, comprou algumas estações de rádio e tevê no interior da Bahia e se tornou milionário. b) como se não bastasse, se  elegeu deputado federal por três legislaturas. c) teve morte horrível: fez cirurgia para reduzir-lhe as dimensões estomacais, mas nem assim deixou de comer compulsivamente: d) quando almoçava nababescamente em churracaria brasiliense na semana passada, o estômago explodiu-lhe de repente, espalhando vísceras e alimentos recém-ingeridos por todo o local; d) pedaço de.costela de porco que devorara inteira disparou-lhe da barriga como se fosse bólide desgovernado e atingiu o olho de deputada federal paraibana que o acompanhava e, que dizem as boas e más línguas, lhe seria amante. e) o atendimento imediato a impediu de ficar cega.

Nenhum comentário:

Postar um comentário